“Uma posição tradicional e ainda prevalecente em muitos países é a de simplesmente recusar qualquer ação privada e continuar, em vez disso, a confiar na máquina governamental para proteger os interesses públicos e dos grupos. […] É profundamente necessário, mas reconhecidamente difícil, mobilizar energia privada para superar a fraqueza da máquina governamental” (MAURO CAPPELLETTI, BRYANT GARTH).
Resumo: O artigo examina os diversos contextos de tutela dos direitos humanos fundamentais no processo do trabalho, minudenciando os múltiplos usos da ação civil pública em seara laboral, lançando luzes sobre aspectos ainda obscuros da EC n. 45/2004 (tais como o cabimento do “habeas data” na Justiça do Trabalho), sistematizando objetivamente as hipóteses de inversão do ônus da prova nas ações trabalhistas e discutindo o problema das tutelas processuais “ex officio”, entre outras abordagens. Colima-se, com o ensaio, chamar a atenção de juristas, operadores e jurisdicionados para o paulatino entorpecimento das sensibilidades, a despeito das lesões ou ameaças que achacam diuturnamente direitos fundamentais de trabalhadores. À míngua de tutelas preventivas ou inibitórias, as violações resolvem-se em indenizações, consolidando uma cavilosa perspectiva monetizadora.
Palavras-chave: 1. Tutela processual dos direitos humanos. 2. Direitos fundamentais. 2. Devido processo legal. 3. Processo do trabalho (teoria geral). 4. Ações constitucionais (processo do trabalho). 5. Tutela específica. 6. Judicialização da política.
Sumário: I. Introdução. II. Direitos humanos e direitos fundamentais. III. Direitos humanos fundamentais nas relações de trabalho. IV. Tutela processual dos direitos humanos nas relações de trabalho. 4.1. Ações civis públicas e coletivas. Dano moral coletivo. 4.2. O «habeas data» e as ações de reconhecimento de vínculo empregatício. 4.3. Inversões do ônus da prova. 4.4. Poderes instrutórios e tutela «ex officio». 4.5. Meio ambiente do trabalho. 4.6. Judicialização da política. V. Conclusões. VI. Bibliografia.
I. INTRODUÇÃO.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) coroou um processo secular e ainda inacabado de descobrimento e positivação dos direitos de liberdade, de igualdade e de solidariedade inerentes à condição humana. Já por isso ― pela incompletude do processo ―, tal Declaração consagrou direitos inegavelmente históricos, tal como configurados na percepção das nações ao cabo dos horrores da Segunda Guerra Mundial. Não os exauriu, nem poderia tê-lo feito. Prova disso são os recentes textos internacionais em prol de direitos humanos que passaram ao largo daquele documento, como os direitos biogenéticos mais complexos e os direitos-deveres de informação e sigilo[1].
Conseqüentemente, o processo de descobrir e positivar direitos do homem corresponde a um ciclo virtualmente interminável. São os velozes passos do ser humano em direção ao progresso tecnológico e ao desenvolvimento material e econômico que os determinam, não o contrário. Há, sempre, uma margem de incerteza no conteúdo, compensada por um índice de certeza formal: são ― e serão ― direitos.
Mas o que isso significa, em termos práticos?
Para evocar uma conhecida fórmula do Código Civil de 1916, significa que a cada um desses direitos corresponde uma ação judicial (artigo 75[2]). Ou seja: por hipótese, todos esses direitos hão de engendrar, em relação ao Estado, um direito de agir (instrumental) que lhes assegure a efetividade. O que nos remete ao tormentoso problema do acesso à Justiça.
RICHARD CLAUDE dizia que “a efetividade ou proteção processual é apenas outro aspecto do conteúdo do Direito”[3]. Noutras palavras, o acesso à Justiça ― ora compreendido como “proteção processual” (= acesso adequado à tutela jurisdicional mediante ações e remédios legalmente predispostos) ― é o fator que assegura, para além das meras proclamações, a satisfação dos conteúdos valiosos imanentes aos demais direitos fundamentais[4]. A garantia dos direitos fundamentais seria meramente retórica se não houvesse, ao alcance dos cidadãos interessados, meios jurídicos hábeis a obter do Estado-juiz um provimento de afirmação compatível com as pretensões injustamente frustrada e exeqüível “sub imperii”.
Pois bem. O escopo do presente trabalho é, a partir dessas premissas, demonstrar e operacionalizar aquela hipótese em seara trabalhista. Num ramo da Ciência Jurídica em que o objeto útil dos contratos é a própria força de trabalho da pessoa humana (i.e., uma projeção de sua personalidade), a vulnerabilidade dos direitos fundamentais de tantos quantos laborem sob subordinação é especialmente aguçada; e, no entanto, a imensa maioria das ações propostas na Justiça do Trabalho não persegue a satisfação dos conteúdos de direitos fundamentais como a vida, a integridade física, a liberdade, a honra, a privacidade ou a informação, mas a quitação de direitos de crédito de estrita aferição patrimonial (que seriam, se muito, emanações de um único direito previsto na Convenção de 1948, a saber, o direito de propriedade…[5]).
Não é crível que, em meio aos mais de trinta milhões de contratos formais de emprego que existem no Brasil[6], as lesões ou ameaças de lesão a direitos fundamentais sem expressão patrimonial (vida, integridade, liberdade, informação, etc.) reduzam-se a números tão marginais. Menos crível, ainda, se considerarmos as estimativas dos postos informais de trabalho subordinado no país do “jeitinho”. É lícito conjeturar, portanto, que exista uma subutilização dos remédios judiciais preventivos e corretivos, provavelmente em função do medo de punições e dispensas, a que se soma uma cultura de monetização de direitos laborais inalienáveis que já vem de algumas décadas. Os trabalhadores preferem aguardar o término regular dos contratos de trabalho para reclamar, em juízo, todos os direitos violados (sempre pela ótica indenitária, eis que consumadas as lesões e impraticável a restituição ao “status quo ante”).
Essa é, por evidente, uma disfunção do sistema brasileiro de tutela processual trabalhista. E o primeiro passo para corrigi-la é promover a conscientização difusa dos operadores jurídicos quanto às possibilidades e aos benefícios da tutela judicial preventiva e/ou restauradora nos quadros de violação (em ato ou potência) dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Eis, doravante, a nossa contribuição.
II. DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS
Em matéria de direitos humanos, o mais importante documento jurídico produzido pelo Homem provavelmente seja mesmo a Declaração Universal dos Direitos do Homem (Paris, 1948), aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10.12.1948 e referida supra. Em seu preâmbulo, os Estados soberanos reconheceram que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (g.n.). No considerando seguinte, registrou-se que “o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade”, sendo fundamental que “os direitos do homem sejam protegidos pelo império da lei, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão” (g.n.).
Não é fácil defini-los, como se verá. Em geral, toda definição torna-se tautológica: “Direitos do homem são os que cabem ao homem enquanto homem”. E, se não são tautológicas, raramente são satisfatórias. Outros exemplos: “Direitos do homem são aqueles que pertencem, ou deveriam pertencer, a todos os homens, ou dos quais nenhum homem pode ser despojado”. Ou ainda: “são os direitos cujo reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização” (BOBBIO). Já para ALEXANDRE DE MORAES, a expressão “direitos do homem” designa o
“conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana”[7].
MORAES prefere, aliás, a expressão “direitos humanos fundamentais”, seguindo de perto a terminologia da UNESCO[8].
Outros autores há que distinguem entre “direitos humanos” e “direitos fundamentais”. Nesse sentido, MARCUS VINÍCIUS AMORIM DE OLIVEIRA esclarece, com base em WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, que
“do ponto de vista histórico – e portanto, empírico – os direitos fundamentais decorrem dos direitos humanos. No entanto, os direitos fundamentais correspondem a uma manifestação positiva do direito, ao passo que os direitos humanos se restringem a uma plataforma ético-jurídica. O que se observa é que há uma verdadeira confusão, na prática, entre os dois conceitos. Saliente-se, entretanto, que os direitos humanos se colocam num plano ideológico e político. Estes últimos se fixam, em última análise, numa escala anterior de juridicidade”[9].
Com tudo isso, se compreende de imediato porque o Poder Judiciário tem uma função primordial a desempenhar na tutela dos direitos humanos: a ele a Constituição reservou a missão institucional de garantir, na última trincheira sociológica (a do conflito), a liberdade dos homens, a justiça nas relações e a paz na sociedade. Ora, a liberdade, a justiça e a paz são os maiores valores de um Estado Democrático de Direito. Daí se dizer, afinal, que o Poder Judiciário é o guardião da Democracia nos Estados Republicanos. Não se faz Democracia sem a salvaguarda intransigente dos direitos do homem[10].
Ainda sobre a Declaração Universal dos Direitos do Homem, releva evocar o escólio sempre atual e elucidativo de NORBERTO BOBBIO[11]. Para o autor, existem três premissas inasfastáveis em derredor do tema dos direitos do homem:
1. os “direitos naturais” ― a exemplo daqueles positivados na Declaração de 1948 ― são, na verdade, direitos históricos (cfr. supra);
2. nascem ― ou são reconhecidos ― no início da Era Moderna (Revolução Francesa de 1789, Declarações de Direitos e Constituição americana de 1787, obras de THOMAS PAINE, etc.[12]), juntamente com a concepção individualista da sociedade;
3. tornaram-se um dos principais indicadores do progresso histórico da civilização.
