Conexão e continência e os Juizados Especiais Criminais – A Lei nº. 11.313/2006

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A recente Lei nº. 11.313/06 modificou as leis dos Juizados Especiais Criminais, Estaduais e Federais, que passaram a ter a seguinte redação:


Lei nº. 9.099/95 (grifos nossos):


Art. 60.  O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência.


Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis.


Art. 61.  Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.”


Lei nº. 10.259/2001 (também grifamos):


Art. 2o  Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência. 


Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrente da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis.


Vejamos inicialmente a questão concernente à competência para o julgamento em caso de conexão ou continência envolvendo duas infrações penais, ou dois ou mais agentes, sendo uma de menor potencial ofensivo e outra que não o seja. Neste caso, Damásio de Jesus, por exemplo, sempre entendeu que devia prevalecer o Juízo Comum[1], ao passo que outros possuíam, como nós, entendimento diverso.


Como se sabe, a competência dos Juizados Especiais Criminais é ditada pela natureza da infração penal, estabelecida em razão da matéria e, portanto, de caráter absoluto, ainda mais porque tem base constitucional (art. 98, I da Constituição Federal); neste sentido, Mirabete e Ada, respectivamente:


 “A competência do Juizado Especial Criminal restringe-se às infrações penais de menor potencial ofensivo, conforme a Carta Constitucional e a lei. Como tal competência é conferida em razão da matéria, é ela absoluta, de modo que não é possível sejam julgadas no Juizado Especial Criminal outras infrações, sob pena de declaração de nulidade absoluta.”[2]


A competência do Juizado, restrita às infrações de menor potencial ofensivo, é de natureza material e, por isso, absoluta. Não é possível, portanto, que nele sejam processadas outras infrações e, se isso suceder, haverá nulidade absoluta.”[3]


Igualmente Cezar Roberto Bitencourt, para quem “a competência ratione materiae, objeto de julgamento pelos Juizados Especiais Criminais, apresenta-se da seguinte forma: crimes com pena máxima cominada não superior a um ano e contravenções penais.”[4]


O Professor Sidney Eloy Dalabrida também já escreveu:


A competência do Juizado Especial Criminal foi firmada a nível constitucional (art. 98, I, CF), restringindo-se à conciliação (composição e transação), processo, julgamento e execução de infrações penais de menor potencial ofensivo. É competência que delimita o poder de julgar em razão da natureza do delito (ratione materiae), e, sendo assim, absoluta. Logo, na ausência de disposição legal permissiva, é inadmissível a submissão a processo pelo Juizado Especial Criminal de outras infrações penais, sob pena de nulidade absoluta.” ( grifo nosso).[5]


Repita-se que a competência da qual ora falamos tem índole constitucional (art. 98, I da Carta Magna).


A esse respeito, Cezar Bitencourt, afirma que “as infrações que não se caracterizarem como de menor potencial ofensivo, ainda que estejam dentro do limite previsto no artigo 89, não poderão receber a suspensão do processo através do Juizado Especial, posto que a competência será da Justiça Comum.”[6] (grifo nosso).


Como se disse, a competência da qual falamos é ditada ratione materiae e, como tal, tem caráter absoluto (mesmo porque delimitada pela Constituição, secundada pela lei federal), sendo nulos todos os atos porventura praticados, não somente os decisórios, como também os probatórios, “pois o processo é como se não existisse.”[7]


Se assim o é, ou seja, se a própria Constituição estabeleceu a competência dos Juizados Especiais Criminais para o julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo, é induvidoso, ainda que estejamos à frente de uma conexão ou continência, não ser possível o simultaneus processus com a aplicação da regra contida no art. 78 do Código de Processo Penal. Ademais, ressalva-se que o próprio CPP, no art. 80, permite a separação de processos mesmo sendo o caso de conexão ou continência, quando, por exemplo, “o juiz reputar conveniente a separação por motivo relevante.” Logo, ainda que a separação não fosse ditada pelo art. 98, I da Constituição, poderia sê-lo por força do art. 80 do Código, por ser conveniente a separação, pois o rito nos Juizados Especiais Criminais é completamente diferente (e mesmo inconciliável) com o rito ordinário (e com outros especiais).


Eis a lição da doutrina:


Havendo conexão ou continência, deve haver separação de processos para julgamento da infração de competência dos Juizados Especiais Criminais e da infração de outra natureza. Não prevalece a regra do art. 79, caput, que determina a unidade de processo e julgamento de infrações conexas, porque, no caso, a competência dos Juizados Especiais é fixada na Constituição Federal (art. 98, I), não podendo ser alterada por lei ordinária.”


Sidney Eloy Dalabrida assim entende:


Havendo conexão ou continência entre infrações de menor potencial ofensivo e outras de natureza diversa, via de regra, impõe-se a disjunção de processos, devendo o promotor de justiça, portanto, oferecer denúncias em separado perante os respectivos juízos competentes, face à inaplicabilidade do art. 78, II do CPP, por importar sua incidência em afronta à Constituição Federal.”[8]


Observe que devemos interpretar as leis ordinárias em conformidade com a Carta Magna, e não o contrário! Como escreveu Frederico Marques, a Constituição Federal “não só submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade, como ainda subordina todo o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que é condição de legitimidade de todo o imperativo jurídico. A conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todos.”[9]


É bem verdade que a própria Lei nº. 9.099/95 prevê duas hipóteses em que é afastada a sua competência (arts. 66, parágrafo único e 77, § 2o.), mas este fato não representa obstáculo ao que dissemos, pois se encontra dentro da faixa de disciplina possível para a Lei n. 9.099/95, permitida pelo art. 98 da Constituição. Em outras palavras: ao delimitar a competência dos Juizados, poderia a respectiva lei, autorizada pela Lei Maior, estabelecer exceções à regra, observando, evidentemente, os critérios orientadores estabelecidos pela própria lei. O que não se pode é utilizar-se o Código de 1941 para afastar a competência dos Juizados, constitucionalmente ditada.


