A contratação de trabalho intelectual sem vínculo de emprego – lei n. 11.196/05 – no contexto da política pública de combate à informalidade

Sumário – 1- Considerações gerais e justificação do tema. 2 – Delimitando os contornos da regra. 3 – Desenvolvimento e políticas públicas do trabalho. 4 – Dissecando o conteúdo do art. 129 da Lei n. 11.196/05. 4.1 – O tipo de pj que pode mediar a contratação sem vínculo de emprego. 4.2 – Quem são os sócios e as respectivas responsabilidades. 4.3 – O caráter pessoal da prestação do serviço. 4.4 – Obrigações fiscais. 4.5 – Obrigações previdenciárias. 4.6 – Desconsideração da pessoa jurídica. 4.7 – Trabalho intelectual: científico, artístico e cultural. 5 – Implicações da Lei do BEM com a legislação trabalhista. 5.1 – Pontos convergentes e pontos divergentes entre a Lei do Bem e a legislação trabalhista. 5.2 – A Lei do Bem x o princípio trabalhista da primazia da realidade. 5.3 – A MP do Bem x os limites da terceirização. Dez notas conclusivas.


Síntese – O texto trata da análise do art. 129 da Lei n. 11.196/05, apelidada de Lei do Bem, o qual permite a contratação, mediante pessoa jurídica e sem vínculo de emprego, de prestador de serviço personalíssimo, ou não, de natureza intelectual, inclusive o científico, artístico e o cultural. Trata-se de mais uma medida legislativa flexibilizante das relações de trabalho, que o desenvolvimento impõe, sob o argumento de dar forma a trabalho hoje prestado na informalidade. O artigo delimita: a) os contornos da norma; b) a natureza da sociedade que pode abrigar o profissional intelectual; c) os benefícios fiscais e previdenciários; d) os conceitos de trabalho, intelectual, científico, artístico e cultural; e) as implicações com a regra trabalhista da relação de emprego institucional.


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1. Considerações gerais e justificação do tema


O art. 129 da Lei do Bem, n. 11.196, de 21.11.05, institui mais uma espécie de flexibilização da relação de emprego, assim expresso:


“Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil”.


Este dispositivo encampa o art. 981, combinado com o parágrafo único do art. 966 do Código Civil, o qual admite a constituição de sociedade simples (não-empresarial) para fins de exercício de “profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda que com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”. O art. 982 distingue a sociedade simples da sociedade empresária; e o seu parágrafo único inclui na categoria de sociedade simples a cooperativa.


Essa modalidade contratual rege-se pela locação de serviços de que tratam os arts. 593 a 609 e do Código Civil.


Importância do tema – O artigo de lei é só um. Mas sua redação é cheia de conceitos vagos, com objetivo de açambarcar um sem número de situações presentes e continuar se expandindo para incontáveis situações futuras. Ao admitir a contratação de mão-de-obra mediante pessoa jurídica, três conseqüências se alvitram: a) permissão para formalizar as prestações de serviço de natureza intelectual – científico, artístico e cultural, que estão na informalidade; b) conversão de muitos que estão sob o vínculo de emprego para a nova modalidade; c) novas contratações sob essa modalidade.


Mas o mais importante, é que essa lei tranqüiliza o meio econômico, ao enquadrar essas relações na forma legal, e que antes eram praticadas sob risco para o tomador do serviço.


2. Delimitando os contornos da regra


Primeiro, temos em vista tratar-se de uma regra de exceção ao sistema trabalhista, razão por que sua interpretação deve ser restrita, como sói acontecer com as regras de exceção. Segundo, que a Lei n. 11.196/05 possui natureza fiscal e não trabalhista; terceiro, que a liberação do vínculo de emprego preceituada é somente para efeitos fiscais e previdenciários. Logo, uma vez caracterizados os fatos que tipificam a relação de emprego, deve prevalecer esta, desconsiderando-se a pessoa jurídica. Para tanto, impõe-se a delimitação dos conceitos jurídicos que envolvem a matéria, para que, na prática, não haja a temida distorção do sentido e da finalidade da norma.


Pressupostos para aplicação do art. 129 da Lei n. 11.196/05 – CAVALCANTE & JORGE NETO[1] percebem pelo menos quatro: a) existência de um contrato de prestação de serviço regulado pelo Código Civil; b) que os serviços possuam natureza intelectual, dentro da qual se incluem o trabalho científico, o artístico e o cultural; c) a constituição de uma pessoa jurídica pelos prestadores de serviço; d) a prestação dos serviços intelectuais pode ser feita pessoalmente pelo sócio da pj ou por terceiros por ele designados, inclusive na qualidade de empregado da pj. Acrescentamos um quinto pressuposto: que de fato não se caracterize o contrato de emprego. Observando ainda que a PJ deve, de preferência, ser de natureza simples, como se verá adiante.


Esta Lei, na sua essência, é boa, benéfica para os que realmente se enquadram nela; porém, prejudicial para os enquadrados indevidamente; e melhor para as empresas que contratam tais prestadores de serviços, porque, dentre outras economias, livram-se do custo-emprego, como os 8% do FGTS, as férias, o 13º salário, as licenças médicas, os repousos semanais e em feriados, o risco acidentário, as estabilidades, as indenizações das rescisões trabalhistas  etc.


Por isso, utilizada a norma nos devidos termos a que se propõe, não padece de inconstitucionalidade, como afirmara a ANAMATRA,[2] porque não atinge nenhum preceptivo da Constituição, quer na larga esfera dos princípios, quer na das regras, até porque o bem protegido constitucionalmente é o trabalho e não só o emprego.


