Cartões corporativos infringem princípios de Direito Financeiro

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Estamos estarrecidos com as notícias transmitidas diariamente pela mídia dando conta de que autoridades e servidores graduados do Executivo vêm fazendo uso de cartões corporativos para realização de despesas pessoais em free shops, bares, aluguéis de carros, compras em supermercados, e o que é pior, saques em dinheiro.

Esse mecanismo de utilização de dinheiro público, introduzido pelo governo FHC em nome da praticidade, teve as despesas dele decorrentes consideravelmente aumentadas no atual governo, ironicamente, em nome da transparência dos gastos públicos.  E a cada ano que passa essas despesas vão crescendo em proporções gigantescas. Citemos alguns exemplos, confrontando os valores gastos em 2006 e 2007[1]:

2006                   2007                    aumento

Planejamento  4.514.833             34.446.016                662,95 %

Cultura               35.932                  117.444               226,85 %

Turismo                  348                       2.780               699,41 %

Previdência Social  436.810              1.282.095              193,51 %

Igualdade Racial      55.532              171.556                 208,93 %

No total foram gastos 177,5 milhões de reais, no exercício findo de 2007, por 11.500 portadores de cartões corporativos.

É claro que dados estatísticos, por si sós, não servem para apreciação qualitativa das despesas feitas. Quem gastou mais em termos de valores não significa, necessariamente, que auferiu vantagens indevidas.

Mas, não é propósito deste artigo analisar os gastos feitos por esta ou aquela autoridade, nem por  este ou aquele servidor público, tarefa já suficientemente desempenhada pelos meios de  comunicação de massa (jornais, revistas, rádio  e televisão).

Examinemos a matéria exclusivamente pelo prisma jurídico-financeiro.

A despesa pública pela modalidade de cartão corporativo não tem base legal, nem constitucional.

A Lei nº 4.320/64, bem como a Lei Complementar nº 101/00 – LRF – não permitem despesas públicas que não se enquadrem previamente nos “elementos de despesas”, que devem constar da Lei Orçamentária Anual –  LOA.

Essa exigência é uma decorrência direta do princípio da fixação de despesa pública que está expresso no § 8º, do art. 165 da CF, o qual, se desdobra em outro princípio, o da quantificação dos créditos orçamentários (art. 167, VII da CF), que veda a concessão ou utilização de créditos ilimitados.

A inobservância desse princípio constitucional torna inócuo e ineficaz o controle interno da execução orçamentária, bem como o controle externo exercido pelo Congresso Nacional, com auxílio do Tribunal de Contas da União.

Por isso, o máximo que a Lei nº 4.320/64 permite é a inclusão nas dotações orçamentárias pertinentes às despesas públicas de um elemento de despesas sob a rubrica “adiantamento de despesas”, para oportuna prestação de contas pelo servidor público contemplado. Adiantamento de despesas, segundo a definição dada pelo art. 68 da Lei nº 4.320/64, só é admissível em casos expressamente previstos em lei, e “consiste na entrega de numerário a servidor, sempre precedida de empenho em dotação própria, para o fim de realizar despesas que não possam subordinar-se ao processo normal de aplicação”. O art. 69 veda o adiantamento ao “servidor em alcance”, expressão técnica que significa aquele servidor a quem foi atribuída culpa ou dolo na despesa feita irregularmente. Nessa hipótese, anula-se o empenho e propõe-se contra o servidor ímprobo o competente executivo fiscal.

Dir-se-á que tal procedimento dificulta a realização de despesas necessárias. É verdade, mas em se tratando de dinheiro público o seu dispêndio deve atender aos rigores do princípio da legalidade, que é um corolário do princípio da legalidade tributária. Não há justificativa, por exemplo, para promover contratação sistemática de carros de aluguel, ou de abastecer residências oficiais ou repartições públicas com alimentos e bebidas, de forma usual, com dispensa do certame licitatório, onerando a respectiva dotação orçamentária.