Efetivamente, na Lei nº. 9.099/95 há duas causas modificadoras da competência: a complexidade ou circunstâncias da causa que dificultem a formulação oral da peça acusatória (art. 77, § 2º.) e o fato do réu não ser encontrado para a citação pessoal (art. 66, parágrafo único). Porém, o certo é que tais disposições não ferem a Constituição Federal, pois as duas hipóteses se ajustam perfeitamente aos critérios da celeridade, informalidade e economia processual propostos pelo legislador (art. 62). Nada mais razoável e proporcionalmente aceitável que retirar dos Juizados Especiais o réu citado por edital (ao qual será aplicado, caso não compareça, o art. 366 do CPP) e um processo mais complexo: são circunstâncias que, apesar de excluírem a competência dos Juizados, ajustam-se perfeitamente àqueles critérios acima indicados e são, portanto, constitucionalmente aceitáveis.


Observa-se que se as leis respectivas “podem definir quais são as infrações, podem, também, o menos, que é excluir aquelas que, mesmo sendo de menor potencial ofensivo, não são recomendadas para serem submetidas ao Juizado, desde que não se subtraia de todo a competência estabelecida constitucionalmente”, como bem anotou Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho.[10] (grifo nosso).


Este entendimento prevalece mesmo tratando-se de delito de menor potencial ofensivo conexo com um crime contra a vida, hipótese em que ao Tribunal do Júri caberá exclusivamente o julgamento do delito contra a vida, posição que não fere em absoluto o art. 5º., XXXVIII, d, da Carta Magna, pois ali não há exigência do Júri em julgar também os crimes conexos àqueles. A Constituição reserva ao Júri a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, e tão-só. Os crimes conexos devem também ser julgados pelo Tribunal Popular (art. 78, I, CPP), salvo aqueles cuja competência extraia-se da Constituição Federal (como os de menor potencial ofensivo).


Neste sentido, a Seção Criminal do Tribunal de Justiça de Goiás julgou improcedente o conflito de competência negativo suscitado pelo 1º juiz do Juizado Especial Criminal de Anápolis contra o juiz da 1ª Vara Criminal da mesma comarca (julgamento proferido antes da Lei nº. 11.313/06). A seção entendeu que, mesmo em caso de crimes conexos, os Juizados Especiais atraem da Justiça comum a competência para o julgamento do feito. Segundo o Desembargador Aluízio Ataídes de Sousa, a competência é do Juizado Especial porque nele o agente tem o direito de não ser denunciado para não sofrer constrangimento ilegal. “Aliás, assim entendeu, e o fez corretamente, o Ministério Público de primeiro grau, ao requerer a designação de audiência preliminar sem oferecer denúncia“, argumentou. O acusado responde por dois crimes: lesão corporal leve e tentativa de homicídio. A ementa do acórdão recebeu a seguinte redação: “Conflito negativo de competência. Crimes de menor potencial ofensivo conexos com crimes da competência do Júri. Vis Atractiva. Inexistência. Nas infrações de menor potencial ofensivo, assim definidas no artigo 61 da Lei nº 9.099/95, praticadas em conexão com crimes da competência do Júri, não prevalece a vis atractiva estabelecida no art. 78, I CPP, porque, naquelas, o agente tem o direito, em tese, de não ser denunciado, pena de sofrer constrangimento ilegal. Conflito negativo de competência improcedente.” Fonte: www.ultimainstancia.com.br – 21/10/2004.


Destarte, subtraindo a competência dos Juizados Especiais Criminais, a referida lei incidiu em flagrante inconstitucionalidade, pois a competência determinada expressamente pela Constituição Federal não poderia ter sido reduzida por lei infraconstitucional (inconstitucionalidade formal).


A propósito, veja um trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2.797-2:


“(…) Esta Suprema Corte, ao exercer o seu poder de indagação constitucional – consoante adverte CASTRO NUNES (“Teoria e Prática do Poder Judiciário”, p. 641/650, 1943, Forense) – deve ter presente, sempre, essa técnica lógico-racional, fundada na teoria jurídica dos poderes implícitos, para, através dela, mediante interpretação judicial (e não legislativa), conferir eficácia real ao conteúdo e ao exercício de dada competência constitucional, consideradas as atribuições do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça[11], tais como expressamente relacionadas no texto da própria Constituição da República. (…) Vê-se, portanto, que são inconfundíveis – porque inassimiláveis tais situações – a possibilidade de interpretação, sempre legítima, pelo Poder Judiciário, das normas constitucionais que lhe definem a competência e a impossibilidade de o Congresso Nacional, mediante legislação simplesmente ordinária, ainda que editada a pretexto de interpretar a Constituição, ampliar, restringir ou modificar a esfera de atribuições jurisdicionais originárias desta Suprema Corte, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça estaduais[12], por tratar-se de matéria posta sob reserva absoluta de Constituição. (…) Em suma, Senhora Presidente, o Congresso Nacional não pode – simplesmente porque não dispõe, constitucionalmente, dessa prerrogativa – ampliar (tanto quanto reduzir ou modificar), mediante legislação comum, a esfera de competência originária do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados[13]. (…) O ponto está em que às leis ordinárias não é dado impor uma dada interpretação da Constituição. De tudo resulta que a lei ordinária que se limite a pretender impor determinada inteligência da Constituição é, só por isso, formalmente inconstitucional. (…) Coisa diversa, convém repisar, é a lei pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: aí, a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação de norma de hierarquia superior. (…) Daí a correta lição expendida pelo ilustre magistrado ANDRÉ GUSTAVO C. DE ANDRADE (“Revista de Direito Renovar”, vol. 24/78-79, set/dez 02), que também recusa, ao Poder Legislativo, a possibilidade de, mediante verdadeira “sentença legislativa”, explicitar, em texto de lei ordinária, o significado da Constituição. Diz esse ilustre autor: “Na direção inversa – da harmonização do texto constitucional com a lei – haveria a denominada ‘interpretação da Constituição conforme as leis’, mencionada por Canotilho como método hermenêutico pelo qual o intérprete se valeria das normas infraconstitucionais para determinar o sentido dos textos constitucionais, principalmente daqueles que contivessem fórmulas imprecisas ou indeterminadas. Essa interpretação de ‘mão trocada’ se justificaria pela maior proximidade da lei ordinária com a realidade e com os problemas concretos. O renomado constitucionalista português aponta várias críticas que a doutrina tece em relação a esse método hermenêutico, que engendra como que uma ‘legalidade da Constituição a sobrepor-se à constitucionalidade das leis’. Tal concepção leva ao paroxismo a idéia de que o legislador exercia uma preferência como concretizador da Constituição. Todavia, o legislador, como destinatário e concretizador da Constituição, não tem o poder de fixar a interpretação ‘correta’ do texto constitucional. Com efeito, uma lei ordinária interpretativa não tem força jurídica para impor um sentido ao texto constitucional, razão pela qual deve ser reconhecida como inconstitucional quando contiver uma interpretação que entre em testilha com este.”


