Pedro Santoro de Mello
Vitor Santa Rita
Orientadora: Maria Amália Arruda Camara
Resumo: O presente artigo visa abordar uma situação bastante presente em nossa sociedade contemporânea: a judicialização da política brasileira. O objetivo dessa abordagem será concluir se esta situação constitui uma defesa à Constituição ou um abuso de poder que desrespeita a tripartição entre poderes. Para tanto, explicar-se-á como se deu o desenvolvimento do princípio da separação entre os poderes, a fim de inserir uma abordagem filosófica ao artigo. Também serão explicadas as diferenças entre judicialização da política e ativismo judicial, outra situação recorrente no Brasil. Depois destas considerações, a situação do poder Judiciário brasileiro em diferentes épocas será analisada para compreendermos a nossa conjuntura atual. Por fim, uma resposta ao título do artigo será apresentada. O estudo foi realizado utilizando-se de um método hipotético-dedutivo, de caráter qualitativo, com abordagem filosófica, sociológica e jurídica, de cunho bibliográfico e documental.
Palavras chave: Direito. Separação de poderes. Judiciário. Judicialização.
Abstract: This article aims to address a situation that is very present in our contemporary society: the judicialization of Brazilian politics. The aim of this approach will be to conclude whether this situation constitutes a defense to the Constitution or an abuse of power that disrespects the tripartition between powers. In order to do so, it will be explained how the principle of the separation of powers has developed, in order to insert a philosophical approach to the article. The differences between judicial judicialization and judicial activism, another recurrent situation in Brazil, will also be explained. After these considerations, the situation of the Brazilian judiciary at different times will be analyzed to understand our current situation. Finally, a response to the title of the article will be presented. The study was carried out using a hypothetical-deductive method, with a qualitative character, with a philosophical, sociological and juridical approach, with a bibliographical and documentary character.
Keywords: Law. Separation of Powers. Judiciary. Judicialization.
Sumário: Introdução. 1. Princípio da separação dos poderes. 2. Diferenças entre o ativismo judicial e a judicialização da política. 3. A judicialização da política no Brasil. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente artigo científico visa à realização de uma análise acerca do fenômeno da judicialização da política no Brasil, destacando os aspectos positivos e negativos da utilização de tal artifício pelo Judiciário nacional na figura do Supremo Tribunal Federal, com objetivo de possibilitar uma conclusão se tal prática seria uma defesa aos princípios constitucionais ou um abuso do poder.
Primeiramente, será tratado de maneira breve o conceito da Separação dos Poderes com o intuito de, a partir de tal conceito, destacar a forma como o atual poder estatal brasileiro encontra-se dividido de acordo com as suas respectivas funções. Para isso, será utilizada como base científica do estudo a teoria de Montesquieu contida em sua obra “Do Espírito das Leis” e, também, alguns dos conceitos acerca da tripartição trazidos pelos federalistas americanos, no que tange às funções típicas e atípicas dos poderes.
Após isso, serão dissertadas as principais diferenças entre dois fenômenos jurídicos constantemente praticados e utilizados pelo STF, sendo eles: o ativismo judicial e a judicialização. Pois, por se tratarem de processos que têm os seus conceitos confundidos por diversas vezes, será válido o estabelecimento de tal distinção com objetivo de possibilitar a criação de um foco específico sobre o fenômeno da judicialização.
Posteriormente, será realizada uma análise histórica da evolução do poder Judiciário no Brasil, desde o período colonial, quando os juízes eram muito subordinados às decisões da Corte portuguesa, até a promulgação da Constituição de 1988, que marcou a redemocratização brasileira e o fortalecimento do nosso Tribunal Federal. Isso, objetivando a identificação das nuances de cada período para compreender a atuação do referido poder em cada época. Feito isso, abordar-se-á as principais causas da judicialização da política brasileira, baseando-se, principalmente, na obra de Luís Roberto Barroso, atual ministro do STF. Só depois de identificar tais causas, poderemos elencar as consequências deste fenômeno e, como já dito aqui, estas podem ser tanto negativas quanto positivas.