No plano histórico, a consolidação da teoria geral dos direitos humanos deve-se a uma mudança progressiva de perspectivas no plano jurídico-político. Ou, na dicção de BOBBIO,
“deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação estado/cidadão ou soberano/súditos: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano [absolutismo], em correspondência com a visão individualista da sociedade, segundo a qual, para compreender a sociedade, é preciso partir de baixo, ou seja, dos indivíduos que a compõem, em oposição à concepção orgânica tradicional, segundo a qual a sociedade como um todo vem antes dos indivíduos”[13].
Sendo históricos, não há como se encontrar um fundamento absoluto para os direitos humanos. Derivam da concepção ética de seu tempo. Nada obstante, pode-se apontar-lhes três características empíricas[14]:
● radicam-se nos valores últimos de uma dada sociedade ― salientando-se que, não raro, esses “valores últimos” são antinômicos, razão pela qual surgem as chamadas colisões de direitos fundamentais[15]. Já por isso, reúnem-se em uma classe mal-definível (i.e., só se logra defini-los mediante recurso a tautologias ou predicados, não à essência em si);
● constituem ainda uma classe variável, dada que histórica. No futuro, poderão surgir novos “direitos do homem”. BOBBIO sugere o “direito a não portar armas contra a própria vontade” (que poderia significar, e.g., o fim do serviço militar obrigatório). Outro exemplo está no direito fundamental dos cidadãos à acessibilidade aos cargos, empregos e funções públicas mediante concursos objetivos de seleção, tal como previsto, e.g., no artigo 37, II, da CRFB (garantia inimaginável ao tempo dos reis, nos séculos XV ou XVI);
● constituem, enfim, uma classe heterogênea: abrangem pretensões as mais díspares e, por vezes, incompatíveis entre si (o que decorre daquela mesma antinomia recorrente de valores).
Nessa esteira, os direitos humanos estratificaram-se em três ou quatro gerações de direitos (ou dimensões, como querem alguns, já que o conceito de “geração” poderia sugerir a obsolescência ou superação das gerações mais “antigas”). Seguem abaixo.
1. Os direitos humanos de primeira geração são basicamente aqueles consagrados na Declaração de 1948, i.e., os direitos civis e políticos (relacionados ao valor liberdade). Tais direitos reclamam, da parte de terceiros (notadamente os poderes e órgãos públicos), uma série de deveres puramente negativos que implicam a abstenção de determinados comportamentos cerceadores. São, pois, as liberdades públicas.
2. Os direitos humanos de segunda geração são os direitos sociais, econômicos e culturais. Entre nós, vejam-se todos os direitos sociais inscritos nos artigos 6o e 7o da CRFB (esses últimos atrelados umbilicalmente às origens históricas do Direito do Trabalho). Os direitos de segunda geração só podem ser satisfeitos se forem impostos aos terceiros (notadamente aos poderes e órgãos públicos), imputando-se-lhes um arcabouço de deveres positivos sindicáveis em juízo. Alguns os chamam poderes, porque ― embora ligados ao valor fundamental da igualdade ― enfeixam as possibilidades de exercício das chamadas liberdades positivas, reais ou concretas (ao contrário dos direitos de primeira geração, que dizem com as liberdades clássicas, negativas ou formais), as quais demandam prestações (e não abstenções) do Estado. Nesse cadinho forjou-se o conceito de interesses coletivos “stricto sensu” (vide o artigo 81, II, do CDC e o tópico 4.1, infra).
Os direitos de primeira e de segunda geração tendem a ser antinômicos entre si, pois a realização plena de todos eles não admite simultaneidade. Assim, p. ex., se há políticas públicas direcionadas à plenitude do direito à habitação, impondo pesadas multas aos proprietários de imóveis vagos que não os cedam em locação, mitiga-se o direito de propriedade (que assegura a liberdade de usar, gozar e dispor como bem aprouver do patrimônio amealhado). São essas inevitáveis colisões que estão, afinal, na raiz das doutrinas da função social da propriedade (artigo 5º, XXIII, da CRFB). Daí a grande máxima de ALEXIS DE TOCQUEVILLE (sobre o então resplandecente sistema democrático norte-americano): igualdade e liberdade são valores que historicamente convivem em irredutível tensão[16]. “Mutatis mutandi”, o mesmo se poderia dizer, na esfera jurídica, dos direitos de liberdade e dos direitos de igualdade (ou poderes).
3. Os direitos humanos de terceira geração definem-se como “direitos de solidariedade: direito à paz, ao desenvolvimento, ao respeito ao patrimônio comum da humanidade, ao meio ambiente”[17]. Tais direitos estão ligados ao valor da fraternidade (= solidariedade), completando o tríduo axiológico da Revolução Francesa de 1789.
Essa classe de direitos envolve um processo de coletivização dos interesses e titulares (forjando-se o conceito de interesses difusos) e de especificação dos sujeitos destinatários (consideração do indivíduo humano “uti singulus”: a criança, a mulher, o adolescente, o consumidor, o contribuinte, o deficiente, o idoso, etc.). Eis aqui o ponto de inflexão dos direitos de terceira geração, uma vez que, nas liberdades singulares do século XVIII, pensava-se o homem “in abstracto”, sob o pálio da igualdade formal. Na terceira geração, porém, os direitos e os homens diferenciam-se em função do gênero (homem vs. mulher), das várias fases da vida (direitos da infância e da juventude, direitos do idoso) e dos vários estados excepcionais (deficientes físicos e mentais ― ou portadores de necessidades especiais, na expressão mais atual), entre outros[18]. No âmbito internacional, vão às centenas os textos jurídicos tributários da perspectiva do homem “ut singulus”, como a Declaração dos Direitos da Criança (1959) e a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (1971). No âmbito interno, são célebres exemplos o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), o recente Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003) e, “de jure constituendo”, o Código de Defesa do Contribuinte (PLC n. 646/99, em tramitação no Senado Federal[19]). Refiram-se ainda, como direitos de terceira geração, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, caput, da CRFB) e os chamados direitos de paz (em geral).
4. Os direitos humanos de quarta geração resultariam da globalização da Economia e dos direitos fundamentais, bem como da universalização desses últimos no plano institucional, com vistas à (re)fundação do Estado Social e à composição de uma trincheira de direitos antagônicos à globalização neoliberal[20]. Essa classe inclui, p. ex., o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Há, ainda, quem vislumbre aqui os novos direitos de biogenética (e.g., o direito à não-intervenção genética “in vivo” e a proibição da clonagem reprodutiva) e outros direitos cogitados no final do século XX, rebentos da era tecnológica.
Para nós, há uma nova geração de direitos humanos fundamentais que se prenuncia com as novas titularidades que se já se esboçam a jusante da própria pessoa, especialmente em matéria de “direitos intergeracionais” (= direitos das futuras gerações). Poderiam ser esses os direitos de quarta geração (como, e.g., o direito das futuras gerações à preservação do genoma humano fundamental). Ou, a se preservar a ótica de BONAVIDES (quarta geração de direitos ligada à idéia de resistência contra a globalização neoliberal), conviria admitir o evolver de uma quinta geração (dimensão) de direitos fundamentais. Como observa BOBBIO,
“Olhando para o futuro, já podemos entrever a extensão da esfera do direito à vida das gerações futuras, cuja sobrevivência é ameaçada pelo crescimento desmesurado de armas cada vez mais destrutivas, assim como a novos sujeitos, como os animais, que a moralidade comum sempre considerou apenas como objetos, ou, no máximo, como sujeitos passivos, sem direitos. Decerto, todas essas novas perspectivas fazem parte do que eu chamei, inicialmente, de história profética da humanidade, que a história dos historiadores […] não aceita tomar em consideração”[21].
Adiante:
“[…] Nos movimentos ecológicos, está emergindo quase que um direito da natureza a ser respeitada ou não explorada, onde as palavras “respeito” e “exploração” são exatamente as mesmas usadas tradicionalmente na definição e justificação dos direitos do homem”[22].
É como se esquadrinham, portanto, os direitos humanos fundamentais atualmente reconhecidos. Essa taxonomia aproveitará, adiante, à análise dos direitos fundamentais em contextos de trabalho subordinado.
Finalmente, é interessante atinar para as características dos direitos humanos considerados “a se” (que são, diríamos, suas características propriamente jurídicas). Seguindo MORAES[23], reconhecem-se as seguintes:
(i) imprescritibilidade ― os direitos humanos fundamentais não se perdem pelo decurso de prazo (ao que se associa a tese, paralela, de que os crimes contra a humanidade são igualmente imprescritíveis[24]);
(ii) inalienabilidade ― os direitos humanos fundamentais não podem ser transferidos ou cedidos, a título oneroso ou gratuito, a quaisquer terceiros;
(iii) irrenunciabilidade ― os direitos humanos fundamentais não podem ser objeto de renúncia (o que justifica, em larga medida, a relativa irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas em geral[25]);
(iv) inviolabilidade ― os direitos humanos fundamentais não podem ser desrespeitados por comandos normativos infraconstitucionais ou por atos administrativos de autoridades públicas;
(v) universalidade ― os direitos humanos fundamentais alcançam e favorecem todos os indivíduos, independentemente de nacionalidade, credo, sexo, raça, convicção político-filosófica, etc.;
(vi) efetividade ― os direitos humanos fundamentais devem ser garantidos pelo Poder Público, não bastando a sua proclamação ou previsão “in abstracto”;
(vii) complementaridade ― os direitos humanos fundamentais não devem ser interpretados isoladamente, mas sim de modo conjunto e sistemático, para que se complementem em função do projeto teleológico da Constituição;
(viii) interdependência ― os direitos humanos fundamentais possuem interconexões e intersecções entre si, de modo que o malferimento de um deles normalmente afeta o exercício dos demais. Essa talvez seja a mais relevante entre todas as características “jurídicas” dos direitos fundamentais. Pode-se facilmente ilustrá-la: a violação do direito à vida compromete, necessária e obviamente, todos os demais direitos humanos; da mesma forma, negar ao indivíduo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é comprometer-lhe o próprio direito à vida, assim como o direito à saúde, à integridade física, à propriedade, etc. Essa mesma interconectividade se manifesta em todos os outros supostos de violação de direitos e garantias fundamentais.