Este nosso entendimento não viola o disposto no Enunciado nº. 704 do Supremo Tribunal Federal, pois ali o que se garante é o julgamento unificado do co-réu com um acusado que detém prerrogativa de função; mas, se o Juiz Natural do co-réu (sem prerrogativa de foro) tem sede constitucional, evidentemente que não se aplica o referido enunciado (é o que se dá, por exemplo, com um crime doloso contra a vida praticado por duas pessoas, uma das quais com prerrogativa de função, hipótese em que haverá separação de processos, pois o Júri julgará o denunciado sem prerrogativa de função, enquanto o outro acusado será julgado pelo respectivo Tribunal, tudo em razão do disposto no art. 5º., XXXVIII da Constituição Federal).


Aliás, a referida lei também é inconstitucional sob o aspecto material, pois afronta o disposto no art. 98, I da Carta Magna. Não se pode, por outro lado, afirmar que a transação penal e a composição civil dos danos seriam tentadas no Juízo Comum, razão pela qual não adviria qualquer prejuízo para o réu. Esta objeção não procede, pois a Constituição Federal é explícita ao garantir ao autor da infração penal de menor potencial ofensivo o procedimento oral e sumariíssimo. Ora, esta garantia não é somente à transação penal e à composição civil dos danos, mas, também, ao próprio procedimento que é, muita vez, mais benéfico que o ordinário. Não esqueçamos que está prevista na Lei nº. 9.099/95 a resposta preliminar (art. 81), o interrogatório como último ato da instrução criminal (art. 81, in fine), prazos maiores para apelar e oferecer embargos de declaração (arts. 82, § 1º. 83, § 1º.)… Tais disposições, apesar do conteúdo eminentemente processual, resvalam no Direito Constitucional (direito ao contraditório e à ampla defesa com os recursos a ela inerentes), daí porque devem ser consideradas, na lição de Américo Taipa de Carvalho, como normas processuais penais materiais, de aplicação obrigatória.


Com efeito, o jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto afirma que “está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material – que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais.[14] Taipa de Carvalho explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “embora processuais, elas são-no também plenamente materiais ou substantivas.”[15]


Informa, ainda, o mestre português que o alemão Klaus Tiedemann “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.[16]


Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci: “Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, – estas excepcionais por natureza.”[17]


Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho:


Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista.[18]


Ademais, existe pelo menos um aspecto prático que desaconselha a aplicação das regras de continência e conexão, senão vejamos: a Lei nº. 9.099/95, no art. 73, prevê a presença de conciliadores, exatamente para auxiliar o Juiz de Direito na composição civil dos danos. Tais auxiliares da Justiça são pessoas do povo, treinadas (o deveriam ser) para esta função e, muitas vezes, mais capacitadas para este mister que o próprio Juiz de Direito. Neste sentido, vejamos Tourinho Filho: “E, às vezes, as pessoas do povo, desconhecedoras do texto legal, têm mais habilidade para encontrar uma solução ou saída para determinadas situações. (…) Assim teremos um sistema político bem participativo, permitindo-se aos cidadãos integrar-se direta e pessoalmente em um dos três Poderes em que se triparte a soberania nacional.”[19]


Diante do exposto, estes dispositivos da nova lei não devem ser aplicados pelo Juiz, pois, como se sabe, o controle de constitucionalidade judiciário no Brasil tem o caráter difuso[20], podendo “perante qualquer juiz ser levantada a alegação de inconstitucionalidade e qualquer magistrado pode reconhecer essa inconstitucionalidade e em conseqüência deixar de aplicar o ato inquinado”, na lição do constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho.[21]


No Superior Tribunal de Justiça já se decidiu que “o controle jurisdicional da constitucionalidade, no regime da constituição vigente, pode ser exercitado via de defesa (difuso), incidentur tantum, por todos os juízes, com efeitos inter partes.” (STJ, 1ª. T., ROMS nº. 746/RJ, Rel. Min. Milton Luiz Pereira, Diário da Justiça, Seção I, 05/10/93, p. 22.451. RSTJ 63/137).


Quanto à definição de infração penal de menor potencial ofensivo, andou bem o legislador da Lei nº. 11.313/2006, pois, unificando (na Lei nº. 9.099/95) o respectivo conceito, sepultou quaisquer dúvidas acaso existentes quanto àquela definição (e quase já não existiam).


É sabido que a redação anterior do art. 61 da Lei nº. 9.099/95 conceituava infração penal de menor potencial ofensivo como sendo todos os crimes cuja pena máxima não excedesse a um ano, excetuados aqueles que obedecessem a um procedimento especial, além de todas as contravenções penais.


Por sua vez, a Lei nº. 10.259/01, que criou os Juizados Especiais Federais Criminais, no parágrafo único do art. 2º., passou a considerar infração de menor potencial ofensivo os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, retirando a ressalva quanto ao procedimento especial, não se referindo, evidentemente às contravenções penais, pois, como se sabe, tais infrações estão excluídas da competência da Justiça Federal, por força do art. 109, IV da Constituição.