Apresentar-se-á, também, as conclusões da pesquisa, as quais revelarão se a judicialização é uma prática que visa a defesa dos princípios constitucionais ou se ela se configura como um abuso do poder que desestrutura a harmonia entre os poderes, tecendo assim alguns comentários acerca um possível desenvolvimento positivo de tal fenômeno no Brasil.
Para a realização do presente estudo, a metodologia da pesquisa científica utilizada foi de caráter qualitativo, com uma abordagem filosófica, sociológica e jurídica, de cunho bibliográfico e documental, utilizando-se de um método hipotético-dedutivo.
- Princípio da separação dos poderes
O princípio da separação dos poderes é um dos conceitos mais discutidos e desenvolvidos no decorrer da história da filosofia e da ciência política, tendo inúmeras figuras ilustres e influentes como seus principais teorizadores, como: Aristóteles, John Locke e Montesquieu, que buscaram ressaltar a importância de tal princípio para a construção de um Estado harmônico e que possuísse uma organizada distribuição dos poderes.
Segundo Montesquieu, todo Estado deveria ter sua divisão baseada nas três funções estatais básicas, sendo elas: legislar, governar e julgar. A partir dessas funções seria realizada uma distribuição do poder de modo que cada função fosse exercida por agentes específicos que seriam responsáveis por realizar os ofícios daquela função em específico, surgindo assim os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
O Legislativo seria responsável pela criação das leis para uma determinada época, bem como o poder de ab-rogar ou derrogar as leis criadas anteriormente no passado, a partir do momento que se vê uma necessidade de atualização.
O Executivo teria a responsabilidade pelo governo e pela administração de toda a estrutura e aparato estatal, estabelecendo a segurança, controlando e aplicando as contas públicas, distribuindo funções e zelando pelo cumprimento das leis internamente.
O terceiro poder, o Judiciário, estaria ligado à função de julgar, cabendo estabelecer punições para os possíveis dissídios cometidos e prezar pela aplicação e obediência à justiça. Sendo “preciso existir um juiz, imparcial, reconhecido como íntegro pela comunidade, o qual seja revestido da autoridade necessária e legítima para solucionar conflitos, diferença, litígios entre as pessoas que vivem nessa sociedade” (DE ARAGÃO, 2013, p. 23).
Esses poderes, na teoria de Montesquieu, possuiriam igual força, sendo os titulares finais de suas funções e devendo eles regular e estabelecer um controle recíproco das suas ações, de modo que nenhum poder sobreponha outro poder. Afinal o poder dever ser o princípio limitante de o próprio poder. Tal controle seria realizado a partir das faculdades de estatuir e impedir, utilizadas pelos poderes com o intuito de restabelecer o equilíbrio da tripartição.
A faculdade estatuir seria a noção de que cada poder é o titular final da sua função respectiva, dando ele assim a última palavra acerca dos atos a ele competentes. Enquanto que a faculdade de impedir estaria relacionada com a capacidade que um poder tem de impedir que outro poder intervenha no exercício da sua função, um exemplo desse mecanismo de pesos e contrapesos aplicado pelo poder no âmbito estatal seria o veto presidencial a uma determinada proposta legislativa.
É a partir disso que surgirá fundamentado posteriormente a Montesquieu pelos federalistas americanos na obra “O Federalista”, o conceito das funções típicas e atípicas dos poderes. A função típica é aquela função que fundamentalmente está relacionada àquele poder, exemplo: função de legislar do poder Legislativo. Enquanto que a função atípica representará o oposto, sendo ela o exercício de uma função que não é típica daquele poder, tendo como exemplo a capacidade de iniciativa e prática legislativa pelo poder Executivo.