À vista de tudo quanto se expôs, passemos a examinar os direitos humanos fundamentais no bojo das relações de trabalho subordinado.
III. DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
No imo das relações de trabalho subordinado, não é difícil identificar manifestações de cada uma daquelas gerações de direitos humanos fundamentais. A diferença é que, às mais das vezes, o sujeito opressor não é o Estado, mas o empregador ou o tomador de serviços (sejam pessoas privadas, sejam pessoas jurídicas de direito público ou estatais). O que em nada interfere no “status” desses mesmos direitos: continuam sendo direitos humanos fundamentais, com positividade constitucional. Afinal, também nós entendemos, com CANARIS, que
“em contraposição às leis do direito privado, bem como à sua aplicação e desenvolvimento pela jurisprudência, os sujeitos de direito privado e o seu comportamento não estão, em princípio, sujeitos à vinculação imediata aos direitos fundamentais. Estes desenvolvem, porém, os seus efeitos nesta direcção, por intermédio da sua função como imperativos de tutela. […] Por conseguinte, objecto do controlo segundo os direitos fundamentais são apenas, em princípio, regimes e formas de conduta estatais, e não já de sujeitos de direito privado, isto é, negócios jurídicos, actos ilícitos, etc. […] A circunstância de, não obstante, os direitos fundamentais exercerem efeitos sobre esses últimos explica-se a partir da sua função como imperativos de tutela. Pois o dever do Estado de proteger um cidadão perante o outro cidadão, contra uma lesão de seus bens, garantidos por direitos fundamentais, deve ser satisfeita também ― e justamente ― ao nível do direito privado. Esta concepção tem a vantagem de, por um lado, não abdicar da posição de que, em princípio, apenas o Estado, e não o cidadão, é o destinatário dos direitos fundamentais, mas, por outro lado, oferecer, igualmente, uma explicação dogmática para a questão de saber se, e porquê, o comportamento de sujeitos de direito privado está submetido à influência dos direitos fundamentais […]. É de considerar como falhada a tentativa de, recorrendo à “teoria da convergência estatista”, imputar todos os comportamentos de sujeito de direito privado ao Estado, e de, em conformidade, os abranger pela função dos direitos fundamentais de proibição de intervenção, de tal forma que não existisse nem espaço, nem necessidade, de invocar a função de imperativos de tutela […]. A função de imperativo de tutela, e a proibição de insuficiência a seu flanco, têm uma eficácia mais fraca que a função de proibição de intervenção e a proibição do excesso”[26].
Conseqüentemente, a função de imperativo de tutela[27] dos direitos humanos fundamentais tem desdobramentos concretos no plexo de direitos e deveres que acedem aos contratos de trabalho, sobretudo em razão dos graus de pessoalidade e subordinação que informam o vínculo. Isso porque, na dicção de CANARIS,
“A função dos direitos fundamentais de imperativo de tutela também se aplica, em princípio, em relação à auto-vinculação por contrato. Ela tem aqui relevância especial, por um lado, se, pelo seu carácter pessoalíssimo, o bem protegido por direitos fundamentais, cujo exercício é contratualmente limitado, não estiver de todo à disposição do seu titular, ou se, pelo seu conteúdo fortemente pessoal, for especialmente sensível em relação a uma vinculação jurídica, e, por outro lado, se as possibilidades fácticas de livre decisão de uma das partes contraentes estiverem significativamente afectadas […]. O facto de problemas deste tipo serem, em regra, resolvidos de modo puramente privatístico não impede a sua dimensão jurídico-constitucional, em caso de descida abaixo do mínimo de protecção imposto pelos direitos fundamentais, não devendo excluir-se, à partida, a possibilidade de uma queixa constitucional”[28].
Convém, portanto, dedicar algum esforço a esse exercício de identificação e classificação dos direitos humanos na órbita juslaboral, como preparação para os desenlaces teóricos posteriores. Vejamos, classe a classe.
1. Direitos de primeira geração (nas relações de trabalho). São todos os direitos civis e políticos da pessoa humana sujeitos à afetação no ambiente de trabalho ou em função dele. Quando se cogita da indenização por danos morais e estéticos causados ao empregado, cuida-se, respectivamente, dos direitos à honra e à imagem, que são direitos humanos de primeira geração. Da mesma forma, quando o artigo 7º, XXII, da CRFB assegura o direito à “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”, está blindando os direitos à integridade psicossomática e à própria vida do trabalhador (direitos de primeira geração), à mercê das especificidades de sua condição “ut singulus” (i.e., os riscos laborais inerentes[29]).
2. Direitos de segunda geração (nas relações de trabalho). São basicamente todos os direitos sociais “stricto sensu”, largamente estudados no âmbito do Direito do Trabalho e do Direito de Seguridade Social. O elenco é vasto: direito à previdência social (prestações e serviços), irredutibilidade salarial e direito ao salário mínimo, direito ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, direito às horas extras e à jornada regular de trabalho, direito às férias e ao décimo terceiro salário, direito às verbas resilitórias/rescisórias, direito à participação nos lucros e resultados da empresa, etc. Cite-se, ainda, o direito à não-discriminação no trabalho (vide, e.g., a Lei 9.029/95), que deita raízes no próprio direito à igualdade civil, tal como consagrado no artigo 5o, I, da CRFB. Todos esses direitos convergem para um objetivo constitucional tácito, a saber, o de reequilibrar a disparidade socioeconômica entre os proprietários dos meios de produção (empregadores) e os detentores da força de trabalho (empregados). Daí sustentarmos, noutro trabalho, que o princípio da proteção (ou, na moderna terminologia de PALMA RAMALHO, o “princípio da compensação da posição debitória complexa das partes no contrato de trabalho” [30]) é, na verdade, um princípio constitucional implícito[31].
3. Direitos de terceira geração (nas relações de trabalho). Dessa classe é, por excelência, o direito ao meio ambiente do trabalho são e equilibrado (artigo 225, caput, c.c. artigo 200, VIII, da CRFB). Outros exemplos seriam os direitos e garantias específicas de idosos, das crianças e dos adolescentes no trabalho (cfr. os artigos 26 a 28 do Estatuto do Idoso, os artigos 402 a 441 da CLT e os artigos 60 a 69 do ECA), que concernem a interesses difusos e desafiam a legitimidade processual do Ministério Público.
4. Direitos de quarta geração (nas relações de trabalho). São provavelmente os de mais penosa identificação. Dessa ordem seria, e.g., o direito das atuais e futuras gerações a que os quadros públicos (cargos, empregos e funções) componham-se mediante concursos públicos de provas ou de provas e títulos, de modo isento e plural, preservando a moralidade e a imparcialidade administrativas. Perfilhando-se a concepção de BONAVIDES (supra), podem-se ainda identificar os direitos relacionados à democracia e ao pluralismo no âmbito empresarial e sindical (e.g., o direito às comissões e/ou representações de fábrica, ut artigo 11 da CRFB) e também o direito à informação laboral mínima.
Quanto a esse derradeiro aspecto ― o direito à informação laboral mínima ― tivemos ocasião de julgar ação movida pelo Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Destilação e Refinação de Petróleo de São José dos Campos em face da Refinaria joseense da Petrobrás (REVAP), na qual se pedia a exibição de laudos e das medições das concentrações de benzeno dos últimos cinco anos nas diversas áreas do parque industrial. Ao contestar, a Petrobrás recusou-se a exibi-los, alegando tratar-se de levantamentos custeados pela REVAP sem a participação do sindicato, que não teria legitimidade para devassar a documentação alheia, acessando informações estratégicas que interessariam apenas à gestão da empresa; qualquer coerção nesse sentido configuraria violação ao princípio da legalidade. Aos empregados, bastaria saber o resultado final das avaliações ambientais, tal como divulgado em exposições periódicas, a critério do empregador.
Em medida liminar de antecipação dos efeitos da tutela de mérito (18.09.2000), depois confirmada em sentença definitiva, determinamos à REVAP a colação dos laudos e medições nos autos do processo, em documentos originais ou autenticados, restringindo o acesso das informações às partes, advogados e Ministério Público. Na ocasião, evocamos o princípio bioético da autonomia para assegurar aos trabalhadores o direito à informação laboral mínima, ponderando que
“sem o pleno conhecimento das medições e dos demais dados coletados e avaliados, a classe profissional não se faz governar com plena autonomia, atendo-se às conclusões de terceiro interessado […] em inaceitável restrição à autonomia coletiva e malferimento do mais elementar senso bioético, cuja substância define-se pela trindade beneficência (qualidade ambiental e qualidade de vida), autonomia (autogoverno) e justiça (defesa da vida física, comprometimento com o bem-estar do semelhante); daí porque informar plenamente os trabalhadores é inarredável dever, primeiramente bioético e depois jurídico, de que se tem esquivado a reclamada”[32].