Assim, a Lei dos Juizados Especiais Federais conceituou de modo diferente crime de menor potencial ofensivo, derrogando, deste modo, o art. 61 da Lei nº. 9.099/95, que se aproveitava apenas quando tratava das contravenções penais.


Agora, o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo está previsto apenas na Lei nº. 9.099/95, excluindo qualquer outro entendimento que adotasse duas definições a respeito daquela infração penal. A propósito, a expressão “para os efeitos desta lei” é de uma inutilidade ímpar, pois o conceito é para o sistema jurídico-penal brasileiro; se assim não o for, qual a competência dos Juizados Especiais Criminais Federais? O que seriam aquelas infrações penais de menor potencial ofensivo previstas no art. 2º., caput da Lei nº. 10.259/2001?


Aliás, por força do disposto no art. 5º., caput da Constituição Federal que consagra o princípio da igualdade/isonomia, já era um absurdo admitir-se que uma mesma conduta fosse considerada um delito de menor potencial ofensivo (com todas as vantagens advindas) e, em outro momento (tendo em vista, por exemplo, o seu sujeito passivo ou o local onde foi cometida) não o fosse. Evidentemente que uma mesma ação e um resultado igual devem gerar uma mesma conseqüência jurídica. Se desacato um Delegado da Polícia Civil devo ter o mesmo tratamento jurídico-penal dado a quem desacata um Delegado de Polícia Federal; se furto uma televisão, devo ser tratado penal e processualmente da mesma forma de quem furta uma televisão a bordo de um navio ou de uma aeronave. Se um piloto de uma aeronave assedia sexualmente um(a) tripulante, o tratamento penal a ser dado a ele deve ser o mesmo, quer o faça a bordo ou no saguão do aeroporto. É óbvio! Por outro lado, o art. 20 da Lei nº. 10.259/01, não somente se dirige às causas cíveis[22] (tanto que faz referência expressa ao art. 4º. da Lei nº. 9.099/95, que diz respeito ao Juizado Especial Cível), como também tenciona impedir que se aplique o disposto no art. 109, §§ 3º. e 4º. da Constituição Federal[23].


Como lembra Cezar Roberto Bitencourt o que identifica a essência ou lesividade de um delito não é a condição das partes (autor do fato ou vítima), a espécie procedimental ou a natureza da jurisdição (federal ou estadual), mas exatamente a sua potencialidade lesiva. Afirma textualmente o autor citado que, “na verdade, critérios de competência que delimitam a jurisdição penal em federal e estadual não têm legitimidade – científica, jurídica ou política – para estabelecer distinções conceituais sobre a potencialidade lesiva de uma conduta. Com efeito, a ilicitude típica não ganha contornos distintos de acordo com a espécie de jurisdição a que esteja sujeita, de forma a alterar a ofensividade ao bem jurídico.”[24]


Assim, já nos parecia tranqüilo o entendimento que a definição de crime de menor potencial ofensivo havia sido elastecida e unificada.[25]


Neste sentido, várias foram as decisões no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por sua 5a. Câmara Criminal, no julgamento do Recurso em Sentido Estrito nº. 70003736428, tendo como relator o Desembargador Amilton Bueno de Carvalho (v.u., j. 20/02/02). Aliás, neste Estado o assunto praticamente pacificou-se, como se vê nos seguintes julgados: 1- Conflito de Competência N.º 70004091211 (4ª Câm. Criminal), Rel. Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, julgado em 25/04/02; 2- Conflito de Competência N.º 70004086971 (4ª Câm. Criminal), Rel. Des. Vladimir Giacomuzzi, julgado em 25/04/02; 3- Apelação Crime n.º 70003611621 (3ª Câm. Criminal), Rel. Desª. Elba Aparecida Nicolli Bastos, julgado em 18/04/02; 4- Conflito de Competência n.º 70004084935 (4ª Câm. Criminal), Rel. Des. Constantino L. de Azevedo, julgado em 11/04/02; 5- Conflito de Competência n.º 70004091161 (4ª. Câmara Criminal), Rel. Des. Constantino L. de Azevedo, julgado em 11/04/02; 6- Conflito de Competência N.º 70003975208 (1ª. Câmara Criminal), Rel. Des. Silvestre J. A. Torres, julgado em 03/04/02; 7- Conflito de Competência N.º 70003976396 (1ª Câm. Criminal), Rel. Des. Ranolfo Vieira, julgado em 03/04/02; 8- Conflito de Competência N.º 70003927092 (1ª Câm. Criminal), Rel. Des. Silvestre J. A. Torres, julgado em 03/04/02; 9- Apelação Crime nº 70003321627 (3ª Câm. Criminal), Rel. Desembargadora Elba Aparecida Nicolli Bastos, julgado em 14/03/02.


O Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo também já decidira:


Juizado Especial Criminal. Extensão do conceito de menor potencial ofensivo, dado pela Lei n°. 10.259/01, ao âmbito estadual. Necessidade: o conceito de menor potencial ofensivo, dado pela nova lei, deve ser aplicado aos juizados especiais criminais no âmbito da Justiça Estadual, pois não se pode, tomando-se como critério a competência material, criar dois conceitos para essas infrações, visto que haveria violação dos princípios da isonomia, proporcionalidade e razoabilidade, criando tratamento diferenciado para crimes da mesma natureza.” (Acórdão unânime da 10ª. Câmara do TACrimSP – HC nº. 414840/0 – Rel. Juiz Ary Casagrande – j. 07/08/02 – DJ SP I 30.08.02, p. 187 – ementa TACrim). Este mesmo Tribunal de Alçada voltou a julgar no mesmo sentido no HC nº. 419052/0, tendo como Relator o Juiz Guilherme G. Strenger.


Outra não tinha sido a conclusão da 5ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Habeas Corpus nº. 22.881, inclusive em relação aos crimes de abuso de autoridade:


A Lei 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais na Justiça Federal, ampliou o rol de delitos de menor potencial ofensivo. Dessa forma, os processos envolvendo crimes com previsão de penas não superiores a dois anos ou multa, como no caso de abuso de autoridade, podem, mediante análise da Justiça, ter aplicados institutos ´despenalizadores`, como a transação e a suspensão do processo.”