3. Dissecando o conteúdo do art. 29 da Lei n. 11.196/05


Feitas essas ligeiras colocações, cumpre-nos dissecar os conceitos postos no art. 129 da Lei n. 11.196/05, como sociedade; sócios; trabalho personalíssimo; obrigações fiscais; obrigações previdenciárias; desconsideração da pessoa jurídica; trabalho intelectual, científico, artístico, cultural. Da mesma forma, tentaremos aquilatar as conseqüências da fraude porventura cometida, quer pelo lado do tomador do serviço, quer pelo lado da sociedade prestadora do serviço. Vejamos cada um desses tópicos sob a forma de itens.


3.1 O tipo de pj que pode mediar a contratação sem vínculo de emprego


Sociedade – O gozo dos benefícios fiscal e previdenciário requer que o serviço seja prestado por sociedade civil legalmente constituída, nos termos dos arts. 44, II, e 45 do C. Civil. As sociedades, diferentemente das associações, têm por fim desenvolver atividade de natureza econômica, empresarial ou simples, por isso estão regulamentadas no Livro II do C. Civil (dos arts. 981 a 1.141), que trata do Direito Empresarial. Logicamente, como o próprio nome já diz, sociedade é uma união de pelo menos duas pessoas, para constituir a pessoa jurídica, cuja personalidade é independente da personalidade de cada sócio. Vejamos alguns preceitos do Código Civil:


Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens e serviços.


Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.


Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício da atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.


Parágrafo único. A atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados.


Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.


Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se comercial a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.


Fazendo um paralelo com o sistema do C. Civil de 1916, a sociedade empresária atual é a equivalente à sociedade comercial d’antanho; e a sociedade civil do sistema anterior é a hoje denominada sociedade simples.


No sistema atual, a sociedade empresária está obrigada a registro perante a Junta Comercial e tem por finalidade o exercício da atividade empresarial, voltada para a produção e circulação de bens e serviços. A sociedade simples se caracteriza pelo exercício de atividade tipicamente não empresarial, tendo como elemento nuclear a prestação de serviço em caráter pessoal pelos seus sócios, não obstante a lei admitir que o serviço possa ser executado por terceiro ou mesmo por empregado da sociedade, o que não será regra, como veremos. As sociedades devem ser constituídas por escrito e lançar-se no registro civil das pessoas jurídicas (arts. 998, §§ 1º e 2º, e 1.000 e parágrafo único do Ccivil).


A propósito, é oportuna a transcrição da doutrina coordenada por Ricardo Fiúza, por ser anterior à LEI do BEM sob comento, a qual revela a dificuldade de separação do que vem a ser sociedade simples e sociedade empresarial, a mesma dificuldade que, no âmbito deste nosso escrito, se desdobrará para distinguir até onde vai o trabalho associado e o trabalho sob a forma de emprego, dados os pontos convergentes de ambos:


“A sociedade simples, por sua vez, é aquela que tem por objeto o exercício de atividade relacionada a profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística (art. 966, parágrafo único) desde que o exercício da profissão, em si, não esteja a constituir elemento de empresa ou de outras atividades tipicamente não empresariais, tal como ocorre, por exemplo, no âmbito das sociedades cooperativas. A sociedade de advogados é um típico exemplo de sociedade simples, inclusive porque a lei de regulação da atividade advocatíciia assim expressamente prevê (Lei n. 8.908/94, art. 15). Entretanto, se a atividade de advogados passa a exercer atividade economicamente organizada para a circulação de bens ou de serviços, passando, por exemplo, a vender serviços de terceiros, pode vir a ser considerada uma sociedade empresária. Veja-se o caso de um grande escritório, com centenas de advogados, onde o cliente não procura o advogado “A” ou “B”, mas o escritório “X”. Este escritório estará atuando como verdadeira empresa, onde o exercício da advocacia constitui um de seus elementos. A questão, porém, é das mais polêmicas e só será definitivamente esclarecida pela jurisprudência.


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A sociedade simples é aquela constituída para o exercício de atividades que não sejam estritamente empresariais, como ocorre no caso de atividades rurais, educacionais, médicas ou hospitalares, de exercício de profissões liberais nas áreas de engenharia, arquitetura, ciências contábeis, consultoria, auditoria, pesquisa científica, artes, esportes e serviço social.”[3]


Vê-se que o rol supra é apenas exemplificativo, já que muitas outras atividades são vocacionadas ao associativismo de natureza civil, como o jornalismo e a publicidade, alguns serviços médicos, o esporte, a moda, a informática e a tecnotrônica em geral, o técnico etc.


Para efeito previdenciário, entretanto, “considera-se empresa: a firma individual ou a sociedade que assume o risco da atividade econômica, urbana ou rural, com fins lucrativos ou não. Assim, a sociedade civil não empresarial é considerada empresa para esse fim, e como tal está sujeita às obrigações sociais desta (ar. 12 do Dec. n. 3.048/99).


Desse apanhado, infere-se que a pessoa jurídica prestadora de serviços de natureza intelectual de que trata a lei 11.196/05 deverá ser constituída sob a forma de uma sociedade simples, aqui incluída a cooperativa de mão-de-obra; ou seja, que não tenha por objeto atividade típica de empresário. Até porque o serviço prestado por empresário constitui uma forma de terceirização, que prescindia dessa nova regulamentação, portanto, estando fora da hipótese sob estudo. Entretanto, quando a sociedade prestadora de serviço intelectual possuir caráter empresarial – que não deve ser a regra, por incompatível com o instituto ora comentado – o serviço enquadra-se nas regras da terceirização, sujeitando-se inclusive ao disposto na Súmula n. 331 do Tribunal Superior do Trabalho.