A despesa pública deve ser feita de forma a possibilitar o seu controle e fiscalização efetiva, o que não será possível se os gastos públicos forem feitos por meio de cartões corporativos, que até saques em dinheiro permitem. O princípio da transparência não se resume na verificação do quantum da despesa feita, mas na exteriorização da causa e da finalidade da despesa, inclusive, para efeito de confrontar a despesa realizada com o princípio da legitimidade da despesa pública, que antecede o princípio da legalidade dessa despesa. Aliás, cartões corporativos é infeliz na própria denominação dada, por denotar uma idéia contrária à moralidade administrativa. Traduz a idéia de corporativismo, que conduz à política de gastança dos detentores do poder.

As despesas públicas, como as de início mencionadas, atentam contra os princípios da administração pública, insertos no art. 37 da CF, e enquadram-se, em tese, nos atos de improbidade administrativa nas três modalidades previstas nos artigos 9, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92.

Tais despesas, necessariamente, implicam violação do tão comentado princípio da impessoalidade. Na ausência de “elementos de despesas”, os gastos com cartões corporativos dependem apenas da  subjetividade de cada um dos agentes portadores, permitindo-se até saques em dinheiro, sem prévia especificação de sua finalidade. Não há Regulamento capaz de eliminar a dose de subjetividade fora das normas da lei de regência da matéria, que não abriga esse tipo de despesas. Daí a ineficácia das medidas governamentais tentando conter despesas pessoais, estabelecendo proibições casuísticas com base nas notícias de irregularidades veiculadas pela grande imprensa. Essa matéria insere-se no âmbito de reserva legal, cabendo ao Congresso Nacional, se for o caso, adequar a Lei nº 4.320/64 às necessidades dos dias de hoje, em que o quadro de pessoal nas administrações públicas das três esferas políticas  não para de inchar. Uma coisa é a preservação da segurança nacional, que é um dever do Estado e responsabilidade de todos, a exigir despesas sigilosas,  e outra coisa  bem diversa é colocar os cartões corporativos em mãos de 11.500 servidores das mais diferentes categorias funcionais.

As despesas com cartões corporativos têm sua matriz na  DRU, que representa um cheque em branco de mais de R$ 125 bilhões em mãos do Executivo, considerando-se o montante das receitas tributárias estimadas na proposta orçamentária de 2008.

A origem dessa DRU, que está no Fundo Social de Emergência, instituído pela Emenda de Revisão de nº 1/94, para vigorar nos exercícios de 1994 e 1995, em uma situação emergencial (o Congresso não teve tempo para discutir e aprovar  a LOA de 2004,  por conta do processo de impeachment do Presidente da República), vem sendo prorrogado desde então com o nome de Fundo de Estabilização Fiscal e agora sem nome, conhecido pela sigla DRU,  que significa desvinculação da receita da União no montante equivale a 20% de todos os tributos federais. À época em que a DRU ostentava a denominação de Fundo, dizíamos que “de fundo em fundo o orçamento anual vai parar no fundo do poço”. É o que está acontecendo. O orçamento deixou de ser o instrumento do exercício de cidadania, para transformar-se em uma peça decorativa, apesar do grande trabalho que tem dado ao Parlamento para sua aprovação, quase sempre, fora do prazo constitucional.

A DRU, por não corresponder a nenhuma dotação específica, representa um ralo por onde são sugados os recursos financeiros do Estado sem prévia destinação legal, e por isso mesmo, não passíveis de controle  e fiscalização. É pior do que a “reserva de contingência”, que esvazia em parte a função legislativa para abertura de créditos adicionais especiais (art. 167, V da CF).

Enquanto o Congresso Nacional não extinguir a DRU, infelizmente, prorrogada até 2011 pela Emenda nº 56, de 20-12-07, originária da PEC nº 50/07, que previa também a prorrogação das CPMF, as despesas do tipo cartão corporativo ou algo pior continuarão acontecendo.

Em conseqüência, iremos protelando indefinidamente a oportunidade de crescimento econômico nos moldes dos demais países emergentes, porque a manutenção do crescente nível de imposição tributária se tornará indispensável, mesmo à custa de coações indiretas dos contribuintes, por meio de instrumentos normativos cada vez mais truculentos e distanciados dos direitos e garantias fundamentais, que deveriam estar pairando acima do poder político do Estado, porque resultantes de soberania popular (parágrafo único do art. 1º da CF).

Notas:
[1] Fonte: O Estado de São Paulo, de 31-1-2008, p. A4.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Kiyoshi Harada

 

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 


 

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