A 5ª.  Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu habeas-corpus a um réu acusado de porte de drogas que foi julgado e condenado pela 4ª. Vara de Entorpecentes do Distrito Federal.  A razão da concessão foi exatamente o fato do crime ter ocorrido após a entrada em vigor da lei que definiu as infrações de menor potencial ofensivo como as que têm pena máxima de até dois anos. Com isso, a Justiça Comum tornou-se absolutamente incompetente para avaliar a matéria. No caso específico, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios havia negado o recurso de apelação da defesa, declinando da competência em favor das turmas recursais dos juizados especiais. Contra a decisão, o réu apresentou habeas-corpus, pedindo que fosse cassada a sentença de primeira instância e todo o feito fosse julgado pelo Juizado Especial Criminal. Para a defesa, “a Turma Recursal não pode modificar, cassar ou manter a sentença de primeiro grau, pois lhe falece competência jurisdicional para tanto, pois o Juiz monocrático não é vinculado à sua jurisdição. Assim, a solução adequada não é o declínio da competência em favor da Turma Recursal, mas em favor do Juizado Especial, cassando a sentença monocrática proferida pelo juízo comum.” A decisão unânime da Turma determinou também que seja dada oportunidade ao Ministério Público para opinar acerca da transação da pena. (HC nº. 34.271 – com informações do STJ).


O Superior Tribunal de Justiça voltou a julgar no mesmo sentido:


CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 36.545 – RS (2002/0119661-3) (DJU 02.06.03, SEÇÃO 1, P. 183, J. 26.03.03).RELATOR: MINISTRO GILSON DIPP. EMENTA: CRIMINAL. CC. CONFLITO ENTRE TRIBUNAL DE JUSTIÇA E TURMA RECURSAL DO JUIZADO ESPECIAL. DECISÕES DA TURMA RECURSAL NÃO VINCULADAS AOS TRIBUNAIS ESTADUAIS. CONFLITO ENVOLVENDO TRIBUNAL E JUÍZES A ELE NÃO VINCULADOS. COMPETÊNCIA DO STJ. JULGAMENTO DE APELAÇÃO CRIMINAL. LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS. APLICABILIDADE AOS CRIMES SUJEITOS A PROCEDIMENTOS ESPECIAIS. LEI 10.259/01. PRINCÍPIO DA ISONOMIA. ALTERAÇÃO DO LIMITE DE PENA MÁXIMA PARA A TRANSAÇÃO PENAL. NATUREZA PROCESSUAL, INCIDÊNCIA IMEDIATA. COMPETÊNCIA ABSOLUTA E IMPRORROGÁVEL. COMPETÊNCIA DA TURMA RECURSAL. A Lei dos Juizados Especiais aplica-se aos crimes sujeitos a procedimentos especiais, desde que obedecidos os requisitos autorizadores, permitindo a transação e a suspensão condicional do processo inclusive nas ações penais de iniciativa exclusivamente privada. Em função do Princípio Constitucional da Isonomia, com a Lei nº. 10.259/01 – que instituiu os juizados especiais cíveis e criminais no âmbito da Justiça Federal, o limite de pena máxima, previsto para a incidência do instituto da transação penal, foi alterado para 02 anos. Tramitando a ação perante a Vara Criminal da Justiça Comum Estadual, e entrando em vigor a nova lei nº. 10.259/01, a competência para apreciar a apelação criminal interposta é da Turma Recursal local, pois, tratando-se de disposição de natureza processual, a incidência é imediata, por força do Princípio do tempus regit actum. Hipótese em que a competência é absoluta e improrrogável, sob pena de nulidade. Conflito conhecido para declarar a competência da Turma Recursal Criminal de Porto Alegre/RS, a Suscitante.”


RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS Nº 14.141 – SP (2003/0026950-8) (DJU 09.06.03, SEÇÃO 1, P. 305, J. 13.05.03). RELATOR: MINISTRO PAULO MEDINA. EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO. TRANSAÇÃO PENAL. ENTORPECENTE. USO PRÓPRIO (ART. 16 DA LEI Nº. 6.368/76). INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO (ART. 2º, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 10.259/01). TRANSAÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. A Lei nº. 10.259/01, em seu art. 2º., parágrafo único, alterando a concepção de infração de menor potencial ofensivo, alcança o disposto no art. 61 da Lei nº. 9.099/95.”(EDRHC 12.033/MS). Recurso provido.”


Hoje, evidentemente, que este assunto não comporta maiores indagações, pois a Lei nº. 10.259/01 não mais conceitua infração penal de menor potencial ofensivo, deixando esta matéria a cargo exclusivamente da Lei nº. 9.099/95. Portanto, são infrações penais de menor potencial ofensivo todas as contravenções penais e todos os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, independentemente da previsão de procedimento especial.


Quanto à cominação de pena de multa, também a inovação foi importante para dirimir outra controvérsia; a questão consistia em saber como interpretar a última parte do parágrafo único do art. 2º. da Lei nº. 10.259/01 (com a redação anterior). Para nós, a pena máxima de dois anos sempre foi o limite intransponível para o respectivo conceito, ou seja, qualquer delito cuja pena em abstrato fosse superior a dois anos estava fora do âmbito dos Juizados, tivesse ou não pena de multa alternativa ou cumulativamente cominada, pois o critério do legislador, ao conceituar tais delitos, foi sempre a pena máxima, não a mínima (multa). Ainda que a pena de multa seja cumulada com a pena de detenção ou reclusão igual ou inferior a dois anos, a situação não muda, ou seja, continua sendo de menor potencial ofensivo[26]. Agora, a Lei nº. 11.313/06 resolveu definitivamente a questão: não interessa a cominação da pena de multa para a definição de infração penal de menor potencial ofensivo, pouco importando seja a pena pecuniária cominada alternativa ou cumulativamente (se for cumulada não retira da infração a natureza de menor potencial ofensivo – como afirma a nova lei, com muito mais razão se a cominação for alternativamente).