Registrávamos ainda, pouco antes, que
“as provas orais coligidas na audiência de fls.79-81 ― que passa a funcionar como audiência de justificação para os fins do art. 12, caput, da Lei 7.347/85 ― são suficientemente robustas para evidenciar o «periculum in mora», ante a natureza cancerígena do benzeno e a ocultação de dados pela reclamada. Insta observar que a própria reclamada reconhece os riscos do benzeno, a eles se referindo “en passent” no documento de fl.58; da mesma forma, os Anexos 13 e 13-A da N.R. 15 (Portaria 3.214 do MTb) elecam-no entre as substâncias cancerígenas, donde qualquer possibilidade de exposição a benzeno configurar, por razões óbvias, hipótese de «periculum in mora». […] Já o «fumus boni iuris» deflui do próprio Acordo Coletivo de Trabalho encartado à fl.12 […]. O direito à informação, em tema de segurança e medicina no trabalho, há de ser pleno, sendo ilícita e ilegítima a sua limitação às informações que a PETROBRÁS quiser ou puder divulgar, sob pena de convolar-se a garantia da cláusula 78, §2º, em mera formalidade sem desdobramentos práticos”[33].
Releva notar que a demanda foi ajuizada pelo sindicato como “ação de cumprimento”, em vista do teor da cláusula 78, §2º, do acordo coletivo de trabalho então vigente. Mas era, a rigor, uma ação civil pública destinada ao acautelamento de um interesse coletivo da categoria, nos termos do artigo 1º, IV, da Lei 7.347/85. Já por isso, recebemo-la como tal e, em decisão interlocutória mista, determinamos a remessa dos autos à Procuradoria Regional do Trabalho da Décima Quinta Região, facultando ao Ministério Público a integração à lide como litisconsorte ativo ou a intervenção como “custos legis” (artigo 5º, §§ 1º e 2º, c.c. artigo 7º da Lei 7.347/85). O episódio serve para demonstrar como ainda caminha a passos claudicantes a tutela judicial de direitos fundamentais de quarta geração em seara trabalhista (inclusive no que concerne à escolha do remédio judicial adequado).
Alfim, desbastadas as mais candentes manifestações dos direitos humanos fundamentais no mundo do trabalho, importa saber se esses direitos vêm sendo geralmente respeitados por empregadores como por tomadores de serviços. E o que terminamos por descobrir não chega a ser alvissareiro. A leitura diária dos jornais e a assistência aos noticiários televisivos revelam diuturnas violações dos direitos humanos da pessoa trabalhadora (que, não raro, sequer logra reconhecê-los). Por isso, assinalava em outro trabalho:
“[…] a subordinação jurídica do trabalhador torna-se instrumento de opressão e tirania no âmbito das unidades produtivas, conquanto sem a visibilidade de outrora. Na sociedade pós-moderna, a reificação do homem trabalhador dá-se à margem da grande empresa ¾ mas para o seu proveito ¾ nas complexas estratégias de reengenharia, empowerment e terceirização. A discriminação do trabalhador negro ganha foros de normalidade, desvelando-se nos anúncios de emprego que exigem “boa aparência”. Não vai atrás a discriminação da mulher e do portador de deficiência no mercado de trabalho. O trabalho escravo é redescoberto no meio rural, ao lado do trabalho infanto-juvenil, sob a batuta de “gatos”, aliciadores ou cooperativas de mão-de-obra. Revela-se ainda nas relações domésticas, onde a miséria e a paradoxal solidão do mundo globalizado convergem para a proliferação das “filhas de ocasião”, que se sujeitam à servidão humana por anos a fio em troca de alimento e moradia. Nas unidades fabris ¾ inclusas as da grande empresa ¾ os números oficiais de acidentes de trabalho continuam despontando entre os maiores do planeta, anunciando a privação de tudo quanto constitui a própria humanidade do trabalhador: a sua compleição somática (nas mutilações), a sua saúde (nas moléstias), a sua tranqüilidade (nos transtornos psíquicos); por vezes, a sua existência (nos eventos fatais)”[34].
À mercê de quadros tão nefastos, a Organização Internacional do Trabalho, fundada em 1919, entendeu por bem reforçar publicamente os seus compromissos históricos há menos de dez anos. Em 18.05.1998, foi aprovada a Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho (Genebra), que veio conferir maior positividade aos chamados direitos fundamentais da pessoa trabalhadora no âmbito do Direito Internacional Público, derivando-os de princípios que já se continham germinalmente na própria Constituição da OIT (1919) e na Declaração relativa aos fins e objetivos da Organização Internacional do Trabalho (Declaração de Filadélfia, de 1944). São eles (artigo 2º):
(a) o princípio da liberdade sindical e o direito efetivo de negociação coletiva;
(b) o princípio da eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório;
(c) o princípio da abolição radical do trabalho infantil;
(d) o princípio da eliminação das discriminações em matéria de emprego e ocupação.
Como se vê, alguns soam mais como metas de políticas públicas do que como princípios jurídicos propriamente ditos. Mas, nada obstante, ganharam em positividade e eficácia simbólica com a proclamação de 1998.
O primeiro princípio/direito (liberdade sindical e negociação coletiva), assim como o último (não-discriminação), estão atrelados aos direitos de segunda geração e aos interesses coletivos “stricto sensu”. Os outros dois estão ligados aos direitos de terceira geração e aos interesses difusos. Os três últimos têm reflexos evidentes nos direitos de primeira geração da classe trabalhadora (vida, integridade física e psíquica, honra, etc.), o que corrobora uma assertiva anterior: a interdependência é uma das características mais eloqüentes dos direitos fundamentais. A Declaração avançou pouco em relação aos direitos trabalhistas de quarta (e quinta) geração, quando poderia tê-los proclamado enfaticamente. Mas o rol em testilha evidentemente não é taxativo, nem tampouco exauriente. E os padrões deontológicos que a Declaração subministra já permitem entrever em variegadas hipóteses, com grande clarividência, quando se está diante de uma violação aos direitos fundamentais da pessoa trabalhadora. Detectada a lesão ou ameaça, a consciência da opressão tende a precipitar, por si só, o emprego dos meios processuais adequados para a repressão, correção ou prevenção.
A Justiça do Trabalho obviamente tem um papel fundamental a desempenhar na reversão daquele lastimoso estado de coisas. Isso explica, aliás, porque o tema do XII CONAMAT (Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), que se realizou em maio de 2004 (Campos de Jordão), foi a “Afirmação e resistência: o trabalho na perspectiva dos Direitos Humanos”. É notória a preocupação da magistratura trabalhista e das suas associações de classe com a “vexata quaestio” da secundarização da tutela dos direitos fundamentais nos dissídios individuais e coletivos (menos por razões dogmáticas do que pela cultura da monetização das lesões).
Mas, afinal, quais são os meios processuais adequados para a tutela desses direitos fundamentais?
O engenho do jurista e, mais raramente, a própria legislação têm oferecido instrumentos mais ou menos adequados para esse gênero de salvaguardas. Vejamos.
IV. TUTELA PROCESSUAL DOS DIREITOS HUMANOS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
4.1. AÇÕES CIVIS PÚBLICAS E COLETIVAS. DANO MORAL COLETIVO
No limiar do século XXI, o Direito universal ressentiu-se da necessidade de instrumentos processuais que favorecessem tutelas coletivas, paralelamente aos instrumentos históricos de tutela processual dos direitos individuais (que estão radicados nas concepções individualistas do liberalismo do século XVIII). Nesse encalço, também a legislação brasileira se modernizou.
No Brasil, os mais formidáveis instrumentos para a tutela coletiva dos direitos fundamentais da pessoa humana trabalhadora ― tanto no que concerne aos direitos de primeira geração (notadamente se enfeixados ― interesses individuais homogêneos), quanto no que atine aos direitos de segunda geração (que, enfeixados, configuram interesses coletivos “stricto sensu”) e aos de terceira geração (interesses difusos), são as ações civis públicas e coletivas. Esses institutos inspiraram-se nas “public interest actions” e nas “class actions” norte-americanas ― essas últimas espelham-se melhor nas ações civis coletivas ― e foram introduzidos no Brasil pela Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347, de 24.07.1985) e pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11.09.1990), respectivamente.
A esse respeito, interessa desde logo distinguir e definir, com base no direito positivo vigente, as três classes de interesses coletivos “lato sensu” (artigo 81 do CDC). Empregamos tal expressão para designar o gênero dos interesses perseguidos em ações coletivas, já que a tendência atual da doutrina é a de empregar a expressão “transindividual” apenas para os interesses difusos e coletivos “stricto sensu” (sem incluir, portanto, os interesses individuais homogêneos).
Nos termos do artigo 81 do CDC, os interesses coletivos “lato sensu” podem ser:
“I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato [titulares indeterminados e indetermináveis; e.g., direito da Humanidade ao meio ambiente ecologicamente equilibrado];
II – interesses ou direitos coletivos [“stricto sensu”], assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base [titulares em geral indeterminados, porém determináveis; e.g., direito dos metalúrgicos a um reajuste salarial];
III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum [titulares em geral determinados de plano, ou ao menos determináveis].”
Diz-se haver ação civil pública quando o interesse sob tutela processual é um interesse coletivo “stricto sensu” ou um interesse difuso. De outra parte, fala-se em ação civil coletiva (artigo 91 do CDC) quando a tutela processual favorece interesses individuais homogêneos[35].
Na verdade, as ações que perseguem individuais homogêneos postos no processo do trabalho são as tradicionais reclamações plúrimas (com a diferença de que, a partir de 1990, podem agir pelos trabalhadores todos os entes legitimados no artigo 82, I a IV, do CDC, e 5o da LACP ― inclusive sindicatos, nos limites do artigo 5o, I e II, da LACP). Logo, o Ministério Público do Trabalho está legitimado a demandar judicialmente em favor de interesses individuais homogêneos, notadamente se indisponíveis (como será o caso, sempre que o objeto da tutela forem direitos humanos fundamentais do trabalhador, em vista da própria irrenunciabilidade desses direitos), ou ainda quando “estes últimos, a despeito de serem individuais, assumirem, no seu conjunto, feição coletiva, cuja violação poderá acarretar grave perturbação à ordem jurídica estabelecida (Constituição Federal, art. 127)” [36].