Com isso, essa possibilidade de uma maior intervenção do poder na esfera de outro poder, a partir do exercício de uma função não-típica, apesar de ter trazido um mecanismo que auxilia na fiscalização recíproca dos poderes também provocou, negativamente, ao longo da história dos Estados Constitucionais um processo que era temido por Montesquieu, a quebra do equilíbrio e, devido a isso, um relativo domínio de um poder sobre os demais.
A acumulação de poder irá fazer com o indivíduo tenha a tendência de abusar desse poder, para evitar isso se tem a noção da distribuição do poder. Porém, mesmo com o fato do princípio da separação dos poderes ter se tornado elemento constitucional, não se pôde evitar o processo de prevalência de um poder sobre os demais, mesmo que de maneira sutil de certa forma, ao longo da história.
Tal processo pôde ser notado na formação dos estados a partir da Idade Moderna, pois se tem primeiramente um Estado Liberal, no qual preponderava o poder da função legislativa; após isso se tem o Estado Social, onde se tinha um predomínio da prática do Executivo; culminando assim no Estado pós-segunda guerra, onde se tem o poder Judiciário prevalecendo em relação aos demais poderes, fazendo surgir assim o Estado Democrático de Direito, sendo essa última conformação estatal o foco de nosso estudo.
Também é válido ressaltar que o princípio da separação de poderes se tornou um dogma constitucional desde o século XIX. Por isso, mesmo com a existência visível de novas formas de poder, a tripartição de poderes de Montesquieu ainda é tão protegida e priorizada por boa parte dos Estados Constitucionais espalhados pelo mundo.
Por outro lado, fica claro que predomínio do Judiciário dentro da tripartição dos poderes acabou por gerar processos de judicialização da política que são caracterizados pela maior intervenção do judiciário nas práticas políticas sociais, provocando assim um desequilíbrio no exercício organizado das funções estatais. Porém, antes de abordar o fenômeno da judicialização da política e a forma como ele ocorre dentro do Estado brasileiro faz-se necessário esclarecer, a priori, as diferenças entre o ativismo judicial e a judicialização, que são dois fenômenos distintos frequentemente confundidos.
- Diferenças entre o ativismo judicial e a judicialização da política
O ativismo judicial e a judicialização são duas práticas distintas frequentemente realizadas pelo Poder Judiciário que irão ser responsáveis por aumentar a influência de tal poder dentro do âmbito estatal. Com o intuito de estabelecer a distinção de tais práticas, serão brevemente abordados os conceitos de ambas para, posteriormente, determinar de maneira objetiva a diferença entre elas.
O ativismo judicial é um fenômeno jurídico que tem a sua origem relacionada com os tribunais e supremas cortes norte-americanas, pois foi lá que grandes debates das questões dos poderes Legislativo e Executivo foram decididos pela determinação do poder Judiciário. Um dos principais conceitos de ativismo judicial é a noção de que ele se trata de uma atitude realizada por um tribunal ou um jurista caracterizada pela adoção por parte deles de uma interpretação acerca das leis e da Constituição, sendo que, muitas vezes, tal interpretação irá ampliar o alcance das normas dentro do ordenamento jurídico, fazendo com que ele atue fora da legislação, não possuindo o devido respaldo legal.
Em outras palavras, o ativismo irá se caracterizar pela atitude do judiciário em adotar uma interpretação específica em relação à lei, mesmo que essa interpretação não seja garantida pela legislação, fazendo assim com que o Judiciário passe a criar uma concepção própria acerca do ordenamento jurídico que seja baseada numa interpretação legal muito ampla que, na maioria dos casos, não compõe a lei.
Tal prática ativista por parte do Judiciário vem crescendo dentro do contexto nacional, na medida em que se tem cada vez a presença de ações do STF de adoção de uma interpretação própria acerca das legislações e processos legislativos, ampliando tais normas e dando a elas novas noções sem o consentimento do poder Legislativo, titular final dessa função que lhe é típica.
