A interpretação das normas testamentárias formais pelo tabelião e demais aplicadores do direito

No Estado democrático de direito, os indivíduos têm direito a dispor, mesmo para pós morte, parte de seu patrimônio. Pode almejar que alguma obra seja continuada ou então gerar conforto para seus descendentes ou ascendentes. Mesmo quando haja herdeiros legítimos, pode dispor de parte do espólio mediante testamento. Não é justo impedir que o responsável pelo acúmulo do patrimônio e ativos possa manifestar vontade no sentido de que o fruto do seu trabalho seja entregue a quem ele acredita merecer, depois de sua morte. Também não é justo deixar os herdeiros legítimos sem proteção.

O testamento é ato formal e personalíssimo, que pode ser mudado a qualquer tempo, no qual o testador capaz ou maior de dezesseis anos e com total discernimento pode dispor da totalidade dos seus bens ou de parte deles, para depois de sua morte, salvo a legítima dos herdeiros necessários, ou tratar inclusive ou exclusive das questões de caráter não patrimonial, podendo ter ordinariamente a forma pública, cerrado ou particular, na forma dos artigos 1857 e seguintes do Código Civil.

Pela importância deste ato e seus efeitos, como resguardar o direito dos herdeiros e principalmente identificar as disposições de última vontade do testador, a lei prevê algumas formalidades. Ocorre que estas nem sempre representam uma garantia eficaz ou necessária para proteger os fins do testamento.

O Excelentíssimo Senhor Ministro Gueiros Leite do Superior Tribunal de Justiça, Terceira Turma, defende a flexibilização do formalismo dos dispositivos que tratam dos testamentos ao dizer que, in verbis: … não se deve alimentar a superstição do formalismo obsoleto, que prejudica mais do que ajuda. Embora as formas testamentárias operem como jus cogens, entretanto a lei da forma está sujeita a interpretação e construção apropriadas as circunstancias. recurso conhecido, mas desprovido. RESP 1422/RS; N° 1989/0011888-9. Ministro GUEIROS LEITE. TERCEIRA TURMA.

Todas as normas formais testamentárias devem ser interpretadas em conformidade ao artigo 1.899 do CC que determina o foco na vontade do testador. Apesar do mesmo tratar da interpretação das cláusulas testamentárias, deve-se aplicá-lo por analogia. O artigo em questão autoriza a flexibilização da aplicação das formalidades. Ou seja, mitiga o rigor formal excessivo.

A flexibilização deve ser analisada em cada formalidade específica, em face de sua importância ou não para assegurar a manifestação da última vontade e direito dos herdeiros; e ainda, de acordo com o caso concreto analisado pelo Judiciário, conforme o conjunto de provas. O formalismo não é um fim em si mesmo, apenas um meio. O rigor formal dos testamentos não pode ser justificativa para prejudicar sua finalidade. Na prática, para se evitar nulidades e possível responsabilidade civil, o Tabelião deve seguir as formalidades com o maior rigor possível.

Da mesma forma que as provas podem auxiliar a nulificação de testamento público, como por exemplo em caso de incapacidade absoluta do testador no momento da lavratura do ato. E nesse caso, a capacidade posterior não sana o ato viciado. As mesmas podem fundamentar o suprimento de eventuais anulabilidades presentes em testamento.

O Excelentíssimo Senhor Ministro do E. STJ César Asfor Rocha defende que: “… todas essas formalidades não podem ser consagradas de modo exacerbado, pois a sua exigibilidade deve ser acentuada ou minorada em razão da preservação dos dois valores a que elas se destinam – razão mesma de ser do testamento, na seguinte ordem de importância: o primeiro, para assegurar a vontade do testador, que já não poderá mais, após o seu falecimento, por óbvio, confirmar a sua vontade ou corrigir distorções, nem explicitar o seu querer que possa ter sido expresso de forma obscura ou confusa; o segundo, para proteger o direito dos herdeiros do testador, sobretudo dos seus filhos.” Recurso não conhecido. Ministro CESAR ASFOR ROCHA. RESP 302767/PR; RECURSO ESPECIAL 2001/0013413-0. QUARTA TURMA.

Em suma, as normas testamentárias formais estão sujeitas a interpretação e flexibilização que garanta a aplicação da vontade do testador, proteção dos herdeiros, sem prejuízo a segurança jurídica. Isto é reforçado pelo artigo 1.899 do CC, aplicado por analogia. A flexibilização pelo Tabelião só é possível a medida que a jurisprudência superior evoluir neste sentido. E o Judiciário poderá flexibilizar, desde que outras provas cabais suprimam a deficiência ou na hipótese do formalismo específico for dispensável à segurança jurídica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. BRANDELI, LEONARDO. Teoria Geral do Direito Notarial. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre. 1998.
2. CENEVIVA, WALTER. Lei dos Notários e dos Registradores Comentada(Lei 8.935/94). Editora Saraiva. 4a edição. 2002.
3. CENEVIVA, WALTER. Lei dos Registros Públicos Comentada. Editora Saraiva. 15a edição. 2002.
4. PARIZATTO, JOÃO ROBERTO. Serviços Notariais e de Registro. Brasília Jurídica. Brasília/DF.1995.

Informações Sobre o Autor

Brenno Guimarães Alves da Mata

Consultor Jurídico em Brasília/DF


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