A legitimidade dos bancos de dados de proteção ao crédito em face dos direitos fundamentais

Trata de fundamentar a existência dos bancos de dados de proteção ao crédito na realidade atual, em razão de sua atividade proporcionar perigo iminente de violação aos direitos fundamentais da personalidade, mas ao mesmo tempo apresentar grande importância para a manutenção do sistema capitalista de mercado como temos hoje, baseado no crédito.

O principal pilar sustentador do presente artigo está em aplicar à realidade fática o princípio da proporcionalidade, ponderando os interesses constitucionais e explicitando as bases argumentativas da essencialidade das atividades protetoras do mercado e a relativização dos direitos fundamentais em face de objetivos legítimos a serem alcançados pela República Federativa do Brasil.

Os bancos de dados de proteção ao crédito, como o SPC, SERASA, SCPC, entre outros, surgiram dentro de um contexto histórico estruturado e impulsionado pela economia de mercado, caracterizado pela rápida circulação de bens e capital, tudo isso sustentado pelo crédito, o que define de forma incontestável a importância dos bancos de dados na manutenção e desenvolvimento de todo o sistema econômico.

Todavia, a atividade dos arquivistas, em princípio, afronta direitos e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição Federal, o que implica deduzir que a sua existência está condicionada a ponderação de interesses e valores constitucionais. Afirma Leonardo Roscoe Bessa:

As normas constitucionais possuem caráter polissêmico e aberto, congregam direitos, valores e princípios diversos e conflitantes e estão no mesmo nível hierárquico. O legislador, em sua atividade conformadora e restritiva, deve ponderar todos os bens em jogo, atendendo-se especialmente ao princípio da proporcionalidade.[1]

Portanto, as normas presentes na Carta Magna muitas vezes dispõem sobre direitos conflitantes, localizados no mesmo patamar hierárquico, de modo que, para solucionar o problema, exige-se a intervenção do princípio da proporcionalidade, que surge como veículo através do qual se busca limitar certos valores em função de outros, cuja importância se sobrepõe em um dado contexto social.

O princípio da proporcionalidade, originado no Direito Alemão, não tem previsão expressa na nossa Constituição Federal, embora reconhecido e aceito pela doutrina nacional. A aplicação de tal princípio, na existência de confronto entre valores, implica em aceitar um valor e rejeitar o mínimo possível o outro, conforme afirma Fernanda Kellner de Oliveira Palermo

Existem ocasiões em que há conflito entre princípios, ou entre eles e regras. O princípio da proporcionalidade é de grande valia nestas ocasiões, pois pode ser usado como critério para solucionar da forma mais conveniente tal conflito, ao balancear a medida em que se aceita prioritariamente um e desatende o mínimo possível o outro princípio.[2]

Assim, também, assevera André RamosTavares que:

O princípio da proporcionalidade desponta como relevante instrumento de solução dos conflitos, na medida em que se apresenta como mandamento de ‘otimização de princípios’, ou seja, como critério de sopesamento de princípios quando estes conflitam em dada situação concreta.[3]

A Constituição Federal, no Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, em seu art. 5, inciso X, dispõe: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”

Ora, evidente que o arquivo e divulgação de informações negativas acerca da idoneidade de um indivíduo perante o comércio ofende sua honra, sua imagem social, invade sua privacidade e transpassa sua intimidade. São esses, pois, valores fundamentais. Então, como a atividade dos bancos de dados de proteção ao crédito pode ser legitimada se, em princípio, viola tais direitos? A resposta pode ser verificada justamente através da ponderação dos interesses constitucionais.

Alexander de Morais, denominando de forma diferente o princípio da proporcionalidade, coloca que:

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais igualmente consagrados pela Carta Magna (princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).;

e completa:

[…] quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a organizar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual…[4]

Assim como os preceitos fundamentais constantes do art. 5, inciso X, da Constituição Federal da República, devem ser primordialmente respeitados e promovidos como objetivos essenciais à consecução dos interesses da nação brasileira, assim também os princípios inerentes à ordem econômica, constantes dos arts. 170 à 181, que compõem exigências indispensáveis para o desenvolvimento do país, merecem a devida atenção.