Um exemplo da prática ativista dentro do ordenamento jurídico nacional é o da declaração de inconstitucionalidade do regime integralmente fechado, previsto no artigo 2°, da Lei n° 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos). Segundo o STF, tal dispositivo viola o princípio essencial do direito à individualização da pena, previsto no rol de direitos e garantias fundamentais do artigo 5°, da Constituição Federal.
Enquanto isso, a judicialização é um processo que se caracteriza pelo aumento da influência e da ação do poder Judiciário nas questões político-sociais, tendo esse predomínio pela resolução de tais questões pela via judicial. Segundo Maciel e Koerner, a judicialização pode ser definida tanto pela propagação da ação e da influência do Judiciário na função dos demais poderes, como também pelo aumento na quantidade de processos judiciais realizados (2002, p.115).
Dentro do fenômeno da judicialização, o Judiciário é visto como o órgão responsável por solucionar todas as questões político-sociais da sociedade, interferindo em funções e atividades que são tipicamente exercidas pelos outros poderes, revisando tais ações segundos os princípios constitucionais.
Com isso, tem-se uma politização da justiça na medida em que o Judiciário passa atuar como uma espécie de “órgão político” responsável por analisar as práticas realizadas pelo poder Legislativo e Executivo, buscando conformá-las segundo as normas da Constituição, tendo como consequência disso a “difusão do Judiciário no processo de decisão das democracias atuais” (DE ARAGÃO, 2013, p. 66).
Portanto, pode-se notar que o ativismo e a judicialização são práticas distintas constantemente praticadas pelo Judiciário, sendo aquela caracterizada pela atuação do Judiciário além da legislação, sem respaldo legal e promovendo uma ampliação das normas jurídicas a partir de suas interpretações, enquanto que esta se evidencia pela ação do Judiciário além de suas competências, interferindo assim nas decisões políticas dos demais poderes, fazendo com que questões políticas de grande repercussão nacional ao invés de serem analisadas pelo Congresso Nacional ou pelo Poder Executivo, passem a ser decididas pelo Poder Judiciário. É válido ressaltar que ambos os fenômenos são praticados em diversos ordenamentos jurídicos distintos e são fatores contribuintes para o crescimento do Poder Judiciário dentro do Estado.
Após a abordagem da distinção de tais fenômenos jurídicos, será retratada no tópico seguinte, especificamente, a forma como se desenvolve o fenômeno da judicialização da política no Brasil, centralizada na figura do STF, buscando ressaltar os aspectos positivos e negativos provocados por essa maior influência do poder Judiciário dentro dos processos políticos nacionais.
- A judicialização da política no Brasil
Conforme o Artigo 60, §4º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a abolição da separação dos poderes não é possível. Entretanto, mesmo que nenhuma Emenda tenha sido feita com este propósito, pelo menos não por enquanto, é visível a desarmonização entre os três poderes na República do Brasil. Tal divergência se dá, principalmente, pela prevalência do Judiciário diante dos outros poderes, o que pode ser observado pelo encaminhamento de questões executivas e legislativas para este poder. Para entender o porquê deste atual prevalecimento, faz-se necessária uma análise acerca dos antecedentes históricos do poder judiciário no Brasil.
Segundo Antônio Carlos Wolkmer, no período colonial, que se estendeu desde 1500 até 1815, o poder judiciário brasileiro era muito submisso às decisões de Portugal e de portugueses que aqui viviam, já que o direito do Brasil era quase que inteiramente baseado nas Ordenações portuguesas, inclusive, as Ordenações Filipinas tiveram vigência no Brasil até o ano de 1916, com a criação do Código Civil brasileiro (2007, p. 300).
