I. Introdução
Em curto espaço de tempo a evolução da tecnologia foi responsável por uma verdadeira transformação social. Enquanto que nas décadas de 50 e 60 tínhamos computadores do tamanho de uma sala, restrito às grandes empresas e ao governo, hoje em dia temos os micros e os minicomputadores, acessíveis a grande parte da população.
Com o advento e a difusão da INTERNET é possível a troca de informações de maneira descentralizada e sem censura ou qualquer espécie de barreira, o que cria um ambiente favorável para a prática de ilícitos, tanto os já conhecidos, como o estelionato, injúria, calúnia e difamação, quanto novas modalidades, como as pichações virtuais, as invasões a sistemas públicos e/ou particulares, as publicações de fotos envolvendo pornografia infantil, dentre outros.
Doutrinariamente, costuma-se classificar o crime de informática como aquele praticado contra o sistema de informática ou através deste, compreendendo os crimes praticados contra o computador e seus acessórios e os perpetrados através do computador.
O Direito é dinâmico e visa atender aos anseios da sociedade, logo deve estar em consonância com a evolução tecnológica, a fim de regular e resguardar as relações oriundas deste novo paradigma social (a era da informática), preenchendo as lacunas necessárias, sem, contudo, invadir a esfera da intimidade e liberdade dos internautas.
Este trabalho não se destina a uma reflexão sobre a pedofilia ou o tráfico de seres humanos pela INTERNET, tampouco sobre suas formas de manifestação, mas apenas a uma breve discussão sobre a responsabilidade penal do provedor de internet frente à Lei nº 10.764/2003, que alterou alguns artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), motivo pelo qual não entraremos em definições específicas sobre o conceito de pedofilia.
II. Provedores de acesso, de conteúdo e de endereço eletrônico
Inicialmente, é preciso se ter em mente que não há anonimato absoluto quando se fala em INTERNET. Todo usuário conectado à grande rede possui um endereço IP[1] (”internet protocol”) a ele associado, que é uma espécie de identidade do usuário na rede. Em regra, o endereço IP é único durante o tempo em que está sendo utilizado, ou seja, dois usuários não podem estar utilizando endereços IP idênticos ao mesmo tempo (em tese). A dificuldade é saber quem utilizou o computador em se tratando de empresas, cyber’s cafés e outros locais em que o uso é feito por diversas pessoas.
Há que se fazer uma breve distinção entre conceitos simples, mas não sedimentados por grande parte dos usuários de microinformática, quais sejam: provedor de acesso à INTERNET; provedor de conteúdo; e provedor de endereços eletrônicos (“e-mails”).
Provedor de acesso à INTERNET é aquela empresa autorizada a disponibilizar aos usuários (sejam eles pessoas físicas ou jurídicas) o acesso à grande rede, seja através de telefone (acesso discado), radiofreqüência, banda larga, ou outro meio qualquer. É aquele provedor que confere ao usuário o endereço IP para que ele navegue na rede.
Provedor de conteúdo é aquela empresa que sedia páginas (estáticas ou dinâmicas) de usuários, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, devendo-se ter em mente que uma página da INTERNET (“web”) também tem um endereço IP a ela vinculado, sendo que este é estático e traduzido em um nome familiar (como por exemplo www.ig.com.br). Os provedores de conteúdo também podem fornecer serviços interativos como bate-papo (chats) ou jogos, sendo mais conhecidos como provedores de hospedagem ou ainda como portais da INTERNET.
Provedor de endereço eletrônico (ou de “e-mail”) é aquela empresa que disponibiliza ao usuário da INTERNET uma conta de correspondência eletrônica, como por exemplo [email protected].
Observe-se que sem o provedor de acesso não há que se falar em navegar na rede e, conseqüentemente não há utilização de correio eletrônico. Ressalte-se ainda que a empresa que provê o acesso à INTERNET, na maioria das vezes, também oferece um ou mais endereços eletrônicos e espaço para armazenamento de páginas aos clientes (atuando então como provedor de acesso, de hospedagem e de correio eletrônico).
Ocorre que existem provedores de hospedagem de páginas e de “e-mail’s” gratuitos, os quais oferecem os serviços mediante apenas o preenchimento de breve questionário envolvendo dados pessoais do usuário, sendo certo que estes não são verificados, não gozando, portanto, de garantia de fidedignidade. Como exemplo podemos citar o YAHOO, HOTMAIL, IG e GLOBO.
Assim, identificar a origem de uma mensagem eletrônica implica a necessidade de se localizar não apenas o provedor de “e-mail” que foi utilizado pelo autor, mas, principalmente qual o provedor de acesso por ele utilizado.
Por outro lado, identificar a autoria pela publicação de uma página implica necessariamente perquirir junto ao provedor de hospedagem (ou de conteúdo) quem é o responsável pela manutenção daquela página.
III. A lei 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em seu artigo 1º diz que:
“Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.” (grifo nosso)
A partir daí, o STJ já entendeu que para que seja configurado um crime através da INTERNET envolvendo criança ou adolescente não se exige o dano individual efetivo, mas apenas o potencial, o que significa não ser necessário que haja dano à imagem de alguma criança ou adolescente individualmente, mas apenas o dano à imagem em abstrato.