3.2. Quem são os sócios e as respectivas responsabilidades


Sócios – são os indivíduos que compõem a sociedade. O sócio pode integrar a sociedade desde a origem ou ingressar depois, assim como pode ser excluído ou retirar-se. Todas as alterações devem ser levadas à averbação no registro das pessoas jurídicas.


Cada sócio tem obrigações para com a sociedade e terceiros, desde a conclusão do contrato de sociedade, se outro prazo este não estipular. Tais obrigações terminam quando, liquidada a sociedade, se extinguirem as responsabilidades sociais.


Se os bens da sociedade não lhe cobrirem as dívidas, respondem os sócios pelo saldo, na proporção em que participem das perdas sociais, salvo cláusula de responsabilidade solidária. Ou seja, o patrimônio particular dos sócios responde pelas dívidas da pessoa jurídica proporcionalmente à sua participação na sociedade, porque o associamento já inclui a partilha nos resultados (art. 981), que tanto podem ser positivos como negativos, salvo cláusula expressa de responsabilidade solidária.


Fiúza noticia que essa regra remonta ao art. 204 do Código de Manu (Índia, 1400 a.C., segundo o qual “quando vários homens se reúnem para cooperar, cada um com seu trabalho, em uma mesma empresa, tal é a maneira por que deve ser feita a distribuição das partes.”[4]


Entretanto, os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais. Ou seja, a responsabilidade dos sócios é subsidiária à da sociedade e não solidária.


O contrato de sociedade é bilateral ou plurilateral e requer três elementos: a) a reunião de recursos, sob a forma de capital ou de trabalho, com cada sócio colaborando na sua formação; b) o exercício em comum de atividade produtiva; c) a partilha ou divisão dos resultados econômicos. De regra, qualquer pessoa, física ou jurídica pode integrar uma sociedade. Porém, logicamente, a sociedade simples sem fins empresariais deve ser composta só de pessoas naturais, por ser incompatível com sócio pessoa jurídica.


Entretanto, as sociedades simples, para os fins da Lei 11.196/05, costumam ser constituídas de pessoas com participação absolutamente desiguais, ingressando alguns sócios apenas para viabilizar o nascimento da pessoa jurídica. Em geral, compõem-se do marido e mulher, de irmãos em situações patrimoniais díspares etc. Raras compõem-se de pares em situação igualitária. Como diz Roberto Pasqualin, “são PJs normalmente formadas por uma pessoa, o profissional que trabalha com 99,9% do capital, mais um parente que não trabalha e tem uma cota apenas para completar a sociedade.”[5] Daí denominar-se PJ unipessoal.


Em conseqüência, é o “cabeça” da sociedade quem manda, responde por ela e beneficia-se. Os contratos são feitos com ele e por ele, para trabalho personalíssimo de natureza intelectual.


Contudo, a lei admite que a PJ preste o serviço, personalíssimo ou não, diretamente por seus sócios ou por seus empregados. Quando a sociedade presta o serviço intelectual mediante seus próprios empregados, estabelecem-se pelo menos duas grandes contradições:


a) o discurso dessa pejotização do trabalho pessoal diz respeito a prestigiar a autonomia do trabalhador em relação ao tomador do serviço; entretanto, a situação piora, porque ele deixa de ser autônomo, deixa de ser também empregado do tomador do trabalho para ser um precarizado, um terceirizado. Logicamente, aqui há que se invocar o item IV da Súmula n. 331 do TST;


b) ao permitir a lei que a sociedade possa prestar serviço de natureza intelectual através de empregados seus, está admitindo que essa sociedade possa ser de natureza empresarial, ou seja, uma empresa prestadora de serviço terceirizado, em que seu quadro de pessoal é composto de intelectuais, pesquisadores, artistas, folcloristas etc. Ora, esse modelo de relação de trabalho – intelectual mediante uma sociedade – é incompatível com sociedade de natureza empresarial, como dito no item 4.1, por força do art. 966, § 2º, do Código Civil. Até porque, o trabalho de natureza intelectual é da pessoa física que o presta, esta é que é o (a) intelectual, e não a sociedade; a PJ não é cientista, artista nem culta. Essas qualidades são atributos da pessoa natural.


Assim, para compatibilizar a regra legal sob estudo com a finalidade da lei e até com a legislação do trabalho, há que se interpretar que só será admissível a prestação do trabalho intelectual, artístico, científico ou cultural através de empregados da sociedade prestadora se eventual, ou de etapas da obra intelectual.


Conclui-se, dessa digressão, que o serviço pessoal de natureza intelectual prestado através de pessoa jurídica, na verdade é prestado por uma pessoa física, que integra a PJ, como sócio; e, na maioria das vezes, é o “cabeça” da sociedade e único executante do serviço. Só em caráter eventual ou para atividades de apoio a sociedade poderá prestar o serviço intelectual através de empregados seus ou por terceiros.


3.3 O caráter pessoal da prestação do serviço


Personalíssimo – o preceito sob comento diz que a prestação do serviço pode ser em caráter personalíssimo ou não. O personalíssimo, conquanto o conceito albergue o sentido de inerente a determinada pessoa, coincide, para efeitos trabalhistas, com a pessoalidade do contrato de emprego, delineado no art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho.