Após a Independência do Brasil, em 1822, foi outorgada a primeira Constituição brasileira, no ano de 1824, que marcou a criação de um Estado Monárquico e Unitário regido pelo Imperador Dom Pedro I. A Constituição de 1824 estabeleceu a divisão entre quatro poderes (Executivo, Judiciário, Legislativo e Moderador), entretanto, na prática, os únicos poderes atuantes eram o Executivo e o Moderador, ambos centrados na figura do Imperador. Devido à forma de Estado (Unitário), o Poder Judiciário só era exercido de forma nacional, o que concentrava o exercício deste poder e excluía a possibilidade de uma pluralidade normativa.
Neste período, só cabia aos juízes a aplicação da lei e nada mais, o que enfraquecia o poder Judiciário, numa situação bastante semelhante com o pensamento da Escola da Exegese.
Com a proclamação da República dos Estados Unidos do Brasil, em 1889, o antigo Estado Unitário brasileiro deixou de existir para a criação de uma Federação. Assim, as Províncias se transformaram em Estados Federados, contexto que permitiu uma organização dualista do Poder Judiciário, em âmbito Federal e Estadual. Em 1890, foi criada Justiça Federal, sendo o STF um dos seus componentes. É aqui que começa o fortalecimento do Poder Judiciário brasileiro, já que o órgão máximo deste poder, o STF, era composto por 15 ministros indicados pelo presidente, sendo todos eles dotados de mandatos vitalícios e de irredutibilidade de vencimentos, ambos garantidos[1] pela Constituição de 1891.
Como consequências da Revolução Industrial e do Estado Liberal de Direito (desvalorização do trabalhador, péssimas condições de trabalho), começaram a surgir, nas primeiras décadas do Século XX, os movimentos proletários, os quais tinham como objetivo o empoderamento da classe trabalhadora. O capitalismo respondeu esses movimentos com as chamadas “constituições sociais”, que visavam garantir ao trabalhador alguns direitos sociais como educação e saúde. Um dos exemplos desse Estado Social de Direito foi à República de Weimar, estabelecida em 1919 na Alemanha. No Brasil esse momento foi representado pela ascensão de Getúlio Vargas ao poder. Entretanto, faz-se necessário revelar que as primeiras constituições sociais trouxeram consigo um fortalecimento do poder executivo[2] e isso não foi diferente no Brasil.
No ano de 1937, teve início no Brasil o período denominado “Estado-novo”, o qual marcou o regime ditatorial de Getúlio Vargas. Nesta época também foi outorgada a famosa Constituição “polaca”, assim chamada devido às semelhanças e às inspirações no modelo fascista polonês. Segundo Aluísio Mendes, nesta Constituição, as referências à separação e harmonia entre os três poderes simplesmente desapareceram, aumentando a força da Presidência da República, violando o poder Legislativo e inibindo a capacidade de julgar do poder Judiciário (2005, p.8).
Com o término da II Guerra Mundial, em 1946, observou-se, na maioria dos países ocidentais, incluindo o Brasil, uma nova onda de constitucionalismo. Tal constitucionalismo pregava a promoção da dignidade e do bem-estar humano, de modo a garantir todos os direitos fundamentais dos indivíduos. O presente artigo se interesse por um ponto específico deste novo constitucionalismo: compete ao poder Judiciário à proteção da constituição, através da criação de Tribunais Constitucionais, de modo a evitar que o poder Executivo e o poder Legislativo desvirtuem a constituição ou deixem de aplicá-la.
Obviamente, no âmbito brasileiro, a passagem para esse novo constitucionalismo social não foi imediatamente após o fim da II Guerra, visto que a Constituição brasileira de 1946 não teve força suficiente para impedir que o país mergulhasse novamente num regime autoritário que começaria no ano de 1964 e só terminaria em 1985. Neste hiato temporal, entre 1946 e 1985, o Brasil viveu sob um regime militar que não reconhecia constitucionalmente alguns dos direitos fundamentais anteriormente conquistados, como a liberdade e a privacidade.