É importante frisar que o Brasil é signatário da Convenção Sobre os Direitos da Criança e adotou a doutrina da proteção integral na Constituição Federal, no artigo 227, in verbis:
“Art. 227- É dever da Família, da Sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligencia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
A doutrina da proteção integral foi regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 3º, que diz:
“Art 3º- A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facilitar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.”
A antiga redação do artigo 241 da Lei nº 8.069/90 era:
“Art. 241- Fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão de um a quatro anos.”
Publicar significa tornar público, divulgar, permitir o acesso ao público, no sentido de um conjunto de pessoas, pouco importando o processo de publicação (Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, Rio de Janeiro, Editora Forense, 1958, VII:340).
Corroborando o entendimento da douta Promotora de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Carla Rodrigues Araújo de Castro, “quem insere fotos de criança ou adolescentes em cena de sexo na Internet está publicando e, assim, cometendo a infração. O crime pode ser praticado através de sites ou home-pages. É importante salientar que não importa o número de internautas que acessem a página, ainda que ninguém conheça o seu conteúdo, as imagens estarão à disposição de todos, configurando a infração. Por outro lado, quem envia um e-mail com uma foto anexada não está tornando público e sim enviando a pessoa determinada, destarte, a conduta é, infelizmente, atípica.”
Criança, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é a pessoa com até doze anos de idade e adolescente é a pessoa entre doze e dezoito anos de idade (art. 1º do ECA).
Havia o argumento de que o Estatuto da Criança e do Adolescente definia como crime apenas a “publicação” e não a mera “divulgação” de imagens de sexo explícito ou de cunho pornográfico de crianças ou adolescentes. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento no sentido de que a divulgação pode ser por qualquer forma, até mesmo oral, mas a publicação não prescinde da existência de objeto material ou corpóreo, superando, assim, o questionamento sobre a tipicidade da conduta. Acrescente-se, ainda, a esse fundamento, o fato de que ambos os verbos são considerados sinônimos em dicionários como o Aurélio e o Houaiss e que os autores de páginas, ao permitirem a difusão para um número indeterminado de pessoas, tornaram-na públicas.
A Lei nº 10.764/2003, sancionada em 12/11/2003, publicada no Diário Oficial da União de 13/11/2003, alterou alguns artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), aumentando as penas para quem divulgar imagens pornográficas e de sexo explícito envolvendo crianças e adolescentes, inclusive pela INTERNET, conduta que não era prevista com clareza anteriormente.
O artigo 4º da Lei nº 10.764/2003 altera o artigo 241 da Lei nº 8.069/90, que passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 241- Apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores ou internet, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente: (grifo nosso)
Pena – reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena quem:
I- agencia, autoriza, facilita ou, de qualquer modo, intermedeia a participação de criança ou adolescente em produção referida neste artigo;
II- assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens produzidas na forma do caput deste artigo; (grifo nosso)
III- assegura, por qualquer meio, o acesso, na rede mundial de computadores ou internet, das fotografias, cenas ou imagens produzidas na forma do caput deste artigo; (grifo nosso)
§2º A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos:
I- se o agente comete o crime prevalecendo-se do exercício de cargo ou função;
II- se o agente comete o crime com o fim de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial.”
A alteração do artigo 241 da Lei nº 8.069/90, com o advento da Lei nº 10.764/2003, torna claro que a publicação de fotos pela INTERNET, seja através de home-pages, seja através de salas de bate-papo (chats), ou até mesmo através de canais específicos como IRC, ICQ e outros (na modalidade fornecer por qualquer meio de comunicação), está abrangida no caput do artigo, e, portanto, tipificada como crime, não importando se o agente recebeu o material do exterior.
Entretanto, dúvidas podem surgir com relação à interpretação dos incisos II e III do § 1º deste artigo 241, quais sejam:
a) o provedor de hospedagem de página ou de sala de bate-papo onde haja a veiculação de fotos envolvendo pornografia infantil pode ser enquadrado na conduta típica descrita no artigo 241, §1º, inciso II?
Analisando-se sob a ótica de que os provedores de conteúdo seriam os responsáveis pelos serviços que armazenam as fotografias, cenas ou imagens produzidas na forma do caput do artigo 241 da Lei nº 8.069/90, uma vez que sem eles as fotos, cenas ou imagens não estariam disponíveis e acessíveis na INTERNET, poder-se-á enquadrá-los no inciso II do referido artigo. Porém, tal interpretação implicará a possível responsabilidade criminal do presidente, do gerente, do diretor de tecnologia ou de qual outro empregado da empresa? Com essa interpretação do inciso a empresa sempre responderá também pelo crime supostamente cometido pelo usuário de seus serviços? Sendo assim, terá ela o interesse em fornecer subsídios para investigações criminais?
b) quando o legislador, no inciso III do § 1º do artigo 241 da Lei nº 8.069/90, disse “assegura, por qualquer meio, o acesso, na rede mundial de computadores ou internet, das fotografias, cenas ou imagens produzidas na forma do caput deste artigo”, referiu-se a que ou a quem?