Personalíssimo é o que é inerente à pessoa. De Plácido e Silva assim define personalíssimo:


Exprime na linguagem jurídica o que é privativo ou exclusivo à pessoa, não podendo, assim, ser afastado nem retirado dela.   É o ato que só a própria pessoa contratada pode realizar, não se podendo substituir por outrem.[6]


Isso vem confirmar o que se afirmou acima, de que, em regra, é o próprio sócio da sociedade que presta pessoalmente o serviço contratado com a sociedade. As sociedades comerciais de prestação de serviço contratam com a tomadora do serviço, mas as pessoas que realizam o trabalho contratado dificilmente serão os sócios-empresários; em geral são os empregados da prestadora que o fazem. Já no caso sob estudo, os próprios sócios, que não serão empresários, prestam o serviço pessoalmente. É a regra. Não obstante, a lei admite que os serviços possam ser realizados mediante terceiros ou empregados da PJ, o que deve ser interpretado restritivamente, no sentido de que esta última hipótese seja admissível apenas em caráter extraordinário, para as etapas preparatórias ou de apoio até o final da obra, trabalhos braçais, repetitivos, complementares, que não são de natureza intelectuais.


Aqui se apresenta uma das características da relação de emprego, a da pessoalidade, textualizada no art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, a significar o caráter intuito personae da relação de emprego em relação ao trabalhador. Não que só ele possa realizar a tarefa, mas que, uma vez empregado, assume o dever de prestar o serviço pessoalmente.


Por outro lado, quando a PJ prestar serviço através de seus empregados e não de seus sócios, poderá confundir-se com atividade empresarial, caso em que se sujeitará às obrigações próprias desta.


Este ponto de intersecção do contrato civil com o trabalhista vai somar-se com outros, adiante expostos, que irão constituir os pontos de conflitos trabalhistas, já que a matéria, sob qualquer das modalidades, civil ou trabalhista, será da competência da Justiça do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho e da fiscalização do Ministério do Trabalho.


3.4 Obrigações fiscais


Compreendem-se neste conceito basicamente dois impostos: o imposto de renda (IR) sobre os rendimentos de pessoas físicas e de pessoas jurídicas e o imposto sobre serviços (ISS).


O IR é um imposto federal, recolhido aos cofres da Receita Federal. Para pessoa física, em duas faixas: no percentual de 15%, para quem tem renda anual imediatamente acima do limite de isenção até o limite fixado por lei, indo para o percentual de 27,5% para quem aufere renda anual acima do limite máximo da faixa anterior. Para as pessoas jurídicas, em sua incidência genérica anual, a alíquota é proporcional a 30%. A depender do montante do lucro auferido, incide um adicional de 10%; e se for instituição financeira, esse adicional poderá chegar a 15%. A pequena e a microempresas têm tratamento diferenciado, particularmente quando forem optantes pelo sistema do SIMPLES.


“Ressalte-se que as pessoas jurídicas dedicadas apenas à prestação de serviços profissionais são isentas do imposto de renda, sendo os sócios tributados pelos lucros respectivos”, diz Hugo de Brito Machado.[7]


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O ISS é um imposto Municipal cobrado em virtude de serviços prestados por prestadores autônomos de serviço, organizados sob a forma de pessoa jurídica ou não, no percentual fixado por lei municipal, no limite máximo de 5% do valor do serviço, cf art. 8º da Lei Complementar n. 116/2003.


Assim, o trabalho intelectual, científico, artístico ou cultural prestado por pessoa física sob a forma de emprego, está sujeito ao desconto do 15% a 27,5% de IR do rendimento líquido, após as deduções legais, mas não recolhe ISS.  


Sob o ponto de vista fiscal, a sociedade simples sob comento gozará de isenção do IR, ou sofrerá uma incidência mínima deste; porém o trabalhador-associado está obrigado a recolher IR sobre o lucro que auferir da sociedade, logicamente, deduzidas todas as despesas operacionais. Logo, há mais vantagem imediata para o contratado associado do que na modalidade de contrato de emprego. Para o tomador do serviço, a vantagem é muito maior, porque, além da desoneração trabalhista, fiscal e previdenciária, ainda contabiliza o valor do serviço tomado como despesa operacional, dedutível para efeito de cálculo do Imposto Renda.


3.5 Obrigações previdenciárias


O empregador e o empregado recolhem para o INSS, o primeiro no percentual de 20% sobre a remuneração do empregado, e este no percentual de 8 a 11% de sua remuneração, limitado ao teto previdenciário.


Ocorre que todos os trabalhadores a qualquer título e empresários são segurados obrigatórios da Previdência Social. Assim, o sócio da sociedade simples, que é o prestador do serviço ora comentado, é segurado obrigatório, na categoria de contribuinte individual (art. 9º, V do Dec. n. 3.048/99), e como tal está obrigado a recolher 20% sobre o salário de contribuição ao INSS, cf. art. 199 do Dec. n. 3.048/99.


A empresa tomadora do serviço ainda contribui com 15% sobre o valor da nota fiscal ou fatura da prestação de serviço de cooperado por intermédio de cooperativa de mão-de-obra, compensado o valor dos insumos utilizados.


Por sua vez, cf. art. 201, § 5º, do Dec. n. 3.048, a PJ está obrigada a recolher aos cofres do INSS 20% sobre: a) a remuneração paga ou creditada aos sócios em decorrência de seu trabalho, de acordo com a escrituração contábil da empresa; b) os valores totais pagos ou creditados aos sócios, ainda que a título de antecipação de lucros da pessoa jurídica, quando não houver discriminação entre a remuneração decorrente do trabalho e o proveniente do capital social.