Assim, podemos afirmar que são crimes de menor potencial ofensivo, dentre inúmeros outros, o abuso de autoridade (Lei nº. 4.898/65)[27], contra a honra (calúnia[28], difamação e injúria), o porte de drogas para uso próprio (art. 16 da Lei nº. 6.368/76) e, mesmo, o aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento, quando na sua forma tentada (arts. 124 c/c 14, II do Código Penal). Sobre este último crime, observa-se que em caso de tentativa incidirá sobre a pena máxima cominada (três anos) a causa de diminuição de pena (1/3), restando a pena máxima de dois anos. O fato de ser crime doloso contra a vida não é óbice a esta afirmativa, pois é a própria Constituição Federal que no seu art. 98, I excepciona o disposto no seu art. 5º., XXXVIII, “d”. Lembremo-nos, ademais, que nos casos de competência determinada pela prerrogativa de função (em vista de dispositivo contido na Carta Magna), o julgamento também não será do Júri Popular, mas do respectivo Tribunal[29]. Quanto ao porte de arma (que era de menor potencial ofensivo à luz da legislação revogada), a nova lei o excluiu deste rol. Assim, na Lei nº. 10.826/2003 apenas o crime do art. 13 (omissão de cautela) é de menor potencial ofensivo.


Vejamos mais uma vez a jurisprudência:


TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO – RECURSO EM SENTIDO ESTRITO 401.579-3/6-00 — 2- Foi correta a decisão em exame, pois o réu foi denunciado por suposta prática de crime de porte de tóxico para uso próprio, previsto no artigo 16 da lei n° 6.368/76 cujo máximo da pena privativa de liberdade abstratamente cominada é de dois (2) anos de detenção, inserindo-se entre as infrações classificadas como de menor potencial ofensivo, cujo conceito trazido pelo artigo 61 da lei n° 9.099/95, foi ampliado pelo artigo 2°, parágrafo único, da lei n° 10.259/01, que instituiu os juizados especiais criminais federais. Aliás, como anota o ponderado parecer do ilustre procurador de justiça oficiante, a jurisprudência dos tribunais vem firmando entendimento no sentido de que o crime em foco constitui infração de menor potencial ofensivo, a teor do que dispõe o artigo 2°, parágrafo único, da lei n° 10.259/01, que alterou o artigo 61 da lei n° 9.099/95 (STJ, HC 14.141/SP,Rel. Ministro Paulo Medina, j. em 13.5.2003). No mesmo diapasão convergem outras decisões do colendo superior tribunal de justiça citadas em referido parecer (HC 14.088 e 25.195, Rel. Ministro Félix Fischer, j. em 20.5.2003 e 27.5.2003, respectivamente; HC 24.997, rel. Min. Paulo Medina, j. em 27.5.2003 e Resp. 356.174/MG, Rel. Min. José Arnaldo Santiago, DJU de 24.3.2003, p. 63), das quais não discrepam decisões deste egrégio tribunal de justiça (apelação criminai 388.820-3/4, rel. Des. Pires Neto, j.em 11.8.2003; HC 406.534-3/2, rel. Des. Jarbas Mazzoni e correição parcial 410.498-3/8, rel. Des. Canguçu de Almeida). Além disso, o Pretório excelso decidiu pela inconstitucionalidade do artigo 21 da lei n° 10.259/01 que vedava a aplicação desse diploma legal aos fatos sujeitos à competência da justiça comum estadual (HC 77.216, rel. Min. Sepúlveda Pertence).sendo assim, decidiu bem o magistrado ao deixar de receber a denúncia por entender ser antes caso de aplicação de eventuais benefícios legais por ser a infração em tela de menor potencial ofensivo. Reafirmado por esta corte que o delito pelo qual o acusado foi denunciado é, para os efeitos legais, infração de menor potencial ofensivo, desapareceu o óbice posto pelo ministério público para fazer proposta das medidas despenalizadoras cabíveis na espécie. Sendo assim, cumpre prover em parte o recurso unicamente para cassar a decisão atacada na parte em que designou audiência para a concessão de ofício da transação penal, dando-se nova vista ao ministério público para eventual oferecimento de proposta de benefícios atinentes às infrações de menor potencial ofensivo, pois em face do ora decidido não mais subsiste o óbice posto pelo doutor promotor de justiça em sua manifestação. 3. destarte, por votação unânime, provê-se parcialmente o recurso para cassar a decisão recorrida no tocante à designação de audiência para a concessão de ofício da transação penal, determinando-se seja aberta nova vista ao doutor promotor de justiça para eventual oferecimento de proposta de benefícios atinentes às infrações de menor potencial ofensivo, em face do ora decidido. São Paulo, 09 de maio de 2005.”