Embora constantes de um diploma específico (CDC), os critérios de classificação dos interesses juridicamente relevantes são aplicáveis a quaisquer outros ramos do Direito (como, e.g., no Direito e no Processo do Trabalho). Note-se que a classificação dos direitos e interesses[37] normalmente não se faz ontologicamente (= pela essência primeira), mas instrumentalmente, i.e., conforme o tipo de tutela jurisdicional que se pede. Exemplo eloqüente disso nos é dado por NELSON NERY JR., que hipoteticamente identificou quatro possibilidades distintas de ações e interesses no caso Bateau Mouche IV, a saber,
“interesse individual (pretensão de indenização de uma das vítimas, em ação ordinária de perdas e danos), individual homogêneo (pretensão de indenização a favor de todas as vítimas, em ação ajuizada por entidade associativa), coletivo (pretensão de obrigação de fazer, em ação coletiva movida por associação das empresas de turismo, com vistas à manutenção da boa imagem do segmento econômico local) ou difuso (tutela da vida e da segurança das pessoas em geral, mediante ação coletiva ajuizada pelo Ministério Público para interditar a embarcação e evitar novos acidentes)”[38].
Acresça-se, quanto à utilidade das ações civis públicas e coletivas na Justiça do Trabalho, que o grau de efetividade e de plasticidade emprestado por essas ações à tutela jurídico-processual dos direitos fundamentais da pessoa humana trabalhadora não tem precedentes ou equivalentes no caso brasileiro. Isso porque:
(a) diante da redação aberta do artigo 3o da LACP e da referência à ação civil pública cautelar no artigo 4o do mesmo diploma, é cediço que as ações civis públicas e coletivas são idôneas à provocação de quaisquer espécies de provimentos jurisdicionais: declaratórios, constitutivos, condenatórios à obrigação de pagar (artigo 3o, 1a parte) ou de fazer (artigo 3o, in fine, e artigo 11), mandamentais ou ainda cautelares (artigo 4o);
(b) em função dessa versatilidade, as ações civis públicas e coletivas prestam-se ainda à obtenção judicial de declarações de nulidade (efeito declaratório) e de anulações (efeito desconstitutivo) de cláusulas de acordos coletivos ou convenções coletivas de trabalho, sempre que tais cláusulas contravierem normas de interesse público ou prejudicarem direitos humanos fundamentais dos trabalhadores[39];
(c) os sindicatos estão legitimados à propositura de ações civis públicas e coletivas (desde que, no caso das primeiras, estejam regularmente constituídos há pelo menos um ano, nos termos da lei civil ― artigo 5º, I, da LACP[40]), tratando-se de legitimidade concorrente (logo, não excludente) que está acometida também ao Ministério Público do Trabalho[41] e aos entes da Administração (União, Estados, Municípios, Distrito Federal, autarquias, estatais e fundações públicas[42]);
(d) antes mesmo da Lei 8.952/94 (que introduziu, no artigo 273 do CPC, um modelo geral de antecipação dos efeitos da tutela de mérito), a LACP já ensejava a concessão liminar de decisões antecipatórias dos efeitos da sentença de mérito, com ou sem justificação prévia, a exemplo do próprio mandado de segurança (cfr. artigos 12 da LACP e 7o, II, da Lei 1.533/51);
(e) as ações civis públicas e coletivas também admitem, em tese, controle difuso de constitucionalidade na base de dispositivos com efeitos “erga omnes” (artigo 16 da Lei 7.347/85) ou “ultra partes” (artigo 91 do CDC c.c. artigo 21 da Lei 7.347/85), a depender do interesse tutelado (o que os aproxima, em alguma medida, dos efeitos dimanados em sede de controle concentrado de constitucionalidade, que é privativo do Supremo Tribunal Federal)[43];
(f) as ações civis públicas e coletivas são particularmente idôneas à demanda de indenização pelos chamados danos morais coletivos, que amiúde se verificam nos supostos de violação multitudinária de direitos fundamentais da pessoa trabalhadora (terceirizações e quarteirizações fraudulentas, “coopergatos”, agronegócios baseados em trabalho escravo contemporâneo, etc.).
Esse derradeiro item merece algum estudo adicional.
Em se tratando de ações civis públicas, tem-se entendido que as indenizações correspondentes devem reverter para o F.A.T. (Fundo de Amparo ao Trabalhador). A prevalecer essa tese, convirá projetar e ultimar, no plano legislativo, uma gestão regionalizada do F.A.T., visando a que as compensações financeiras dos danos morais coletivos favoreçam precisamente a comunidade atingida; ou, alternativamente, valeria engendrar fundos específicos de âmbito local, diversos do F.A.T., destinados à gestão e à aplicação dos recursos arrecadados com as indenizações para o incremento socioeconômico direto das populações vitimadas. Observe-se que já existe um mecanismo semelhante no cenário legislativo nacional: em se tratando de violação aos direitos e interesses da infância e da juventude, os valores das multas (e, com mesma razão, os das indenizações por danos morais coletivos) devem reverter ao fundo gerido pelo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente do respectivo município (artigo 214, caput, do ECA), que os aplicará em benefício da comunidade afetada.
A reversão aos fundos é o único equacionamento possível quando se trata de salvaguardar interesses difusos ou coletivos “stricto sensu”, nos quais a titularidade é sempre indeterminada. Já no caso das ações civis coletivas em matéria trabalhista (= interesses individuais homogêneos), parece-nos mais apropriado que as indenizações pelos danos morais coletivos revertam em favor das pessoas prejudicadas (os trabalhadores), mediante distribuição proporcional que observe, em sede de liquidação, as necessidades e/ou os danos sofridos por cada titular determinado. Não tem sido esse, porém, o entendimento dominante.
Aduza-se que a tese dos danos morais coletivos e da sua monetização têm merecido ampla aceitação na jurisprudência pátria, mormente nos casos de trabalho escravo contemporâneo e de trabalho infanto-juvenil proibido. Veja-se, por todos:
“TRABALHO EM CONDIÇÕES SUBUMANAS. DANO MORAL COLETIVO PROVADO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. Uma vez provadas as irregularidades constatadas pela Delegacia Regional do Trabalho e consubstanciadas em Autos de Infração aos quais é atribuída fé pública (artigo 364 do CPC), como também pelo próprio depoimento da testemunha da recorrente, é devida a indenização por dano moral coletivo, vez que a só notícia da existência de trabalho escravo ou em condições subumanas no Estado do Pará e no Brasil faz com que todos os cidadãos se envergonhem o sofram abalo moral, que deve ser reparado, com o principal objetivo de inibir condutas semelhantes. Recurso improvido”[44].
É, de fato, como pensamos. Fracassada a prevenção (prioritária em todo caso), é melhor que a repressão judicial tenha efeitos consistentemente pedagógicos.
4.2. O «HABEAS DATA» E AS AÇÕES DE RECONHECIMENTO DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO
Com o advento da Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, passou a ser da competência da Justiça do Trabalho o processo e julgamento de
“mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição” (artigo 114, IV, da CRFB ― g.n.).
Os mandados de segurança há muito já eram impetrados no âmbito da Justiça do Trabalho, às raias da habitualidade (conquanto raramente em primeira instância[45]). O “habeas corpus”, por sua vez, tinha previsão em diversos regimentos internos de tribunais do trabalho[46], a despeito das variegadas objeções de inconstitucionalidade[47]. Diante disso, a competência para processar e julgar “habeas data” foi, dentre todas, a mais inusitada[48]. Em que hipóteses o cidadão haveria de impetrar “habeas data” para questionar atos relativos à matéria trabalhista?
A função constitucional do “habeas data” é proteger a esfera privada dos indivíduos contra os usos abusivos de registros de dados pessoais coletados por meios fraudulentos, desleais ou ilícitos, contra a introdução de dados sensíveis nesses registros (como os de cunho racial, opinião política ou filosófica, orientação sexual, fé religiosa, filiação partidária e sindical, etc.) e, ainda, contra a conservação de dados errados ou com fins diversos dos autorizados em lei[49] (o que tem especial relevo para o exercício útil da jurisdição laboral, como se dirá). Na origem do “habeas data” está, portanto, o direito de conhecer e de retificar os dados pessoais constantes de registros e bancos de dados de entidades governamentais (i.e., órgãos da administração direta e indireta) e de outras entidades de caráter público (instituições, entidades e pessoas jurídicas privadas que prestam serviços de interesse público ou o fazem para o público: concessionárias, permissionárias, serviços de proteção ao crédito, firmas de assessoria e fornecimento de malas diretas, etc.[50]).
Mas esse direito não está adstrito à questão da privacidade/intimidade da pessoa humana (direitos de primeira geração), como sustentavam os primeiros autores. Vai mais além da esfera privada individual, concorrendo para a consolidação dos regimes políticos democráticos. Está em causa, por conseguinte, o próprio direito de informação “a se” ― direito que, imantado pelos desdobramentos da globalização econômica e da preeminência dos meios de comunicação, já é alçado à categoria de direito fundamental de quarta geração (supra). Sonegado, pode ser satisfeito com a impetração, pelos interessados, do remédio do “habeas data” (artigo 5º, LXXII), que está entre as garantias individuais da Constituição da República de 1988 (ao lado do “habeas corpus”, do direito de petição, do mandado de segurança individual e coletivo, do mandado de injunção e da ação popular[51]).