Aqui não há vantagem para o trabalhador associado, que terá um prejuízo de 8% a 12%. Já o tomador dos serviços se beneficiará, pois não recolherá ao INSS pelos serviços pagos à sociedade prestadora e ainda contabiliza o valor dos serviços nas despesas, para fins de aferição do lucro, para efeito do cálculo de outros tributos.


Conclui-se dos dois últimos itens supra que o prestador do serviço não pode figurar na relação de trabalho intermediado por uma pessoa jurídica sob dúplice natureza jurídica – civil e trabalhista – nem pode beneficiar-se de parte das duas: civil só para os benefícios fiscais e previdenciários e trabalhista para gozo dos direitos decorrentes da relação de emprego. Ou o contrato é totalmente civil ou puramente trabalhista.


3.6 Desconsideração da pessoa jurídica


A Lei sob análise determina que se aplique o art. 50 do Código Civil no caso de a pessoa jurídica servir para desvirtuar a natureza da prestação do serviço, o qual trata da desconsideração da pessoa jurídica (disregard doctrine):


Em caso de abuso na personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão primordial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.


Neste caso, constatada a fraude no uso da pessoa jurídica, tudo que foi realizado sob seu manto será convertido em trabalho pessoal de pessoa física, aplicando-se a legislação própria. Entretanto, uma vez tendo se consumado o benefício do sistema fiscal e previdenciário da PJ, não haverá reversão, ainda que venha a ser reconhecida relação de emprego do (pseudo)associado, cf. uma das razões de veto ao dispositivo que previa exatamente a anulação do regime tributário e previdenciário do art. 129 se comprovada relação de emprego perante a Justiça do Trabalho. Com isso, a lei estabaleceu a garantia jure et de jure de prevalência dessa modalidade de contratação sobre o modelo celetista. Tal decisão política atende ao reclamo das grandes corporações internacionais que se estabelecem no Brasil, que pugnam por segurança jurídica de suas operações.


3.7 Trabalho Intelectual – científico, artístico ou cultural


O preceptivo sob análise inclui na categoria de intelectual três especialidades de trabalho: o de natureza científica, artística e cultural. Vejamos esses conceitos.


Trabalhoé ação, significando todo esforço físico ou intelectual, na intenção de realizar ou fazer qualquer coisa. Do Vocabulário Jurídico de De Plácido e Silva, extrai-se o oportuno excerto:


No sentido econômico e jurídico, porém, trabalho (…): é toda ação, ou todo esforço, ou todo desenvolvimento ordenado de energias do homem, sejam psíquicas, ou sejam corporais, dirigidas com um fim econômico, isto é, para produzir uma riqueza, ou uma utilidade, suscetível de uma avaliação, ou apreciação monetária.[8]


Intelectual – sem dúvida, vem de intelecto, da inteligência. Como trabalho é ação, trabalho intelectual é aquele que provêm da inteligência criadora do ser humano. Trabalho intelectual é o que representa criação e recriação de seu autor.


Mas o conceito de intelecto não é tão simples assim, tendo desafiado os pensadores de todos os tempos. Segundo NICOLA ABBAGNANO, o termo tem sido usado pelos filósofos em dúplice significado: a) um genérico como faculdade de pensar em geral; b) um significado específico como uma particular atividade ou técnica de pensar.


No 1º sentido, o genérico, como faculdade geral do pensar, Platão define intelectual como a atividade que pensa e que, portanto, dá limites, ordem e medida às coisas. Aristóteles, dando eco a Parmênides de Eléia, entende por I. “aquilo pelo qual a alma raciocina e compreende”. Leibniz, por sua vez, entendia por I. “a percepção distinta unida à faculdade de refletir, que não existe na alma dos animais”. No mesmo sentido, Kant diz que “I. é a faculdade de pensar o objeto de intuição sensível, ou o poder de conhecer em geral”.   


No 2º sentido, o específico, do intelecto como particular atividade ou técnica de pensar, distinguem-se três interpretações fundamentais: a) o intelecto intuitivo; b) o intelecto operativo; c) o intelecto compreendente ou inteligência. Vejamos cada um:


a) Aristóteles percebeu que o intelecto intuitivo é, além da faculdade pela qual a alma raciocina e compreende, é também uma virtude dianoética, isto é, um hábito racional específico, ou seja, a faculdade de intuir os princípios das demonstrações, os quais não podem ser apreendidos nem pela ciência , que é somente um hábito demonstrativo, nem pela arte e pela sabedoria as quais dizem respeito às coisas que podem ser de outra forma, isto é, que carecem de necessidade. Neste sentido, o I. tem também a faculdade de intuir os “termos últimos”, os fins aos quais deve ser subordinada a ação; 


b) também no sentido específico, inclui-se o sentido operativo de intelecto. Coube a Bergson defini-lo como “a faculdade de fabricar objetos artificiais, particularmente utensílios, e de variar indefinidamente sua fabricação”. “Devido à sua função operativa, a inteligência tende a captar não as coisas, mas a relação entre as coisas, por isso não a matéria delas, mas a sua forma”;


c) ainda no sentido geral, vem a concepção de intelecto compreendente ou inteligência, articulada em dois sentidos: 1) como inteligência – a capacidade de apreender o significado de um símbolo, a força de um argumento, o valor de uma ação etc., ou seja, “a capacidade de efetuar corretamente uma operação determinada”; 2) como compreensão – “de um certo tipo de objetos, por ex., de um homem ou de uma situação histórica”.[9]


