Delação premiada e proteção aos réus colaboradores: Lei n° 9.807/99

São estes os dispositivos legais da Lei n° 9.807/99 que estabelecem as condições para a concessão do(s) benefício(s):

Art. 13: Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:

I- a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa;

II- a localização da vítima com a sua integridade física preservada;

III- a recuperação total ou parcial do produto do crime

parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.

Art. 14: O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços

Não se trata aqui de proteger testemunhas ou vítimas, mas réus que decidam colaborar com a investigação ou com o processo criminal – na identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa; na localização da vítima com a sua integridade física preservada e na recuperação total ou parcial do produto o crime. Ao que tudo indica, o dispositivo legal trata de acusados que colaborem com a investigação ou processo relativos ao mesmo caso. Mas daí surge a primeira pergunta: E se os acusados colaborarem com a investigação de outro caso – com este relacionado, de alguma das formas acima descritas? Acreditamos que nesse caso o correto seria aplicar o instituto da delação premiada que vem previsto na Lei n° 9.034/95, pelas razões que especificamos logo abaixo quando nos referimos a ela.

Referindo a Lei a “demais co-autores ou partícipes”, evidentemente que somente os casos em que o(s) crime(s) seja(m) praticados mediante concurso de pessoas serão alcançados pelos dispositivos, com nítida e evidente preferência para aqueles que envolvam atuação de organizações criminosas, mas parece também claro que tratando-se de quadrilha ou bando e mesmo nos casos de crimes graves haverá possibilidade de sua aplicação.

O que não se pode conceber é a utilização da aplicação do benefício a casos de prática de crimes de baixa ou média potencialidade ofensiva, pois nada justifica a desproporção entre o alto grau do benefício concedido e a pequena equivalência de retorno para a administração da justiça. Mas a análise sempre dependerá do caso concreto. Exemplificamos para melhor especificar o alcance do espírito do dispositivo. Tomemos duas situações distintas relativas a “furto de veículo”: 1) Se no decorrer da investigação ou do processo constata-se que a prática do crime decorreu de parceria entre aquele que o executa, quebrando o vidro e fazendo a ligação direta, com apenas aquele que vigia e dá cobertura, a princípio não se justificaria conceder o benefício ao primeiro para que delate o segundo; 2) Entretanto, se o ladrão pertence a uma organização criminosa voltada para o furto de veículos, existindo como verdadeira empresa, que depois mantém estrutura de retaguarda para adulterações, desmanche e/ou revenda, desde que a justiça tenha alguma dificuldade na identificação de co-autores ou fatos, pode justificar-se a concessão do benefício.

Evidente que o espírito da Lei é pelo acordo decorrente da colaboração e não da concessão gratuita de benefício.

Por isso que de nada adianta trazer ao conhecimento da Polícia ou do Ministério Público a identificação de co-autores cujas práticas criminosas já se tornaram conhecidos. Se revelarem novos fatos ou apontarem provas a eles referentes, quer nos parecer, igualmente seriam admitidos os benefícios, já que o intuito da Lei aponta no sentido de contemplar aquele criminoso arrependido que delata seus parceiros, incentivando essa prática. Com isto possibilita-se à Justiça o conhecimento de fatos que tardariam mais tempo a se conhecer mediante as vias comuns da investigação e concede-se algo em troca em termos de abrandamento ou até extinção de punibilidade.

O artigo 13 da Lei contempla o acusado primário com perdão judicial, a requerimento das partes ou mesmo por decisão de ofício do Juiz. Estabelece aí, na primeira hipótese,  o que a doutrina estrangeira chama de “princípio do consenso”. Como o dispositivo utiliza o termo “a requerimento das partes”, e considerando tratar-se de instituto relativo a colaboração, ou seja, mútua cooperação,  parece mais lógico supor que as partes acordem na colaboração e conseqüente delação – que seja proveitosa – e assinam acordo de perdão judicial. A redação do dispositivo – “a requerimento das partes” – sugere formulação de petição conjunta entre o Ministério Público e o acusado, afastando a possibilidade de requerimento apresentado apenas por uma das partes. A discordância terá peso fundamental, pois o Promotor é que estará apto a dizer se a colaboração terá sido mesmo eficaz ou não, tópico que analisamos pouco à frente.

Importante que nos atenhamos preferencialmente ao inciso “I” do dispositivo, pois os demais não oferecem maiores dificuldades de interpretação. Queremos crer que a colaboração deva ser de fato muitíssimo eficiente para viabilizar a um criminoso pertencente a uma organização criminosa obter o perdão judicial. Significa, segundo parece, uma espécie diferenciada de “perdão judicial”. Isso porque segundo o conceito originariamente implantado no nosso sistema jurídico, o “perdão judicial” busca deixar de punir aquele que tenha sofrido conseqüência social tão grave decorrente da sua própria conduta, que pode-se considerar por aplicada e cumprida a sua pena.