APELAÇÃO CRIME. ENTORPECENTES. ARTIGO 16 DA LEI DE TÓXICOS. A COMPETÊNCIA PARA ANALISAR O PRESENTE RECURSO É DA COLENDA TURMA RECURSAL CRIMINAL. REDISTRIBUIÇÃO DO RECURSO PARA A REFERIDA TURMA. APELAÇÃO CRIME Nº 70012053278. SEGUNDA CÂMARA CRIMINALDECISÃO MONOCRÁTICA. Vistos. Trata-se de recurso de apelação, interposto pelo réu Alex Sandro Oliveira Loper contra a sentença que o condenou à pena de seis meses de detenção e à pena pecuniária de 20 (vinte) dias-multa fixados, cada qual, à razão mínima conforme o artigo 38 da Lei nº 6368/76, por incurso nas sanções do artigo 16 da Lei nº 6.368/76. A pena privativa de liberdade foi substituída por uma pena restritiva de direito, consistente em prestação de serviços à comunidade, uma vez que foram preenchidos os requisitos do artigo 44 do Código Penal. O regime definido na sentença foi o aberto (fls. 127/131). Conforme jurisprudência majoritária deste Tribunal, a Lei nº 10.259/01, ao dispor sobre a instituição dos Juizados Especiais Criminais, no âmbito da Justiça Federal, expandiu o conceito de infração de menor potencial ofensivo, fixando como tal todos os delitos cuja pena máxima cominada seja de dois anos ou multa (artigo 2º parágrafo único). Com efeito, esta nova, ao definir o que se entende por infração de menor potencial ofensivo, redefiniu e ampliou esse conceito, de modo a torná-lo aplicável imediata e igualmente aos Juizados Especiais Criminais Estaduais, face aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da isonomia. Evidenciada está a inequívoca derrogação do artigo 61 da Lei nº. 9.099/95, sob pena de afronta vertical a princípio constitucional do direito penal. Surge também a necessidade de salientar que as conseqüências da atual definição serão ainda maiores. Com efeito, ao contrário do que ocorre com a Lei nº. 9.099/95, o novo texto não excluiu da competência do Juizado Especial Criminal os delitos que possuam rito especial, alcançando, por exemplo, os crimes de porte de entorpecentes, prevaricação, abuso de autoridade ou qualquer outro delito cuja pena máxima não seja superior a dois anos, valendo tanto para a esfera Federal quanto Estadual. Aliás, como bem destaca o Prof. Luiz Flávio Gomes em análise do tema: ´Não se pode admitir o disparate de um desacato contra policial federal ser infração de menor potencial ofensivo (com todas as medidas despenalizadoras respectivas) e a mesma conduta praticada contra um policial militar não o ser. Não existe diferença valorativa dos bens jurídicos envolvidos. O valor do bem e a intensidade do ataque é a mesma. Fatos iguais, tratamento isonômico.` (Gomes, Luiz Flávio, Lei dos Juizados Federais aplica-se para os Juizados Estaduais, in www.direitocriminal.com.br, 27.97.01). Diante disso, deflui-se que a menor ofensividade no Brasil, seja para os crimes de competência da Justiça Federal, seja para os da Justiça Comum, estará delimitada aos parâmetros conceituais da Lei nº. 10.259/01, após o início de sua vigência. Tratam os autos do delito do art. 16 da Lei nº. 6.368/76, que prevê pena de detenção de até dois anos, enquadrando-se no conceito estabelecido pelo artigo 2º, parágrafo único, da Lei nº 10.259/01, de infração de menor potencial ofensivo. De outra banda, a 3ª Seção do STJ, ao apreciar o Conflito de Competência nº 36.545/RS, por maioria, firmou o entendimento de que tramitando ação perante Vara Criminal da Justiça Estadual Comum, entrando em vigor a Lei nº 10.259/01, a competência para apreciar a apelação criminal interposta é da Turma Recursal local, pois se tratando de norma de natureza processual sua incidência é imediata, sendo a competência absoluta e improrrogável, sob pena de nulidade, julgamento este realizado em 26.03.03. Assim consta: “Acórdão CC 36545/RS; CONFLITO DE COMPETÊNCIA 2002/0119661-3 Fonte: DJ DATA:02/06/2003 PG:00183 Relator: Min. GILSON DIPP (1111) Ementa CRIMINAL. CC. CONFLITO ENTRE TRIBUNAL DE JUSTIÇA E TURMA RECURSAL DO JUIZADO ESPECIAL. DECISÕES DA TURMA RECURSAL NÃO VINCULADAS AOS TRIBUNAIS ESTADUAIS. CONFLITO ENVOLVENDO “TRIBUNAL E JUÍZES A ELE NÃO VINCULADOS”. COMPETÊNCIA DO STJ. JULGAMENTO DE APELAÇÃO CRIMINAL. LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS. APLICABILIDADE AOS CRIMES SUJEITOS A PROCEDIMENTOS ESPECIAIS. LEI Nº 10.259/01. PRINCÍPIO DA ISONOMIA. ALTERAÇÃO DO LIMITE DE PENA MÁXIMA PARA A TRANSAÇÃO PENAL. NATUREZA PROCESSUAL, INCIDÊNCIA IMEDIATA. COMPETÊNCIA ABSOLUTA E IMPRORROGÁVEL. COMPETÊNCIA DA TURMA RECURSAL. I. Compete ao STJ dirimir conflito entre Tribunal de Justiça e Turma Recursal do Juizado Especial. Precedente do STF. II. As decisões da Turma Recursal, composta por Juízes de 1º. grau, não estão sujeitas à jurisdição dos Tribunais Estaduais (Alçada ou Justiça). III. O conflito é solucionado pelos termos do artigo 105, inc. I, alínea “d”, da CF, na parte que impõe tal incumbência ao STJ quando estiver envolvido “tribunal e juízes a ele não vinculados”. IV. A Lei dos Juizados Especiais aplica-se aos crimes sujeitos a procedimentos especiais, desde que obedecidos os requisitos autorizadores, permitindo a transação e a suspensão condicional do processo inclusive nas ações penais de iniciativa exclusivamente privada. V. Em função do Princípio Constitucional da Isonomia, com a Lei nº 10.259/01 – que instituiu os juizados especiais cíveis e criminais no âmbito da Justiça Federal, o limite de pena máxima, previsto para a incidência do instituto da transação penal, foi alterado para 02 anos. VI. Tramitando a ação perante a Vara Criminal da Justiça Comum Estadual, e entrando em vigor a nova Lei nº 10.259/01, a competência para apreciar a apelação criminal interposta é da Turma Recursal local, pois, tratando-se de disposição de natureza processual, a incidência é imediata, por força do Princípio do tempus regit actum. VII. Hipótese em que a competência é absoluta e improrrogável, sob pena de nulidade. VIII. Conflito conhecido para declarar a competência da Turma Recursal Criminal de Porto Alegre/RS, a Suscitante. Data da Decisão: 26/03/2003 Órgão Julgador: S3-Terceira Seção” Sendo assim, a competência para analisar o presente recurso é da colenda Turma Recursal Criminal, conforma reiterado entendimento desta Câmara a respeito da matéria. Diante do exposto, com fundamento no artigo 557, do CPC – cuja aplicação subsidiária é permitida, nos termos do artigo 3º do CPP (STJ- HC 19859/RJ, publicado no DJU de 01/07/2002),- determino a redistribuição do presente recurso à referida Turma. Dê-se baixa na redistribuição. Porto Alegre, 05 de agosto de 2005. DES. ANTONIO CARLOS NETTO MANGABEIRA, Relator.”