Contudo, além dessas concepções tradicionais do intelecto, do qual se manifesta a inteligência, HOWARD GARDNER identifica pelo menos oito espécies de inteligências: lingüística, lógica, matemática, musical, espacial, corporal-sinestésica (em atletas e dançarinos), interpessoal (compreensão de humores, motivações e estados mentais de outras pessoas) e intrapessoal (percepção dos próprios sentimentos e aptidão para torná-los como base para orientar comportamentos), a naturalista – que permite o reconhecimento e a categorização de objetos naturais, a exemplo de Charles Darwin. O mesmo autor já investiga uma nona inteligência: a existencial, “que abarca a propensão humana a levantar questões fundamentais sobre a existência, a vida, a morte, a finitude e ponderar a respeito delas”, a exemplo de Dalai Lama, Kierkegaard, Soren.[10]


Assim, o trabalho intelectual é o que envolve a manifestação do intelecto, em todos ou qualquer dos seus sentidos: intuitivo, operativo ou compreendente, ou seja, a ação criativa ou recriativa, de ordem física e/ou mental, concebida a partir da compreensão abstrata do objeto.


Científico – é o trabalho intelectual diretamente dirigido à pesquisa, à investigação metódica e coordenada a partir de evidências e experiências. É o que faz ciência. E a ciência, sob a especulação filosófica, inclui pelo menos três tipos de questões: a) relativas ao método de cada ciência; b) relativas ao tipo de conhecimento alcançado; c) relativas à filosofia da natureza possível.[11] Logo, não tem natureza científica o trabalho que não envolve essas qualidades e, conseqüentemente, não estará albergado pela norma de exceção ao vínculo de emprego. 


Artístico – trabalho de natureza artística é o que consiste em produção de arte em todas as suas formas de manifestação, literária, musical, corporal, pintura, escultura, desenho, gráfica, artesanato etc., criando, interpretando ou reproduzindo.


M. Antunes, após desvanecer da indefinibilidade da arte, tamanha é sua abrangência, diz que o fenômeno artístico, como parte do fenômeno cultural geral, só se torna inteligível na intersecção de três leis: lei do reflexo; lei do gênio; lei do gênero.


Em seguida, sugere pelo menos uma dúzia de formas como aparece a arte: imitação; criação ou fabricaçãoa partir do próprio artista ou de elementos primordiais”; expressão, “em formas espaciais e/ou duracionais, do mundo próprio do homem, do seu aprender, do seu imaginar, do seu desejar, do seu querer, do seu re-presentar, do seu futurar”; comunicação, “por meio de certos processos seletivos, ou por meio de certos sinais especialmente significantes ou significativos de determinadas mensagens ou da simples vontade de comunicar”; jogo, “mais ou menos gratuito ou mais ou menos interessado, em que certos homens revelariam uma das características fundamentais do homem, que é a de ser homo ludens, induzindo outros a participarem dessa capacidade”; exteriorização, “no e pelo sensível, do espírito absoluto”; produção, “a nível superestrutural e ideológico de conteúdos, infra-estrutura de ordem social e econômica”; intuição; manifestação de beleza, “que, através do som, da matéria plástica e/ou da palavra, em formas adequadamente rítimicas e proporcionadas causa deleite, prazer ou agrado”; padrão informado pela sensibilidade; sublimação da libido instintual de forma aproximadamente idêntica à que se dá noutras formas da cultura; manifestação concreta e simbólica de arquétipos do inconsciente coletivo.[12]


Desse ligeiro apanhado, conquanto vastíssimo o sentido de arte, fica claro seu sentido. Ademais, nos conceitos vagos ou indeterminados, toma-se o sentido que o senso comum lhe empresta. E não se queira incluir na categoria de trabalho artístico aquele que não envolva um dos sentidos supra. 


Cultural – em sentido coloquial, cultural é assim entendido o trabalho que tem por base manifestações da cultura popular, folclórica, dança, hábitos etc. Do Dicionário Aurélio, extrai-se que cultural é:


“relativo à, ou próprio da cultura”. E Cultura, para os efeitos ora estudados, significa “o complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade”.[13]


Mas não é tão simples assim. Cultural vem de cultura e o conceito de cultura é extensíssimo. ABBAGNANO escreve que o termo tem dois significados básicos: a) o primeiro e mais antigo é aquele pelo qual significa a formação do homem, o seu melhorar-se e refinar-se; b) o segundo significado é aquele pelo qual indica o produto dessa formação, isto é, o conjunto dos modos de viver e de pensar cultivados, civilizados, que se costumam também indicar pelo nome de civilização. Do seu extenso texto, é oportuna a transcrição dos excertos abaixo:


“No primeiro significado, referente à pessoa humana individualizada na sua formação, a palavra corresponde ainda hoje ao que os Gregos chamavam paidéia e que os latinos, no tempo de Cícero e de Varrão, indicavam pela palavra humanitas: a educação do homem como tal, isto é, a educação devida àquelas ‘boas artes’, próprias só do homem e que o diferenciam de todos os outros animais. (…) As boas artes eram a poesia, a eloquência, a filosofia etc., às quais se reconheciam um valor essencial por aquilo que o homem é e deve ser, portanto a capacidade de formar o homem verdadeiro, o homem na forma genuína e perfeita.”


“No segundo significado a palavra é hoje especialmente usada pelos sociólogos e antropólogos para indicar o conjunto dos modos de vida criados, apreendidos e transmitidos de uma geração para outra, entre os membros de uma determinada sociedade.”[14]


Como se vê, todos esses conceitos não são fechados. Chegam a ser conceitos indeterminados, os quais se caracterizam por situarem-se numa zona penumbrosa, entre o fim do dia e o início da noite. Neste caso, a solução se dá pelo que de ordinário se entende e ainda tendo em vista o fim alvitrado pela norma jurídica.