No caso em pauta o agente não sofre conseqüências sociais quaisquer, mas tão somente legais, na medida em que a sua autoria foi desvelada e com razoável grau de convicção pela justiça, a ponto do acusado compreender e admitir essa situação e dar-se por vencido, confessando a sua participação e a de outros. Difere-se na causa. Enquanto aquela decorre das conseqüências sociais experimentadas pela prática do fato criminoso, esta decorre da colaboração voluntária e efetiva à Justiça. Voluntária – porque deve tomar a iniciativa de colaborar e efetiva porque deve trazer pessoas e fatos novos que efetivamente ou eficazmente auxiliem a persecução penal. O termo efetividade confunde-se aí portanto com eficácia ou eficiência. Voluntariamente significa  – que procede espontaneamente, derivado da vontade própria; e efetivo, provém da qualidade do que tem efeito, real, verdadeiro, positivo, permanente, ou eficiência: virtude de produzir efeito, eficáciaque produz efeito, que dá bom resultado. Seria evidentemente repetitivo dizer voluntário e efetivo com o mesmo significado. A Lei não contém palavras inúteis e então o termo “efetividade” significa, em sua segunda acepção – eficiência, ou ser eficaz.

Além do mais, não se poderia imaginar um criminoso confesso envolvido por exemplo em criminalidade organizada pretender ter colaborado ineficientemente com a investigação e receber em troca o perdão judicial. Seria dar muito em troco de nada, e o espírito da Lei é exatamente a contraprestação. Para ter direito ao benefício, voluntariedade não basta, é preciso que seja realmente eficaz.

Mesmo não se tratando de integrante de organização criminosa, pelas mesmas razões, a colaboração deve ser de considerável benefício à investigação ou ao contexto probatório. Considerando que se trate de verdadeira “negociação” das situações jurídicas, – contexto probatório <> situação processual do suspeito/acusado, deve existir correlação de equivalência, com vantagens para ambos, para que se perfaça o “acordo”. Não se pode conceber a entrega de perdão judicial a troco de pequena ou ineficaz colaboração, para que não se transforme em injusto instrumento de impunidade.

As condições estabelecidas no caput e nos incisos do artigo 13 da Lei são objetivos, mas a sua concessão é facultativa, pois, mesmo preenchidos aqueles requisitos, decreta a Lei: “Poderá o juiz”… Então, se o acusado colaborar voluntária e eficientemente, reconhecidamente pela Justiça, sendo primário e dentro dos parâmetros estabelecidos, poderá ser aplicado o perdão judicial. Para tanto a justiça deve decidir se a colaboração foi eficiente ou não – como um todo. Não existirá razoável eficiência, na medida em que o beneficiário informe apenas os nomes e condutas de alguns dos co-autores, ocultando intencionalmente outros, por qualquer razão. Como a Lei não contém palavras inúteis,  deverá o Juiz, nesse exemplo, decidir se, com os nomes e fatos revelados ele auxiliou eficientemente ou não, para então conceder-lhe, ou não, o único benefício previsto, o perdão judicial.

Estabelece o parágrafo único do mesmo artigo que “a concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso”. Se a voluntariedade e a efetividade previstos no caput são requisitos intrínsecos, relativos à participação do agente; já a personalidade diz respeito ao seu aspecto subjetivo e os demais – natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso são requisitos objetivos – ou seja, ligados aos fatos criminosos praticados. Assim, ainda que a colaboração tenha sido efetiva e voluntária existirão ainda estes requisitos à aprovação da medida, que deverão ser inevitavelmente enfrentados na sua fundamentação. Nestes termos, intuitivamente, não haverá como conceder perdão judicial ao réu confesso e colaborador que, por exemplo, no âmbito de suas condutas criminosas houver praticado, por exemplo, algum crime considerado hediondo.

Já o artigo 14 da Lei estabelece a redução da pena, de um a dois terços, ao acusado não primário (a contrariu sensu) que colaborar da mesma forma. Embora a Lei não diga expressamente, acreditamos que a realização de acordo – em petição conjunta entre as partes aí também seja viável. Apesar da Lei utilizar o termo “terá a pena reduzida”, trata-se, igualmente, de facultatividade do juiz, desde que preenchidos aqueles requisitos previstos. Não haveria sentido a previsão de facultatividade para a concessão de perdão judicial – no artigo 13, em caso de primariedade, e obrigatoriedade de diminuição de pena – no dispositivo seguinte, em caso de não primariedade. Seria premiar o reincidente em detrimento do primário, quando as demais condições legais são equivalentes. Seria entregar o garantido ao reincidente e o incerto ao réu primário. Ademais, em ambos os casos as circunstâncias são claramente vantajosas ao acusado e, como dito, exigem a sua contraprestação a contento, cujo teor deve ser analisado pelo Poder Judiciário.

Os dispositivos indicam que a delação somente pode ter alcance para as situações do processo em trâmite, sem alcançar outros Feitos. A literalidade do dispositivo quando determina: I- a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa; ao invés de I- a identificação de demais co-autores ou partícipes da Organização Criminosa; (grifos nossos), interpretamos, quer apontar solução para que não se aproveite a delação a casos externos, mas tão somente ao Feito em que se inserem os fatos. A solução de aplicação da delação em sentido mais amplos, para outros Feitos, acreditamos, é encontrada na Lei n° 9.034/95, como veremos adiante.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Marcelo Batlouni Mendroni

 

Promotor de Justiça/SP – GEDEC, Doutor em Processo Penal pela Universidad de Madrid, Pós-Doutorado na Università di Bologna/Italia

 


 

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