Foi somente no fim da década de 1980, com o Advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que o Brasil alcançou o Estado Constitucional Democrático Social de Direito. Luís Roberto Barroso, atual ministro do STF, destaca que a Constituição de 1988 representa uma vitória do modelo democrático sob o autoritarismo imposto pela Ditadura (2008, p. 16). Além de instituir um novo Estado Social de Direito, a Constituição de 1988 também fortaleceu o poder Judiciário, visto que, assim como outras constituições sociais do mundo, ela também previa a existência de um Tribunal Constitucional, neste caso, o STF, que tinha o papel de ser o guardião da própria Constituição.
A judicialização da política brasileira começa justamente nesse período de redemocratização. Como já explicado, a judicialização se caracteriza pelo aumento de influência do poder Judiciário em funções típicas de outros poderes e, aqui no Brasil, segundo Barroso, existem três grandes causas da judicialização: a redemocratização, a constitucionalização abrangente e o sistema de controle de constitucionalidade (2008, p.2).
A redemocratização deu uma nova vida à cidadania, a população passou a ser mais bem informada sobre os seus direitos e passou a buscá-los perante juízes e tribunais. Também houve, no mesmo período, a aumento da relevância do Ministério Público com a expansão da atuação deste em áreas que não estejam apenas dentro do Direito Penal. Assim, o aumento da demanda da justiça, causada pela redemocratização, fortaleceu o poder Judiciário brasileiro.
No tocante à constitucionalização abrangente, situação já falada neste artigo, a Judicialização é observada na transferência de inúmeras matérias que antes eram deixadas para os outros poderes para a Constituição e na medida em que uma matéria é transformada numa norma constitucional ela se transforma também, potencialmente, numa pretensão jurídica. Destaca Barroso: “Se a Constituição assegura o direito de acesso ao ensino fundamental ou ao meio-ambiente equilibrado, é possível judicializar a exigência desses dois direitos, levando ao Judiciário o debate sobre ações concretas ou políticas públicas praticadas nessas duas áreas” (2008, p.2).
Sobre o sistema de constitucionalidade brasileiro, o advogado Pinto Ferreira destaca que é necessário analisar que este é um dos mais abrangentes do mundo devido à sua adesão tanto ao sistema difuso quanto ao sistema concentrado, resultando no sistema misto de controle de constitucionalidade (2011, p.9). Por causa desse sistema, qualquer questão política pode ser levada ao STF.
Expostas as suas causas, o fenômeno da judicialização da política fica evidente e, como consequência deste fenômeno, cada vez mais o STF e outros órgãos da esfera jurídica têm dado a última palavra em temas que são matéria de outros poderes, como políticas públicas, demarcação de terras e até mesmo questões do dia a dia, fazendo com que o poder Judiciário se destaque entre os demais.
Estamos diante de um problema: A prevalência de um poder cujo seus representantes não são escolhidos de forma representativa, já que o ingresso na magistratura requer concursos públicos, não eleições. Além disso, o povo também não participa da escolha de nenhum Ministro do STF, visto que todos estes são indicados pelo Presidente. Há quem argumente que a indicação do Presidente seguida de uma sabatina do Senado constitua um cumprimento do sistema de Checks and Balances, essencial para a harmonia dos três poderes, entretanto, não se pode negar que não há representatividade do povo nesta escolha.
Mas a judicialização pode também ser vista com positividade, visto que ela confere uma maior liberdade ao poder Judiciário para que ele proteja a Constituição, de modo a garantir o cumprimento desta e a corrigir desvios feitos por outros poderes. Entretanto, essa liberdade de atuação precisa ser feita moderadamente e deve objetivar somente a proteção da nossa Carta Magna. Para isso os juízes não podem atuar de acordo com vontade política própria, eles devem observar apenas à Constituição.
A tendência é que, com disfunção cada vez maior dos poderes Executivo e Legislativo, o poder Judiciário continue a se fortalecer. Dessa maneira, a única coisa que resta à população brasileira é torcer para que os atores do poder Judiciário atuem de forma consciente e disciplinada.