4. Implicações da Lei do BEM com a Legislação Trabalhista


De antemão, trata-se de mais uma forma de terceirização do trabalho, a qual instiga as seguintes questões: pode ser prestada para atividade-fim da empresa sem vínculo de emprego do prestador do serviço com a tomadora do serviço? As cooperativas podem fornecer mão-de-obra para atividade permanente da empresa tomadora do serviço?


4.1 Pontos convergentes e pontos divergentes entre a Lei do Bem e o contrato de emprego


Dentre outros, identificamos os seguintes pontos de intersecção das linhas características do contrato mediante PJ e do contrato de emprego: a) ambos são contrato de atividade, ou seja, para prestação de serviço continuado; b) em ambos haverá a pessoalidade na execução do serviço; c) em ambos o serviço é de necessidade contínua ou mais ou menos duradoura na tomadora; d) ambos são onerosos, em que o trabalho é remunerado; e) em ambos, o trabalho poderá ser prestado nas dependências da contratante tomadora.


Por sua vez, as duas modalidades distanciam-se nos seguintes pontos: a) o trabalho do art. 129 é prestado mediante uma pessoa jurídica, o celetista, através de pessoa física; b) o primeiro é regido pelo Código Civil, o segundo, pela Consolidação das Leis do Trabalho; c) no do art. 129 o trabalhador goza de autonomia ou é parassubordinado, no de emprego, ele é comandado; d) no do art. 129 há uma relação de coordenação entre o tomador e o prestador do serviço, no celetista, há uma subordinação do empregado ao empregador; e) cada um gera obrigações fiscais e previdenciárias diferentes; f) no contrato de emprego a pessoalidade do empregado é de sua essência, indelegável, enquanto no contrato do art. 129 a sociedade poderá realizar o serviço mediante terceiro alheio aos seus quadros, ou através de empregados seus, embora isso só seja admissível segundo as restrições já descritas no item 4.3.


Decerto, a segunda situação posta – pontos divergentes entre as duas modalidades – sempre estará formalizada documentalmente. Porém, se os fatos se rebelarem e demonstrarem que na realidade a pj é apenas de fachada; ou que não há autonomia do trabalhador; ou que o trabalho não é de natureza intelectual; ou que se trata de uma terceirização ilícita etc. impor-se-á a declaração da relação empregatícia. 


4.2 A Lei do Bem x o princípio trabalhista da primazia da realidade


Essa forma de contratação já vinha sendo amplamente utilizada com o fim de mascarar a relação de emprego e contornar a legislação do trabalho, mediante a qual as empresas se exoneravam do custo do emprego. Agora, com a expressa permissão no art. 129 da Lei n. 11.196/05, a dita prática que antes era escusa estará imune à legislação do trabalho?


Claro que não. Nada mudou do ponto de vista da legislação do trabalho. É importante salientar que a lei sob comento possui natureza fiscal, portanto deve ser interpretada sob essa ótica e tendo em vista esses fins. Por sua vez, a lei trabalhista possui natureza tutelar da relação de emprego, é impositiva e especial, não cedendo à vontade das partes nem a outros comandos legais que não sejam trabalhistas.


A proteção do trabalho constitui direito fundamental da pessoa do trabalhador, catalogada no art. 7o da Constituição. Sua principal regulamentação encontra-se na CLT e legislação trabalhista.


E a relação de emprego encontra-se definida na Consolidação das Leis do Trabalho, arts. 3o e 442, cuja caracterização de fato é oponível a todas as outras fórmulas, legais ou contratuais, que a disvirtue.


O art. 3o estabelece as quatro características da relação de emprego: pessoalidade na prestação do serviço, não-eventualidade, subordinação jurídica e remuneração


Prosseguindo nesse intento, o art. 442 da mesma CLT preceitua: “Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso correspondente à relação de emprego” Aqui, o Digesto Obreiro alberga a teoria do contrato realidade, significando dizer que, uma vez verificados os fatos que o caracterizam, pouco importa a forma. Aqui também se aninha o princípio da primazia da realidade.


Este princípio consiste em que, no caso de discrepância entre o que ocorre na prática e o que emerge dos documentos, deve dar-se preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos..


O distanciamento entre a forma e os fatos decorre de uma das quatro situações: simulação (ação deliberada de produzir situação jurídica distinta da real); erro imputável a uma das partes ou a ambas; falta de atualização dos dados na CTPS e nos registros próprios; e ausência de requisitos formais, que pode tornar vulnerável o ato.


O art. 9o da CLT, amarrando a situação, é imperativo: “Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”. Na verdade, a fraude que descaracteriza uma relação de emprego de fato agride não só a CLT, mas toda a legislação trabalhista, como o FGTS, o 13º salário, o repouso semanal e da seguridade social, como o INSS, o PIS/PASEP.


Com efeito, só o prestador de serviços intelectuais poderá ser contratado nos moldes previstos no art. 129 da Lei 11.196/05. Esse trabalho intelectual pode inclusive ser de natureza científica, artística ou cultural.


Decerto, esses profissionais não se curvam a uma relação de emprego nos moldes do capitalismo industrial, como foi concebida a nossa legislação do trabalho. Tais trabalhadores preferirão uma relação jurídica regida pela legislação civil, que possui mais força de contratualidade, permitindo mais liberdade na manifestação da vontade.