E há mais. Amiúde, não se trata somente do direito de informação. A seu reboque vêm outros direitos, de primeira, segunda ou terceira geração, cuja preservação supõe e reclama o conhecimento das informações ou a retificação dos dados pessoais. No caso da ação civil pública movida pelo sindicato contra a refinaria (supra), o direito à informação era instrumental em relação ao direito ao meio ambiente equilibrado e à sadia qualidade de vida dos trabalhadores (artigo 225, caput, da CRFB) ― direito de terceira geração, quando se manifesta como interesse difuso.
Dir-se-á, porém, que casos como aquele são pouco freqüentes, o que torna marginal a função do “habeas data” na Justiça do Trabalho. A premissa é verdadeira; a conclusão, porém, é falsa. Há uma outra casuística, das mais encontradiças nas Varas e Tribunais do Trabalho, que envolve a retificação de dados pessoais perante entidade governamental ― o Instituto Nacional do Seguro Social (autarquia federal) ― a bem de um direito fundamental de segunda geração, a saber, o direito à previdência social e seus consectários (artigos 6º, 7º, XXIV, e 201, todos da CRFB). E esse direito de retificar, inerente a toda pessoa que se vê diante da conservação ou circulação de informações pessoais falsas (= direito à verdade sobre si próprio), exsurge agora especialmente menoscabado, no que diz com o trabalhador, à mercê da nova redação da Súmula n. 368 do C.TST. Vejamo-la:
“DESCONTOS PREVIDENCIÁRIOS E FISCAIS. COMPETÊNCIA. RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO. FORMA DE CÁLCULO. I. A Justiça do Trabalho é competente para determinar o recolhimento das contribuições fiscais. A competência da Justiça do Trabalho, quanto à execução das contribuições previdenciárias, limita-se às sentenças condenatórias em pecúnia que proferir e aos valores, objeto de acordo homologado, que integrem o salário-de-contribuição. II. É do empregador a responsabilidade pelo recolhimento das contribuições previdenciárias e fiscais, resultante de crédito do empregado oriundo de condenação judicial, devendo incidir, em relação aos descontos fiscais, sobre o valor total da condenação, referente às parcelas tributáveis, calculado ao final, nos termos da Lei nº 8.541/1992, art. 46, e Provimento da CGJT nº 03/2005.III. Em se tratando de descontos previdenciários, o critério de apuração encontra-se disciplinado no art. 276, § 4º, do Decreto nº 3.048/99, que regulamenta a Lei nº 8.212/91 e determina que a contribuição do empregado, no caso de ações trabalhistas, seja calculada mês a mês, aplicando-se as alíquotas previstas no art. 198, observado o limite máximo do salário de contribuição”[52].
E, agora, expliquemo-nos.
Em face do que dispõe o artigo 55, §3º, da Lei 8.213/91[53], os efeitos previdenciários das sentenças trabalhistas que reconheciam vínculo empregatício sempre foram pífios, senão frustrantes. Sob a égide da EC n. 20/98, exauriam-se no aspecto do custeio: o empregador estava obrigado a recolher as contribuições sociais incidentes sobre os créditos trabalhistas a que fora condenado (desde que constituíssem salário-de-contribuição) e, para mais, deveria ainda recolher as contribuições sociais incidentes sobre os salários e títulos salariais já pagos ao tempo da demanda (assim, e.g., as contribuições incidentes sobre cada um dos salários pagos, observados os prazos dos artigos 45 e 46 da Lei 8.212/91). Quanto a esse último recolhimento, deflagrou-se acesa polêmica entre juristas, advogados e julgadores: estaria cometido a qual juízo?
De nossa parte, sempre sustentamos que as contribuições sociais incidentes sobre os salários-de-contribuição quitados extrajudicialmente, mas como tal reconhecidos em provimento judicial declaratório de juiz trabalhista, seriam igualmente exeqüíveis na Justiça do Trabalho, ut artigo 114, §3º, da CRFB (antes da EC n. 45/2004)[54]. Como era de se esperar, o Governo Federal acabou por sufragar essa interpretação (artigo 276, §7º, do Decreto n. 3.048/99, na redação do Decreto n. 4.032/2001[55]).
Ocorre que, à vista do precitado artigo 55, §3º, da Lei 8.213/91, o tempo de serviço (= tempo de emprego) reconhecido pela autoridade competente (i.e., o juiz do Trabalho), se baseado em provas exclusivamente testemunhais, não era reconhecido pelo INSS para efeitos de aposentadoria ou de quaisquer outros benefícios da previdência social. Afinal, faltava o “início de prova material” exigido nas justificações judiciais e administrativas. Noutras palavras, o Poder Judiciário reconhecia o tempo de serviço, oportunamente declarado por quem de direito, e providenciava o tempo de contribuição, na proporção correspondente (em face das execuções previdenciárias levadas a bom termo pelos juízes trabalhistas, com recolhimentos em favor dos cofres do INSS). Nada obstante, eram baldadas as legítimas expectativas sociais que assim se criavam: apesar do tempo reconhecido e dos esforços de custeio, os órgãos da administração autárquica negavam ― como ainda negam ―as prestações e os serviços de previdência social ao trabalhador, em reverência à letra fria da Lei de Benefícios. Nada poderia ser mais antitético e desolador.
Diante desse quadro, o Tribunal Superior do Trabalho optou pelo caminho mais fácil: render-se à obstinada resistência dos burocratas. Modificou a Súmula n. 368 para consignar a tese oposta: não caberia executar, na Justiça do Trabalho, as contribuições sociais incidentes sobre as verbas pagas no período de vínculo empregatício declarado em juízo[56]. O DD. Presidente do TST, Min. VANTUIL ABDALA, chegou a justificar publicamente a alteração (baseada em estudo do Min. SIMPLICIANO FERNANDES), ponderando que “trata-se de uma injustiça com o trabalhador e um despropósito a Justiça do Trabalho garantir a arrecadação do tributo sobre o dinheiro do trabalhador, que não tem a contagem de tempo reconhecida para a aposentadoria e fica sem os próprios valores recolhidos”[57]. Mas a Corte andou mal, “permissa venia”.
A uma, o esforço sumular não tem o condão de espancar a interpretação conforme a Constituição. Embora a Lei 10.035/2000 refira-se apenas à execução dos créditos previdenciários decorrentes de condenação ou homologação de acordo (artigo 876, par. único, da CLT), é certo que a Constituição da República não fez essa distinção, antes (artigo 114, §3º) ou depois (artigo 114, VIII) da EC n. 45/2004. Ao contrário, a “Lex legum” estende a competência da Justiça do Trabalho à execução de todas as contribuições sociais decorrentes das sentenças que proferir, sem discriminar entre os tipos possíveis (e “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”). Conseqüentemente, se quisermos fazer uma interpretação conforme do artigo 876, par. único, da CLT (“verfassungskonforme Auslegung”), haveremos de palmilhar a teoria das cargas das sentenças (PONTES DE MIRANDA) e entender que a referência legal à «condenação» quer significar «sentença com carga condenatória», qualquer que seja ela (porque das sentenças absolutórias jamais dimanam quaisquer deveres tributários) ― inclusive as sentenças meramente declaratórias com condenação em custas[58]. Do contrário, a exegese do preceito conduzi-lo-á à inconstitucionalidade onde limita, “ex propria auctoritate”, uma competência genuinamente constitucional.
A duas, a solução mais justa e técnica é, decerto, a mais vanguardeira: encontrar nas novas competências da Justiça do Trabalho a panacéia para esse dilema. Sem capitular. E é lá, no inciso LXXII, “b”, do artigo 5º da CRFB, que vamos localizá-la. A pretensão em causa é a de retificar dados pessoais que a administração autárquica insiste em conservar defasados, apesar do provimento judicial competente; trata-se, pois, de questionar um ato administrativo “lato sensu” (mais precisamente, uma omissão administrativa) que envolve matéria sujeita à competência da Justiça do Trabalho (a saber, a existência ou não do vínculo empregatício e, conseqüentemente, a condição de segurado obrigatório da previdência social[59], recebedor de salário-de-contribuição[60]). Perante tais pressupostos, o remédio constitucional cabível é “de per se” evidente: deverá o interessado, autor na ação reclamatória trabalhista, impetrar ação de “habeas data”, com espeque nos artigos 5º, LXXII, “b” da CRFB e 7º, II, da Lei 9.507, de 12.11.1997, para fazer corrigir os dados mantidos em erronia e assegurar todos os efeitos previdenciários positivos do provimento declaratório e do conseqüente custeio. Para tanto, bastará fazer a prova de que o INSS recusou-se, em instância administrativa, a averbar a contagem do tempo de serviço declarado em sentença irrecorrível, ou que deixou de fazê-lo no prazo de quinze dias a contar do requerimento (artigo 8º, par. único, II, da Lei n. 9.507/97). Recebido o “habeas data”, seguirá ― com adaptações[61] ― o rito da própria Lei n. 9.507/97 (artigos 8º a 16), que também regula o direito de acesso a informações no Brasil.
Poderia o juiz do Trabalho conceder, de ofício, a ordem de “habeas data”?