Conclusão
Como visto a separação entre os três poderes se tornou um dos maiores pressupostos de uma República Constitucionalista, devido à garantia de harmonia que este sistema dá ao exercício do poder, a partir do momento que se tem a definição e distinção de funções estatais que possuem igual força, que são os titulares finais de suas respectivas ações e dotadas de capacidade de se regularem reciprocamente.
Entretanto, mesmo com esse conceito de um “equilíbrio” entre as funções, o Estado fica suscetível ao predomínio de um poder sobre os demais. Tal fato ocorre de acordo com as idiossincrasias de cada período histórico, já que hora o poder Legislativo foi predominante, logo depois o Executivo passou a ser o mais atuante e, nos dias que correm, a judicialização é visível, não só da política em si, como também da vida. Devido a isso, a ação do Poder Judiciário torna-se cada vez mais comum, o que gera consequentemente, um aumento da sua influência e força dentro do Estado.
Com isso, é válido ressaltar que o fenômeno da judicialização pode adquirir tanto uma função positiva, como negativa dentro do ordenamento jurídico, a depender sempre da intenção do Judiciário ao optar por utilizá-lo.
Do ponto de vista positivo, pode-se notar que o fenômeno da judicialização torna-se uma ferramenta utilizada pelo STF com intuito de fazer com que os demais poderes estatais, Executivo e Legislativo, se adequem aos princípios constitucionais, de modo que suas ações não ultrapassem ou neguem aquilo que foi estabelecido na Constituição Federal. Pois, através da judicialização, é possível que o Judiciário intervenha nas funções dos demais poderes e nas questões públicas com o intuito de garantir a supremacia constitucional e o bem estar social e jurídico, impedindo possíveis abusos provenientes do Executivo ou Legislativo.
Porém, mesmo possuindo tais aspectos positivos, o fenômeno da judicialização adquire uma característica negativa a partir do momento que se tem o estabelecimento do Judiciário como um órgão dotado de certa superioridade, desprestigiando e inferiorizando assim os demais poderes. A partir do momento que se tem uma conformação estatal na qual tudo deve passar pelo crivo e pela aprovação do Judiciário para ser considerado necessário ao Estado, sendo que muitas vezes os critérios utilizados por tais juízes não representam, necessariamente, a melhor solução técnica e jurídica a ser adotada, sem contar a manipulação e a pressão que estão sujeitos.
Assim, tem-se o surgimento de uma espécie de um “Estado de juízes”, no qual se encontram no poder indivíduos que não foram escolhidos pelo povo e que passam a decidir acerca das questões de maior relevância nacional.
Entretanto, não podemos deixar de destacar que a judicialização é fruto da vontade do constituinte e não da vontade do Judiciário, já que é a Constituição de 1988 que confere tanto poder aos juízes e ministros do STF.
Em suma, a ocorrência da judicialização da política não deixa de ser benéfica quando esta visa proteger os direitos fundamentais garantidos ao povo pela Constituição, ou seja, a judicialização pode ser utilizada como ferramenta para a correção de desacertos dos outros poderes. Entretanto, sempre ter-se-ia que contar com a boa intencionalidade dos atores do poder Judiciário para que a judicialização não se transformasse apenas numa predominância de um poder sobre os demais. Para a atuação benéfica da judicialização, concordamos com Boaventura de Sousa Santos, quando ele diz que, a força do sistema judicial é demonstrada, mesmo em tempos de crise, quando ele “consegue agir segundo os melhores critérios técnicos e as melhores práticas de prudência e consegue neutralizar quaisquer tentativas de pressão ou manipulação” (2003, p.1).
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[1] Ainda há uma terceira garantia, a de inamovibilidade, que garante aos ministros a impossibilidade de transferência, salvo por relevante interesse público. Essa garantia foi inserida numa reforma constitucional ocorrida em 1926.
[2] O próprio Carl Schmitt, filósofo político nazista, atribuía ao Chefe de Estado a competência de proteger a constituição.