O art. 170, da Constituição Federal preconiza, in verbis:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

[…]

Os bancos de dados de proteção ao crédito retiram do anonimato os consumidores inadimplentes, auxiliando os fornecedores na avaliação dos riscos para concessão do crédito, conduzindo à agilidade das transações efetivadas entre as partes nas relações de consumo, de modo que favorece o sistema econômico baseado na livre iniciativa, como o do Brasil. Esse fundamento confere, portanto, independentemente de expressa menção constitucional, elevada importância a qualquer atividade que proteja o comércio, por este representar o sustentáculo do crescimento econômico. Assim são as atividades exercidas pelas entidades arquivistas. Sem os arquivos de consumo, a relação de garantia ao crédito restaria fatalmente fragilizada.

Os valores constitucionais relativos à honra, privacidade, intimidade e imagem dos indivíduos devem ser analisados em face da existência de outros interesses constitucionais também importantes, exigindo-se, pois, relativa ponderação, visando o alcance de maior número de benefícios à sociedade, considerando os objetivos fundamentais da República estabelecidos no texto constitucional.

Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme o art. 3º, da Constituição Federal: I – constituir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

É incontestável que a liberdade de um indivíduo, imbuído nesse contexto capitalista, somente pode ser efetivada se existir a possibilidade de o sujeito estar inserido dentro da realidade de consumo. Sabe-se que a sociedade brasileira, segmentada que é em classes sociais distantes umas das outras, onde verifica-se grande concentração de renda nas mãos de poucos, possui uma grande  massa de indivíduos que não podem adquirir os produtos fornecidos pelo mercado, senão através do crédito.

A importância de se ter crédito para a obtenção de bens não se resume à materialidade dispensável. A realidade brasileira mostra que a grande maioria das pessoas necessita do crédito também para obter produtos e serviços indispensáveis ao sustento pessoal, ao seu desenvolvimento como cidadão, sua profissionalização e consequente inserção no mercado de trabalho. O homem sem condições de manter-se de forma independente, de trabalhar para constituir um padrão de consumo razoável, não desfruta de liberdade.

Garantir o desenvolvimento nacional, reduzir a marginalização, a pobreza e as desigualdades sociais são objetivos que também estão indiretamente ligados a mecanismos de proteção ao mercado, como os bancos de dados de proteção ao crédito, de modo que sua atividade concorre necessariamente para o crescimento das relações de mercado, favorecimento à livre iniciativa, a possibilidade de aumento do consumo e, consequentemente, elevam-se as chances de inclusão social das camadas mais desfavorecidas, reduzindo a pobreza e as diferenças sociais, impulsionando por conseqüência o desenvolvimento econômico e social do país.

A Constituição Federal estabelece em seu art. 5º o princípio da igualdade, nestes termos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

Deve-se, todavia, interpretar o princípio constitucional no sentido de se procurar atingir a igualdade material, proporcionando a pessoas desigualmente situadas no contexto social oportunidades também diferenciadas.

Celso Ribeiro Bastos, denominando diferentemente a igualdade material, afirma:

A igualdade substancial postula tratamento uniforme de todos os homens. Não se trata, como se vê, de um tratamento igual perante o direito, mas uma igualdade real e efetiva perante os bens da vida.[5]

Desse modo, a Constituição não veda o tratamento proporcionalmente diferenciado de pessoas em situações diferentes, quando se busca com isso atingir um fim relativamente importante e compatível com tal diferenciação. Conclui Alexandre de Morais:

Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado.[6]

Não só os serviços prestados pelas entidades arquivistas são compatíveis com o princípio da igualdade, como ajudam a preservá-lo dentro das relações de mercado, sob o prisma de que o Estado e a sociedade não devem tratar da mesma maneira quem cumpre com suas obrigações, honrando suas dívidas, e aquele que procura esquivar-se dos seus compromissos e fraudar credores. Assim, procura-se com isso atingir o bem comum, o interesse público de manter a ordem e a segurança nas relações.