Tal conceito evidentemente não foi alterado pelo art. 94 da Lei nº. 10.741/03 (Estatuto do Idoso) que dispõe: “aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei no. 9.099, de 26 de setembro de 1995, e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal.” Para nós, esta nova lei apenas determina sejam aplicadas as normas procedimentais da Lei nº. 9.099/95 (normas processuais puras, no dizer de Taipa de Carvalho) aos processos referentes aos crimes (com pena máxima de quatro anos) tipificados no Estatuto, excluindo-se a aplicação de suas medidas despenalizadoras (composição civil dos danos e transação penal), pois não seria coerente um diploma legal que visa a proteger os interesses das vítimas idosas permitir benefícios aos autores dos respectivos crimes.[30] Esta interpretação guarda coerência, pois tais crimes (graves, pois praticados contra idosos) serão julgados por meio de um procedimento mais célere, possibilitando mais rapidamente o desfecho do processo (sem olvidar-se da ampla defesa e do contraditório, evidentemente).


 


Notas:

[1] Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada, São Paulo: Saraiva, 4a. ed., 1997, p. 41.

[2]  Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Atlas, 1997, p. 28.

[3]  Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª. ed., p. 69.

[4]  Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 3ª. ed., p. 59.

[5] Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, n.º 57, agosto/1997.

[6] Ob. cit., p. 58.

[7] Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, São Paulo: Saraiva, Vol. II, 12ª. ed. p. 503.

[8] Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, n.º 57, agosto/1997.

[9] Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 79.

[10] Lei dos Juizados Especiais Criminais (com Geraldo Prado), Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 15.

[11] E também dos Juizados Especiais Criminais, cuja competência encontra sede igualmente na Carta Magna.

[12] Repetimos: e também dos Juizados Especiais Criminais.

[13] Idem. 

[14]  Sucessão de Leis Penais, Coimbra: Coimbra Editora, págs. 219/220.

[15]  Ob, cit., p. 220.

[16] Idem.

[17] Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal, São Paulo: José Bushatsky, Editor, 1975, 124.

[18] O Processo Penal em Face da Constituição, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 137.

[19] Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Saraiva, 2ª. ed., 2002, p. 87.

[20] Segundo José Afonso da Silva, entre nós, este “sistema foi originariamente instituído com a Constituição de 1891 que, sob a influência do constitucionalismo norte-americano, acolhera o critério de controle difuso por via de exceção, que perdurou nas constituições sucessivas até a vigente.” (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 10ª. ed., 1995). 

[21] Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 17ª. ed., 1989, p. 34.

[22] Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, “Juizados Criminais Federais, seus reflexos nos Juizados Estaduais e outros estudos”, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 22.

[23] Cezar Roberto Bitencourt, Juizados Especiais Criminais Federais, São Paulo: Saraiva, 2003, p 10.

[24] Juizados Especiais Criminais Federais, São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 3 e 4.

[25] A respeito do assunto, conferir, entre outros, os artigos de Luiz Flávio Gomes, Damásio de Jesus e Cezar Roberto Bitencourt, todos publicados no site www.direitocriminal.com.br

[26] Neste sentido conferir o livro de Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, “Juizados Criminais Federais, seus reflexos nos Juizados Estaduais e outros estudos”, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

[27] A tese contrária, segundo a qual este crime não estaria englobado no conceito de menor potencial ofensivo, não nos convenceu, pois, como se disse acima, o critério para a definição é (e sempre foi) a pena máxima cominada. Ora, apesar de vir estabelecida na Lei nº. 4.898/65, como sanção, a perda do cargo, o certo é que a pena máxima para este crime continua sendo a de seis meses de detenção (art. 6º., § 3º., b), abaixo, portanto, do limite de dois anos. Evidentemente que a transação penal, nestes casos, só pode ter por objeto a multa ou uma das penas restritivas de direitos elencadas no art. 43 do Código Penal, jamais a perda do cargo ou a inabilitação para função pública (alínea c do referido art. 6º.), pois assim está estabelecido no caput do art. 76 da Lei nº. 9.099/95; o que não significa que tais sanções (aliás, não seriam mais propriamente efeitos da sentença condenatória?) não possam ser aplicadas pelo Juiz sentenciante, caso haja processo instaurado (no caso de não ter havido a transação penal e de ter sido oferecida a peça acusatória). Ademais, a transação penal pode deixar de ser proposta pelo Ministério Público com fundamento no art. 76, § 2º., III (requisitos subjetivos). 

[28] Salvo, na calúnia, se incidir a causa de aumento de pena prevista no art. 141 do Código Penal.

[29] Quanto à prerrogativa de função no crime doloso contra a vida, veja-se no STF o julgamento proferido no HC nº. 693440/130, 2ª. Turma, Rel. Min. Néri da Silveira.

[30] Para Damásio de Jesus, este artigo apenas “disciplina a espécie de procedimento aplicável ao processo, não cuidando de infrações de menor potencial ofensivo. Temos, pois, disposições sobre temas diversos, cada uma impondo regras sobre institutos diferentes, sendo incabível a invocação do princípio da proporcionalidade.” (Repertório de Jurisprudência IOB – nº. 24/03 – Dezembro, p. 678). Neste mesmo sentido, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira, in Direito Eleitoral – Crimes Eleitorais & Processo Penal Eleitoral, Salvador: Podium, 2004, p. 65.


Informações Sobre o Autor

Rômulo de Andrade Moreira

Procurador de Justiça no Estado da Bahia. Foi Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). É Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador-UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm e do Curso IELF. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria com Isaac Sabbá Guimarães) e “Juizados Especiais Criminais”– Editora JusPodivm, 2009, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.


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