Não se pode negar que o provedor de acesso à INTERNET assegura a seus usuários o acesso à grande rede. Uma vez na INTERNET o usuário poderá acessar o site ou o conteúdo que ele bem entender.
Assim, ao se analisar este inciso III, não podemos, em princípio, pensar que o provedor de acesso à INTERNET possa estar incurso nas penas deste artigo, uma vez que o provedor de acesso não faz uma censura prévia do que o seu usuário está acessando na grande rede (até porque isso feriria direitos destes clientes, tais como a intimidade). Assim, como deve ser interpretado este inciso III?
Qual posicionamento deve ser adotado daqui por diante, quando da investigação de crimes desta natureza cometidos pela Internet?
Parece-nos que o inciso III do artigo 241 da Lei nº 8.069/90 dificilmente terá aplicação prática, devido a sua falta de clareza e pela dificuldade em se aferir quem será o autor da conduta típica. É um absurdo querer responsabilizar o provedor de acesso à INTERNET simplesmente pelo fato de ter permitido o acesso de seu usuário à rede mundial de computadores. Uma vez na INTERNET o usuário faz o quem bem quiser, não tendo o provedor mecanismos legais para restringir o acesso a determinadas páginas. O provedor de acesso não tem como saber, de antemão, quais serão as páginas visitadas pelo seu usuário, logo não pode ser responsabilizado pelo acesso de seu usuário a sites com conteúdo pornográfico infantil. Corroborando a opinião de Bernardo Rucker, seria o mesmo que pretender responsabilizar o fabricante de fac-símile pelas mensagens a ele transmitidas.
Os problemas relativos ao desconhecimento da idade da vítima por parte do agente que recebeu ou capturou as fotos na rede e as divulgou ainda perduram, posto que com base exclusivamente na foto não é possível se afirmar, com certeza, se a vítima é ou não menor de idade. Assim não será possível uma condenação, entretanto pode-se admitir, em tese, o dolo eventual, uma vez que o agente desconfiou da idade e, sem saber ao certo, divulgou as fotos.
Não obstante o fato de as empresas provedoras de acesso ou de conteúdo na INTERNET alegarem elevado custo para um monitoramento dos “passos” de seus clientes, bem como sobre o que os mesmos estão publicando na rede, entendemos que deve existir uma fiscalização interna mais rígida por parte destas empresas a fim de coibir a prática da pedofilia.
O inciso II do artigo 241 da Lei nº 8.069/90 tem excelente redação na medida em que enquadra perfeitamente o provedor de hospedagem de páginas (ou de conteúdo). Este é o responsável, em última instância, pela publicação das fotos com conteúdo pornográfico infantil, visto que é quem assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias.
Assim, com a imputação de responsabilidade ao provedor de INTERNET espera-se que as empresas provedoras de serviços de hospedagem de páginas ou de bate-papo ajudem nas investigações, fornecendo subsídios para a identificação dos delinqüentes, com a devida observância aos princípios constitucionais da intimidade e da inviolabilidade das comunicações, posto que fornecer o endereço IP de um criminoso ou o número do telefone a ele vinculado é bem diferente de se ter acesso ao conteúdo de suas mensagens eletrônicas ou ainda de se saber quem é o proprietário da referida linha telefônica.
Os provedores têm, a partir de agora, a obrigação não só moral, mas legal de zelar pelo conteúdo que seus usuários tornam disponíveis na INTERNET, fazendo valer suas “políticas de privacidade”, através das quais a grande maioria afirma que materiais ofensivos ou contrários às normas jurídicas serão imediatamente retirados do ar, políticas estas que, na prática, aplicam-se apenas no tocante ao não fornecimento de quaisquer informações às Autoridades Policiais.
É perfeitamente possível e viável tecnicamente que os provedores de hospedagem de páginas e de bate-papo realizem o monitoramento do conteúdo disponibilizado pelos seus usuários na grande rede. Ocorre que para isso deverá haver um maior esforço tanto administrativo quanto técnico por parte destas empresas, o que, conseqüentemente, implicará redução de suas margens de lucros.
Por fim, espera-se que haja um maior engajamento dos provedores de INTERNET no combate a este crime que causa repugnância, destrói a inocência das crianças e instala a dor no seio das famílias.
[1] O endereço IP é formado por um número de 32 bits no formato nnn.nnn.nnn.nnn onde cada nnn pode variar de 0 até 255 (1 octeto = 8 bits). Tal classificação tem por finalidade otimizar o roteamento de mensagens na rede.
Informações Sobre o Autor
Rodrigo Bichara Moreira
Policial Federal lotado e em exercício na Delegacia de Controle de Segurança Privada da Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal no Rio de Janeiro (DELESP/DREX/SR/DPF/RJ), ex-substituto do chefe do Núcleo de Prevenção e Repressão a Crimes via Internet da Polícia Federal do Rio de Janeiro, Bacharel em Informática pela Universidade Federal Fluminense e Graduando em Direito pela Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro).