A motivação do recebimento da acusação: uma garantia constitucional do processo penal

Em síntese, a partir de uma visão garantista, o trabalho critica a pouca importância que se tem dado, na prática, à obrigatoriedade de motivação das decisões de recebimento da denúncia ou queixa, notadamente nesta última hipótese (não enfrentada pela doutrina). Aborda o fenômeno do "recebimento implícito" e destaca o Projeto de "reforma" do CPP. Trata da natureza decisória desse ato jurisdicional em confronto com o art. 93, IX, da CF, analisando o controle político desta garantia. Finaliza com a crítica visando à mudança de postura judicial a fim de alcançar-se, na lição de Ferrajoli, além de normatividade, a necessária efetividade do comando constitucional.

1. INTRODUÇÃO.

A praxe forense tem revelado uma lamentável realidade que não se coaduna com o processo penal constitucional [1]: denúncias e queixas recebidas por meio de despachos formulários, etiquetas padronizadas ou mera aposição de carimbo, muitas vezes pelo próprio serventuário da justiça, no anverso da peça acusatória. Nesse contexto, tem-se admitido até a completa omissão quanto à exposição dos motivos pelos quais o magistrado acolheu liminarmente a inicial penal, tal como se dá no chamado recebimento implícito [2], quando o juiz limita-se a ordenar a citação e designar data para interrogatório, entendendo-se que, desta forma, recebeu tacitamente a acusação ofertada.

O presente trabalho propõe-se, em síntese, a questionar as razões invocadas para justificar essa prática censurável e demonstrar que, assim agindo, estar-se-á violando a garantia constitucional insculpida no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal e afrontando um dos pilares do processo penal garantista.

2. NATUREZA DECISÓRIA DO RECEBIMENTO E IMPORTÂNCIA DA FASE PROCESSUAL.

Como reflexo da pouca importância dada a esse relevante momento processual, sustenta a jurisprudência que o pronunciamento judicial que examina a admissibilidade da acusação seria classificado como um despacho ordinatório ou de mero expediente, eis que destituído de carga decisória, de modo a dispensar sobre ele qualquer fundamentação. Na definição do professor Fernando da Costa Tourinho Filho [3], “os despachos de expediente são atos singelos, pertinentes à movimentação do processo”.

Entretanto, em face das graves conseqüências acarretadas, é inegável que se está diante de um ato jurisdicional com forte conteúdo decisório, que delibera sobre importante questão, qual seja, a admissibilidade da acusação.

É nesse momento, com efeito, que se tem por ajuizada a ação, instaurando-se a instância penal. Ademais, o recebimento da peça vestibular pode determinar a prevenção do juízo competente, nos termos do art. 83 do Código de Processo Penal, além de constituir causa de afirmação da competência para fins de habeas corpus, vale dizer, a partir daí o juiz torna-se autoridade coatora caso impetrado o writ constitucional para, por exemplo, sobrestar a ação penal por ausência de justa causa. Há, também, outros efeitos de índole material relevantes: consoante o art. 117, inciso I, do Código Penal, “o recebimento da denúncia ou da queixa” é causa interruptiva da prescrição da pretensão punitiva; a admissibilidade da imputação constitui marco para incidência da minorante obrigatória prevista no art. 16 do Diploma Penal.

Ora, em virtude de tantas repercussões, penais e processuais, força é convir que, diversamente do que se afirma em muitos julgados, não se trata de mero despacho, mas de autêntica decisão, classificada, segundo a doutrina majoritária, como interlocutória simples. De fato, essa é a mesma conclusão a que chega o professor Marcellus Polastri Lima [4], ao afirmar: “não fosse reconhecida a natureza decisória, poucos atos no processo poderiam almejar tal reconhecimento”.

Merece registro o fato de que o art. 44, § 2°, da chamada Lei de Imprensa (Lei n° 5.250/67), prevê o cabimento de recurso em sentido estrito para combater o recebimento da denúncia ou da queixa. Seria, pois, inconcebível que o próprio ordenamento disciplinasse o manejo de um recurso com vistas a impugnar um mero despacho, que, como cediço, é irrecorrível.

Desse modo, firmada a natureza decisória do ato jurisdicional que admite a acusação, a sua devida fundamentação constitui imperativo constitucional consagrado no art. 93, inciso IX, da Carta Política.

Cumpre salientar, enfim, que, visando a sepultar de vez com a controvérsia, o projeto de reforma parcial do Código de Processo Penal que tramita no Congresso Nacional (Projeto de Lei n° 4.207/2001) consigna expressamente a aplicação dessa garantia constitucional, senão vejamos o que diz o caput do novel art. 396: "O juiz, fundamentadamente, decidirá sobre a admissibilidade da acusação, recebendo ou rejeitando a denúncia ou queixa” (grifou-se).

Importante sublinhar que, nessa decisão, deve o juiz, ao revés de tratá-la com o pouco valor que se tem dado na prática, proceder a uma criteriosa avaliação a fim de evitar, inclusive, os transtornos que uma acusação temerária ou infundada pode trazer ao cidadão inocente. Isto porque o só fato de figurar no pólo passivo de um processo penal, sujeitando-se a todas as suas cerimônias degradantes, já representa um pesado gravame ao status dignitatis do indivíduo. Trata-se de verdadeira via crucis [5] a ser enfrentada pelo acusado que se encontra nessa posição, notadamente em face da inquestionável estigmatização social a que é submetido.

Confira-se, a propósito, o pensamento do professor Aury Lopes Júnior [6]: “A pessoa submetida ao processo penal perde sua identidade, sua posição de respeitabilidade social, passando a ser considerada desde logo como delinqüente, ainda antes mesmo da sentença e com o simples indiciamento. Em síntese, recebe uma nova identidade, degradada, que altera radicalmente sua situação social”.

Daí porque o mencionado autor critica a ausência na legislação de previsão genérica de uma fase processual intermediária, “um juízo contraditório de pré-admissibilidade da acusação” [7], designada pela doutrina como defesa preliminar, a exemplo do que já ocorre nas ações penais de competência originária dos Tribunais (art. 4° da Lei n° 8.038/90) e no procedimento especial dos crimes funcionais (art. 514 do CPP), objetivando, inclusive, amenizar os perigos de uma denúncia (ou queixa) direta, hipótese em que a pretensão acusatória é formulada sem o amparo de prévio inquérito policial.

Assim, além da análise quanto ao suporte probatório mínimo para viabilizar a acusação, deve o juiz, nessa fase inaugural do procedimento, apreciar, em decisão concisa e técnica, a observância dos requisitos formais previstos no art. 41 do Código de Processo Penal, a presença das condições da ação, pressupostos processuais e, havendo expressa exigência legal, das condições de procedibilidade.

Desse modo, ao contrário do que se encontra assentado em algumas decisões judiciais, não se estará prejulgando a causa, conhecendo a matéria com profundidade, porquanto o pronunciamento se baseará em juízo de cognição sumária [8], destinado tão-só a verificar a existência do fumus commissi delicti para autorizar a admissão da inicial penal.

3. O RECEBIMENTO NA AÇÃO PENAL DE INICIATIVA PRIVADA.

Convém ressaltar que a doutrina que trata da admissibilidade da acusação não costuma fazer a merecida abordagem acerca do recebimento da queixa, peça acusatória da ação penal de iniciativa privada. Nada obstante, deve-se ponderar que, aqui, a necessidade de se proceder a uma análise mais acurada dessa fase processual (o que inevitavelmente se dará quando a exigência de motivação for, de fato, observada) ganha especial relevo, ensejando maior rigor na atividade de fiscalização por parte do juiz.

Com efeito, não se pode negar que, quando a acusação fica a cargo do próprio ofendido, existe uma natural tendência em se cometer exageros, com a probabilidade de haver, por exemplo, excesso de capitulação por parte do legitimado ativo, tendo em vista que, ao contrário do órgão do Ministério Público, não atua aquele sob o manto da imparcialidade. Sem mencionar, ainda, a real possibilidade de a vítima, movida muitas vezes por sentimentos de vingança, até mesmo utilizar-se do Poder Judiciário para fins escusos, por meio de imputações absolutamente infundadas ou, como é muito comum nos crimes contra a honra, de persecuções políticas [9].

Assim é que uma apreciação cuidadosa, seguida de decisão fundamentada, afastará os riscos dessas eventuais ocorrências.

4. SOBRE A GARANTIA DO ART. 93, INCISO IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Releva notar que há mais de uma década antes da promulgação da Carta Política de 1988, o professor José Carlos Barbosa Moreira [10] já sustentava ser necessária a positivação de uma norma constitucional que impusesse a obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais, o que, segundo ensinava o mestre, “constitui garantia inerente ao Estado de Direito”.

Assim foi que, anos depois, o constituinte originário atendeu a esses reclamos, prescrevendo, no art. 93, inciso IX, que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade” [11].

Observe-se que não é comum o texto constitucional cominar expressamente a sanção de nulidade para os casos de inobservância de suas normas, pois bastaria a desconformidade com estas para gerar tal efeito. Todavia, levando em consideração que a ausência de fundamentação é vício de tamanha gravidade, o legislador constituinte, no art. 93, inciso IX, optou por reafirmar, em tom eloqüente, que o descumprimento do preceito implicará a nulidade da decisão, enfatizando, assim, a importância dessa garantia.

De fato, o dever inafastável de fundamentar os pronunciamentos jurisdicionais constitui um instrumento de limitação do exercício do poder estatal, demonstrando-se que não resultaram do arbítrio. É através da adequada justificação do convencimento judicial que se permite às partes controlar a racionalidade da decisão e a correção do julgado, verificando-se, por exemplo, se foram obedecidas as regras do devido processo, se o juiz atuou com imparcialidade e dentro da legalidade, se examinou todas as questões que lhe foram postas etc., o que, ressalte-se, viabiliza o exercício da ampla defesa e facilita a submissão do ato judicial viciado a um órgão superior para a reparação de injustiças.

Ao lado da utilidade desse controle endoprocessual, costuma-se apontar também outros objetivos, de índole extraprocessual, para a obrigatoriedade da motivação, dentre eles o de servir como influência para outras manifestações judiciais em casos análogos e o de submeter à opinião pública as razões que inspiraram a decisão, propiciando, como decorrência do Estado Democrático de Direito, a participação popular na administração da justiça. Tal se dá porque a investidura dos membros do Poder Judiciário não decorre, como é notório, do sufrágio popular, de modo que a legitimação do poder estatal soberano a eles confiado só pode ser verificada a posteriori, mediante a análise do escorreito exercício de suas funções. Trata-se, pois, do chamado controle político [12].

CONCLUSÃO.

Estabelecida, estreme de dúvidas, a natureza decisória do ato judicial de admissibilidade da denúncia ou queixa, e levando-se em conta a importância dessa fase inaugural do processo, impõe o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, como garantia do cidadão, a demonstração explícita das razões do convencimento judicial que autorizam seja formalizada a acusação. O problema a ser enfrentado, portanto, é de mudança de postura dos magistrados com atuação na seara criminal, com vistas a conferir efetividade [13] a mais essa garantia constitucional.

 

Notas:
[1] Para uma abordagem ampla, cf. FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 1999.
[2] “O Código de Processo Penal não reclama explicitude ao ato de recebimento judicial da peça acusatória. O ordenamento processual penal brasileiro não repele, em conseqüência, a formulação, pela autoridade judiciária, de um juízo implícito de admissibilidade da denúncia. O mero ato processual do juiz – que designa, desde logo, data para interrogatório do denunciado e ordena-lhe a citação – supõe o recebimento tácito da denúncia” (STF – HC 68926/MG – 1ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 28.08.92, p. 13.453).
[3] Processo Penal. 22ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2000, vol. 3. p. 82.
[4] Ministério Público e Persecução Criminal. 2ª ed. rev. e atual., Rio de janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 236.
[5] O termo é encontrado na clássica obra de Francesco Carnelutti. As Misérias do Processo Penal. São Paulo: Edicamp, 2001, p.73.
[6] Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 51.
[7] Ibidem, p. 158.
[8] Esta pode ser entendida, nas palavras do professor Kazuo Watanabe, no sentido de “cognição superficial que se realiza em relação ao objeto cognoscível constante de um dado processo”. Trata-se, pois, de restrição à cognição no plano vertical, é dizer, quanto ao grau de sua profundidade, o que permite juízos de probabilidade e verossimilhança, a exemplo das medidas liminares e da “antecipação da tutela” prevista no art. 273 do CPC. No contexto processual penal, não se confunde com o juízo de certeza imprescindível para sustentar uma condenação, esta sim firmada com base em cognição exauriente ou completa. Para uma visão ampla, cf. WATANABE, Kazuo. Da Cognição no Processo Civil. 2ª ed. atual., Campinas: Bookseller, 2000.
[9] A expressão é empregada por Luigi Ferrajoli, referindo-se aos casos de patologia judiciária, em sua obra Diritto e Ragione: Teoria Del Garantismo Penale. 6ª ed., Roma: Laterza/ Ana Paula Zomer et alii (trad.), São Paulo: RT, 2002, p. 587.
[10] Temas de Direito Processual. Segunda Série. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 95.
[11] Texto originário, cujo conteúdo, nesse ponto, foi integralmente mantido pelo Poder Constituinte derivado reformador na nova redação dada pela Emenda Constitucional n° 45/04 ao citado dispositivo.
[12] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A Motivação das Decisões Penais. São Paulo: RT, 2001.
[13] Sobre o contraste entre efetividade e normatividade, confira-se a insuperável obra de Luigi Ferrajoli, op. cit.

Informações Sobre o Autor

Eduardo Vaz Porto

Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral, Assessor de Juiz-Membro do TRE/BA


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