Pensamos que não. Em primeiro lugar, não há previsão constitucional ou legal para tanto, ao contrário do que ocorre com o “habeas corpus” (artigo 654, §2º, do CPP); nem tampouco o direito fundamental sob tutela tem a dignidade constitucional da liberdade corporal-espacial (tanto que o artigo 19 da Lei 9.507/97, ao estabelecer a prioridade processual do “habeas data”, ressalva, nessa ordem, as ações de “habeas corpus” e os mandados de segurança). Em segundo lugar, conceder de ofício uma ordem de “habeas data” para constranger o INSS a averbar, nos registros do reclamante, o tempo de serviço reconhecido em sentença é temerário, na medida em que a sentença pode ser anulada ou reformada, se houver recurso da reclamada. Apenas excepcionalmente, havendo risco sério na demora (e.g., invalidez aliada à penúria), o reclamante poderia obter, cautelarmente (artigos 798-799 do CPC), uma averbação de tempo que precedesse o trânsito em julgado da sentença. Em terceiro, não se justifica, à luz do princípio da proporcionalidade, sacrificar o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório (artigo 5º, incisos LV e LVI, da CRFB), que são pilares do Estado Democrático de Direito, para assegurar imediatamente um direito de retificação passível de exercício “a posteriori”, sem maiores prejuízos para quaisquer das partes interessadas. Já o contrário ― autorizar ou determinar a averbação imediata do tempo de serviço/contribuição nos registros do INSS, intimando-o a que simplesmente faça cumprir ― é estender os efeitos do julgado a quem não é parte (violando a norma do artigo 472 do CPC) e empenhar, sem contraditório ou ampla defesa, um patrimônio que, ao cabo e ao fim, não pertence ao INSS (gestor), mas à coletividade: beneficiários, segurados, assistidos, etc[62].
4.3. INVERSÕES DO ÔNUS DA PROVA
Nem todos os expedientes processuais tuitivos dos direitos humanos fundamentais da pessoa trabalhadora têm natureza de ação ou recurso. Há também fenômenos procedimentais que participam do mesmo desiderato. Desses, o mais notório é a inversão motivada do ônus da prova.
A esse respeito, interessa desde logo isolar as quatro classes de ações em que o mecanismo se impõe. São elas:
(a) as ações judiciais que denunciam discriminações (em geral e nas relações de trabalho);
(b) as ações judiciais que denunciam os atentados ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, no âmbito trabalhista, as graves violações aos deveres patronais de manutenção de um meio ambiente laboral hígido, seguro e ergonômico;
(c) as ações judiciais que denunciam atos de violação da privacidade e da intimidade da pessoa humana (em geral e nas relações de trabalho);
(d) as ações judiciais que denunciam assédio sexual e/ou assédio moral (“mobbing”).
O primeiro grupo de ações abrange, como visto, os casos de discriminação no mundo do trabalho. Talvez sejam, mesmo, os mais numerosos. Mas o sistema internacional de direitos humanos profliga toda e qualquer discriminação injustificada[63]. Nos termos do artigo 7o da Declaração Universal dos Direitos do Homem, “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”. Já no imo das relações de trabalho, a Convenção n. 111 da Organização Internacional do Trabalho (Genebra, 1958) dispõe que o termo «discriminação» compreende, naquele contexto, “toda distinção, exclusão ou preferência, com base em raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou de tratamento no emprego ou profissão” (artigo 1º, 1, “a”); ou ainda “qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou tratamento no emprego ou profissão” (artigo 1º, 1, “b”).
Nessa ordem de idéias, com vistas a otimizar os efeitos da tutela processual do direito ao tratamento isonômico, são recorrentes ― pela via legislativa, jurisprudencial ou doutrinária ― as teses de inversão do ônus da prova nos processos que denunciam tratamentos discriminatórios.
No direito positivo comparado, atente-se para o artigo 23º, 3, do Código do Trabalho português (Lei n. 99/2003), que dispõe:
“Cabe a quem alegar a discriminação fundamentá-la, indicando o trabalhador ou trabalhadores em relação aos quais se considera discriminado, incumbindo ao empregador provar que as diferenças de condições de trabalho não assentam em nenhum dos factores indicados no nº 1”[64] (g.n.).
E, na jurisprudência comparada, releva mencionar o paradigmático “case” McDonnell Douglas Corp. v. Green (1973), no qual a Suprema Corte norte-americana decidiu, em caso de discriminação racial, caber ao réu, “prima facie”, a prova da não-discriminação, à vista dos elementos incontroversos predispostos nos autos[65]. Com efeito,
“the burden then must shift to the employer to articulate some legitimate, nondiscriminatory reason for the employee’s rejection. We need not attempt in the instant case to detail every matter which fairly could be recognized as a reasonable basis for a refusal to hire. Here petitioner has assigned respondent’s participation in unlawful conduct against it as the cause for his rejection. We think that this suffices to discharge petitioner’s burden of proof at this stage and to meet respondent’s prima facie case of discrimination”[66].
Observe-se, a propósito, que não se tratava de um litígio contratual, mas pré-contratual ― que, no Brasil, desafiaria a inevitável discussão acerca da competência material para o processo e julgamento do litígio, ut artigo 114, I, da CRFB[67]. De todo modo, mesmo à míngua de disposição legal expressa, consideramos que igual inteligência serve ao contexto judiciário brasileiro[68] (como, inclusive, já decidimos nos autos do processo n. 594/98-0, da 2ª Vara do Trabalho de Taubaté[69]).
O segundo grupo de ações liga-se ao tema do meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, caput, da CRFB[70]); e, nesse contexto, ao meio ambiente do trabalho, consagrado na Constituição brasileira como manifestação do meio ambiente humano (ut artigo 200, VIII). Como antecipado (supra), o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é também um direito fundamental da pessoa humana[71], imanente ao rol de direitos humanos de terceira geração[72]. Tratando-se, porém, de um interesse aprioristicamente difuso (artigo 81, par. único, I, da Lei 8.078/90), sua tutela processual reclama um procedimento diferenciado, como se dá no Brasil (Lei 7.347/85), na França (Loi 88-14, de 05.01.1988, alterada pela Loi 92-60, de 18.01.1992) e em Portugal (artigo 52º, n. 3, da Constituição portuguesa), entre outros.
Nessa ensancha, é importante reconhecer, com MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, que “a superação, no âmbito processual, do «paradigma individualista» (na expressão de CAPPELLETTI e GARTH) torna-se imperiosa quando o objecto da tutela jurisdicional são os chamados interesses difusos. […] A garantia desses interesses supra-individuais exige quadros processuais diferentes daqueles que são apropriados à tutela dos interesses individuais”[73]. O professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa cinge-se, nesse ínterim, aos aspectos da legitimidade ativa “ad causam”, dos poderes do tribunal e dos efeitos da coisa julgada; mas, a par dessas importantes nuanças, impende discutir, também, o problema da prova nesses processos (fase instrutória) e, notadamente, o dos critérios de repartição do ônus da prova (inclusive a inversão).
Nessa linha, vários autores já sustentam, no Brasil, a inversão do ônus da prova em matéria de sinistros no meio ambiente do trabalho. Veja-se, por todas, a obra de JOSÉ CAIRO JR., para quem o contrato de trabalho subordinado possui, em todos os casos, uma cláusula tácita de incolumidade (tal como a já reconhecida pelo STF em matéria de transportes, ou aquelas apontadas pela jurisprudência dos Estados em tema de prestação de serviços de estacionamento). Essa cláusula seria inerente ao conteúdo mínimo legal do contrato de trabalho e constituiria, por si só, o fundamento maior da responsabilidade civil do empregador pelos danos causados ao trabalhador, mesmo nos sinistros involuntários (artigo 7o, XXVIII, da CRFB). Logo, tratar-se-ia de responsabilidade contratual (= cláusula contratual implícita), ao contrário do que pregam as teses dominantes ao entreverem responsabilidade civil aquiliana (artigos 186 e 927 do NCC). Conseqüentemente, em face da obrigação contratual de cautela do empregador, inverter-se-ia o ônus da prova em todo sinistro laboral com vítima humana, cabendo ao contratante fazer prova cabal da culpa exclusiva da vítima, do caso fortuito ou da força maior (únicas hipóteses que, para CAIRO JR., isentar-lhe-iam de responsabilidade)[74].
De nossa parte, entendemos que as peculiaridades do “iter” probatório ― as provas mais relevantes somente podem ser coletadas nas dependências da própria empresa ― e, bem assim, o teor das normas insculpidas nos artigos 14, §1o, da Lei 6.938/81[75] e 927, par. único, do NCC[76] autorizam declarar a responsabilidade objetiva do empregador, dispensando-se a prova da culpa, em todas as hipóteses de desequilíbrio do meio ambiente do trabalho, i.e., quando a organização dos fatores de produção gerar, para os internos e o entorno, riscos agravados de dano à vida, à saúde ou à salubridade. Para tanto, cunhamos o conceito de poluição labor-ambiental, lastreado na descrição do artigo 3o, III, da Lei 6.938/81 (poluição definida como “condições adversas às atividades sociais e econômicas”)[77]. Para os demais casos, cremos aplicar-se a norma do artigo 7º, XXVIII, 2ª parte, da CRFB ― que, do contrário, seria letra morta. Nada obstante, quanto a esses últimos (casos de responsabilidade civil subjetiva), inclinamo-nos a acolher a tese de CAIRO JR.: impende inverter-se o ônus da prova, para imputar ao empregador ou tomador de serviços o ônus de comprovar que o sinistro não se deveu ao dolo ou à culpa (levíssima, leve, média ou grave), sua ou da parte de seus prepostos.