Desvirtuar os conceitos de intelectual, científico, artístico e cultural para enquadrar os profissionais respectivos no art. 129 da Lei do Bem constitui a maior fraude à lei trabalhista. Conseqüentemente, em tais casos, impõe-se a aplicação do art. 9º do Digesto Obreiro.


E como identificar se a natureza do trabalho prestado é intelectual (científica, artística ou cultural)?


Um critério para o enquadramento da situação diz respeito a identificar se o serviço relaciona-se com a criatividade ínsita ao trabalho intelectual, à atividade-fim da pesquisa científica, da criação intelectual, da produção artística e cultural. Não se incluindo os corroboradores ou prestadores de atividades de apoio ao trabalho intelectual. Estes últimos ou são empregados do intelectual prestador do serviço ou do tomador.


O problema que se antevê é que onde passa um boi passa uma boiada.


Assim, certamente os conceitos tenderão a flexibilizar-se. Daqui a uns dias, os tomadores de serviço enquadrarão qualquer trabalho como intelectual; qualquer espécie de elucubração será trabalho científico; qualquer que exiba cores, sons, imagens é artístico e qualquer que exiba movimento será cultural. É bem aqui, quando houver abuso desses conceitos, que o princípio da primazia da realidade intervirá, para corrigir a relação formal segundo a relação de fato.


Não é que a legislação do trabalho prevaleça sobre outras leis. É que, cada qual deve comandar seu cada qual. A relação de emprego é definida e protegida pela legislação do trabalho. E sua caracterização decorre dos fatos. Uma vez constatados estes, incide a lei trabalhista. Não caracterizada a relação de emprego, aplica-se ao caso, a Lei fiscal-empresarial.


4.3 A Lei do Bem x os limites da terceirização e a Súmula 331 do TST


Essa criação legal reflete mais uma medida em cumprimento ao inesgotável projeto de flexibilização das relações de trabalho. No caso em apreço, trata-se de mais uma forma de terceirização de serviços.


É salutar registrar que, conforme o art. 3º da Instrução Normativa n. 3/97, do Ministério do Trabalho e Emprego, empresa contratante é a pessoa jurídica de Direito Público ou Privado que celebra contrato com empresas de prestação de serviços a terceiros com a finalidade de contratar serviços. Nos §§ 1º ao 4º desse artigo estabelece as características da contratação de serviço terceirizado: a) a contratante e a empresa prestadora de serviços a terceiros devem desenvolver atividades diferentes e ter finalidades distintas; b) a contratante não pode manter trabalhador em atividade diversa daquela para a qual o mesmo fora contratado pela empresa de prestação de serviços a terceiros; c) em se tratando de empresas do mesmo grupo econômico, onde a prestação de serviços se dê junto a uma delas, o vínculo empregatício se estabelece entre a contratante e o trabalhador colocado à sua disposição de acordo com o disposto no art. 2º da CLT; d) o contrato de prestação de serviços a terceiros pode abranger o fornecimento de serviços, materiais e equipamentos.


De antemão, como se trata de uma forma de terceirização de serviços, haverão que ser observadas as regras mínimas da terceirização: a) da especialização, ou seja, que a pessoa jurídica prestadora do serviço seja especializada na espécie a que se propõe; b) o serviço terceirizado não poderá integrar a atividade-fim da tomadora; e c) a tomadora responderá subsidiariamente pelas obrigações trabalhistas dos trabalhadores empregados da prestadora que lhe realizaram o serviço. Além dessas regras, atente-se para o limite que o art. 129 da Lei n. 11.196 impõe – ou seja, a contratação de serviço mediante pessoa jurídica só poderá ser efetuada para trabalho de natureza intelectual, científica, artística ou cultural.


Outrossim, por imperativo do art. 114, I, da Constituição Federal, com a redação que lhe deu a Emenda Constitucional n. 45/2004, compete à Justiça do Trabalho julgar os dissídios oriundos dessa relação, envolvendo a pessoa do prestador do serviço e a sociedade a que pertencer ou o prestador do serviço, quer sob a forma instituída pela Lei n. 11.196/2005, quer sob a forma da tradicional relação de emprego.


 


Notas:

[1] Ibdem, nota supra, p. 582.

[2] ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho. http://www.anamatra.org.br/notícias. 24.11.05.

[3] FIUZA, Ricardo (Coordenador). Novo Código Civil Comentado. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p 905.

[4] FIUZA, Ricardo. Ibdem, p. 904.

[5] Gazeta Mercantil, Caderno A, de 16.12.2005.

[6] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

[7] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26 ed. Malheiros, 2005, pp. 318 e 323.

[8] SILVA, De Plácido. Op. cit.

[9] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução coordenada e revista por Alfredo Bosi. São Paulo: Mestre Editora Jou, 1970. Do original Dizionario di Filosofia.

[10] GARDNER, Hovard. Inteligência Humana Múltipla. In Revista “Viver – Mente e Cérebro”. Edição Especial Inteligência. N. 1., pp. 16 a 21.

[11] RODRIGUES, J. Resina. Verbete CIÊNCIA (Filosofia da). LOGOS Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 2ª reimpressão, 1997.

[12] ANTUNES, M. Verbete ARTE (Filosofia da). LOGOS Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 2ª reimpressão, 1997.

[13] Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, s.d.

[14] Op. cit.


Informações Sobre o Autor

Francisco Meton Marques de Lima

Doutor em Direito Constitucional pela UFMG
Mestre em Direito e Desenvolvimento pela UFC
Prof. Associado da UFPI, NOVAFAPI e FAP
Desembargador do TRT da 22a Região


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