Celso Ribeiro Bastos, comentando o princípio da isonomia, discorre in verbis:

É crucial que nenhuma lesão existe ao princípio se os critérios discriminatórios forem aqueles que encerram valores prezados pela sociedade. Então, seria lícito vedar o acesso á pessoas desonestas, desonradas, grosseiras, de má reputação.[7]

De acordo com a explanação do jurista, infere-se que a manutenção de cadastro de informações sobre consumidores inadimplentes, com o objetivo de resguardar as relações de crédito, constitui atividade plenamente vinculada à defesa de valores aceitos pela própria sociedade, como a honra no compromisso das obrigações, a segurança dos negócios, bem como o repúdio à má-fé.

Diante de tais ponderações, o ordenamento jurídico admitiu a importância das entidades de proteção ao crédito, legitimando-as como entidades de caráter público através do Código de Defesa do Consumidor, onde existem limitações à prestação de seus serviços, cujo objetivo maior está em conciliar a atividade exercida pelos bancos de dados e a garantia dos direitos fundamentais à honra, imagem, privacidade e intimidade, os quais vinculam todas as entidades mantenedoras desses serviços.

 

Bibliografia
COVIZZI, Carlos Adroaldo Ramos. Práticas Abusivas da SERASA e do SPC. 1º ed. São Paulo: Editora Edirpo.1999.
BESSA, Leonardo Roscoe. Os Consumidores e os Limites dos Bancos de Dados de Proteção ao Crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2003.
BENJAMIN, Antonio Herman Vasconcellos et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 6º ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária.1999.
MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 9º ed. São Paulo: Editora Atlas. 2001
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 19º ed. São Paulo: Editora Saraiva. 1998.
__________. Comentários à Constituição do Brasil: 2º Volume. São Paulo: Editora Saraiva. 1989.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 8º ed. São Paulo: Editora Saraiva. 2003.
AMARANTE, Aparecida I. Responsabilidade Civil por Dano à Honra. 4º ed. Belo Horizonte, MG: Editora Delrey. 1998.
CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. 2º ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1988.
MARQUES, Claudia Lima et al. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: Arts. 1º a 74, Aspectos Materiais. 1º ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2004.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 2º ed. São Paulo: Editora Saraiva. 2003.
SANTOS, Antonio Jeová da Silva. Dano Moral Indenizável. 2º ed. São Paulo: Editora Lejus. 1999.
SANTANA, Heron José. Responsabilidade Civil por Dano ao Consumidor. Belo Horizonte, MG: Editora Nova Aliança Edições Ltda. 1997.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 9º ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2000.
MORAIS, Bonatto Paulo Valério Dal Pai Morais. Questões Controvertidas no Código de Defesa do Consumidor. 5º ed. Porto Alegre, RS: Editora Livraria do Advogado. 2003.
Notas
[1] Leonardo Roscoe Bessa. Os Consumidores e os Limites dos Bancos de Dados de Proteção ao Crédito. p. 51/52
[2] . O princípio da proporcionalidade e as sanções penais nos contratos administrativos. Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2736. Acesso em 22/04/2005.
[3] André Ramos Tavares, Curso de Direito Constitucional, p. 86
[4] Alexandre de Morais, Direito Constitucional, p. 61
[5] Celso Ribeiro Bastos, Comentários à Constituição do Brasil, p. 5
[6] Alexandre de Morais. Ob. cit, p. 65
[7] Celso Ribeiro Bastos. Ob. Cit., p. 184

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Washington Araújo Carigé Filho

 

Bacharel em Direito pelas Faculdades Jorge Amado, Salvador/BA, consultor jurídico do departamento jurídico do SPC/Salvador, departamento da Câmara de Dirigentes Lojistas de Salvador

 


 

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