No que diz respeito ao direito à privacidade e à intimidade das pessoas (terceiro grupo de ações), importa primeiramente reconhecê-los como direitos humanos de primeira geração, se bem que tardiamente reconhecidos[78]. Entre nós, têm positividade constitucional no artigo 5o, X, da CRFB; em Portugal, leia-se o teor do artigo 26º, n. 1, in fine, da CRP; na Bélgica, o artigo 22, 1, da Constituição belga; na Espanha, o artigo 18, 1, da Constituição espanhola, e assim por diante. Em seguida, convém distinguir, entre si, o direito à vida privada e o direito à intimidade. No escólio de HENKEL[79], a esfera da vida privada “stricto sensu” (= “Privatsphäre”) compreende todos os comportamentos e acontecimentos que o indivíduo não quer que se tornem do domínio público, ainda que sejam de conhecimento de terceiras pessoas que, num âmbito mais amplo, privem de sua companhia (imagine-se, e.g., um estado de filiação bastarda ou um erro profissional sem maiores conseqüências, que sejam de conhecimento dos familiares ou dos colegas de trabalho, respectivamente, mas que não se queira ver divulgado à generalidade das pessoas). Já da esfera da intimidade, ou confidencial (= “Vertrauensphäre”), participam apenas as pessoas nas quais o indivíduo deposita estrita confiança e com as quais têm grande intimidade, a ponto de tratar de assuntos ou acontecimentos mais íntimos (como, e.g., a sua orientação sexual). Assim, numa visão mais abrangente, “a vida privada é inconfundível com a intimidade «proprio sensu»: a esfera da intimidade integra a noção geral de vida privada, mas não a exaure. Ao menos é assim na Constituição brasileira, em que as duas expressões exsurgem distintas e ladeadas; afinal, a lei (e tanto menos a Constituição) não tem palavras inúteis”[80]. Por conseqüência, os fatos íntimos normalmente desafiam proteção jurídica mais intensa que os fatos da mera vida privada (“Privatsphäre”).
Feitas as distinções, interessa tratar de sua tutela no processo e pelo processo.
No processo, tutela-se a intimidade e a vida privada com a proibição e o descarte das provas ilícitas obtidas mediante violações de correspondência ou interceptações telefônicas e telemáticas ilegais[81] (artigo 5º, XII e LVI, da CRFB) ― mas sem perder de vista, em todo caso, os abrandamentos que derivam da aplicação processual do princípio da proporcionalidade[82] (particularmente valioso para o processo penal e, no que couber, para o processo do trabalho ― assim, e.g., nos dissídios que envolverem lesão ou ameaça de lesão a direitos fundamentais de dignidade comparável à liberdade corporal-espacial, como nas ações que discutem interdição de estabelecimento em função de riscos graves e iminentes para a saúde e a integridade dos trabalhadores[83]).
Pelo processo (i.e., pelos remédios judiciais disponíveis), a intimidade e a vida privada dos trabalhadores pode ser assegurada mediante as diversas modalidades de tutela processual inibitória (ações cautelares, mandados de segurança, ações civis públicas ou coletivas[84], etc.). Por essa via, coíbem-se certas formas de exercício ilegal ou abusivo do poder hierárquico do empregador, como nas revistas íntimas injustificadas[85], na monitoração audiovisual dos empregados[86] em áreas privadas ou de descanso (e.g., banheiros e salas de café) e no controle telemático extralaboral[87] (fiscalização de navegação e devassa de e-mails fora do âmbito da unidade produtiva, como, p. ex., nos casos em que os serviços de provedor e caixa postal são oferecidos aos trabalhadores também para uso doméstico e privado). Em situações desse jaez, põe-se, uma vez mais, a discussão da inversão do ônus da prova. Alegada, pelo empregado, a ilicitude de certa prova ― usualmente por violação à intimidade ou à vida privada ―, é do empregador o ônus de demonstrar a sua liceidade (hipossuficiência presumida aliada à excessiva dificuldade em se demonstrar as violações, amiúde perpetradas no ambiente da empresa ― artigo 8º, caput e par. único, da CLT, c.c. artigo 6º, VIII, do CDC e 333, par. único, II, do CPC)[88]; mas ele deve comprovar a ilicitude da prova produzida pelo empregado, se o alegar. Da mesma forma, nas ações inibitórias, havendo prova ou confissão de que a empresa utiliza procedimentos como revistas íntimas, monitorações audiovisuais ou controle telemático ― que, pela sua própria natureza, oferecem risco de violação à intimidade e à privacidade alheias ―, é do empregador o ônus de comprovar que não há ilegalidade ou abuso (= ilegitimidade) na adoção e/ou implementação daqueles procedimentos.
Enfim, com relação ao assédio sexual e ao assédio moral (quarto grupo de ações), diga-se, à saída, que a primeira figura já está positivada no Direito Penal brasileiro, ut artigo 216-A do Código Penal[89]. Já a segunda ainda carece de positivação, mas têm sido definida, no âmbito das relações de trabalho, como “toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo o seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho”[90]. São práticas que violam, respectivamente, o direito à livre determinação sexual e o direito à tranqüilidade psíquica, ambos fundamentais, secundando o princípio da dignidade humana. Desse modo, a denúncia de tais práticas, nas esferas civil e trabalhista, reclama especiais cuidados quanto à direção do processo. Impende considerar a inversão do ônus da prova, também aqui, quando a prova do assédio tornar-se excessivamente difícil para o autor (assim, e.g., quando o molestamento ocorre nos domínios do réu ― como em seu domicílio ou na sua empresa ― e todas as testemunhas disponíveis são parentes ou empregados). Esse encaminhamento já tem ecos no direito e na literatura estrangeiras[91] e possui os mesmos baldrames da tese perfilhada para o grupo anterior. É recomendável, contudo, sempre trazer à luz algum indício do assédio (rigor evidente, queda involuntária de produção, tratamento diferenciado, etc.); se todas as descrições indiciárias forem negadas e não houver um elemento sequer que as corrobore, a narrativa torna-se fantasiosa e, nesse caso, inverter o ônus da prova significará impor, sem mais, a condenação, em afronta ao devido processo legal[92]. Já não é assim nos casos clássicos de discriminação, em que as próprias circunstâncias objetivas da relação, tal como consolidadas e reproduzidas, são indiciárias do problema[93].
Ao mais, aduza-se uma consideração de ordem metodológica, válida para os quatro grupos notáveis. Ao contrário do que entende a doutrina processual recorrente[94], pensamos que o problema da inversão do ônus da prova não é apenas um problema de juízo (= julgamento), mas também de procedimento. Isso é especialmente verdadeiro nos processos de garantia de direitos humanos fundamentais, nos quais freqüentemente se dão hipóteses de direitos indisponíveis “ab ovo”, que não se sujeitam sequer à confissão ficta (artigo 351 do CPC). Sob tais circunstâncias, cabendo ao réu produzir as provas da não-violação, é medida de inteira plausibilidade que, a bem do devido processo legal e da prevenção das “decisões-surpresa”, o magistrado esclareça a situação durante o processo[95] e determine a inversão da ordem de instrução. De resto, e a par disso, a natureza do direito em discussão exigirá, não raro, a iniciativa do próprio magistrado na apuração dos fatos (com fundamento nos artigos 130, 342, 355 e 418 do CPC, ou artigos 653, “a”, e 680, “f”, da CLT), levando até à constituição judicial de provas, sob pena de se referendar, ao final, uma «verdade formal» detratora da realização de direitos humanos de primeira, segunda, terceira ou quarta geração.
Chancelando as opiniões expostas supra, inclina-se hoje a melhor doutrina brasileira. MALLET, por exemplo, obtempera que
“as regras relativas ao ônus da prova, para que não constituam obstáculo à tutela processual dos direitos, hão de levar em conta sempre as possibilidades, reais e concretas, que tem cada litigante de demonstrar suas alegações, de tal modo que recaia esse ônus não necessariamente sobre a parte que alega, mas sobre a parte que se encontra em melhores condições de produzir a prova necessária à solução do litígio. […] Enquanto não houver mudança concreta das regras relativas ao ônus da prova, portanto, continuará o Processo do Trabalho, ainda preso à idéia da igualdade formal dos litigantes, a discriminar a parte menos favorecida da relação litigiosa”[96].
Com efeito, não são poucas as legislações que predispõem, no processo em geral, regras de inversão do ônus da prova em casos de disparidade entre as partes processuais (freqüentes no processo do trabalho e em alguns setores do processo civil, como nos litígios de consumo, ut artigo 6o, VIII, do CDC) e também em casos de interesse público (como, e.g., no. artigo 137 do Código de Processo do Trabalho do Paraguai, de 1961[97]). A legislação processual brasileira, por sua vez, é hesitante. Mas, apesar disso, tais inversões são juridicamente possíveis, tecnicamente defensáveis e politicamente desejáveis, sempre no marco dos princípios que informam a teoria geral do processo e a própria legislação vigente. O que não convém é perpeturar o casuísmo atual, que inspira resistências e suspeições[98]; e, para combatê-lo, há que perseguir, a um tempo, a coerência científica do discurso, a legalidade do processo e a plena obediência ao “due process of law”.
Na mesma trilha de princípios, a Diretiva n. 97/80/CE do Conselho da União Européia (15.12.1997), ao examinar a questão do ônus da prova nos casos de processos de discriminação baseada no sexo (gênero), perfilhou o objetivo de “garantir uma maior eficácia das medidas adotadas pelos Estados-membros, em aplicação do princípio da igualdade de tratamento” e, com essa premissa, instou os Estados-membros da União Européia a assegurarem, em suas legislações nacionais,
“que quando uma pessoa que se considere lesada pela não-aplicação, no que lhe diz respeito, do princípio da igualdade de tratamento apresentar, perante um tribunal ou outra instância competente, elementos de facto constitutivos da presunção de discriminação direta e indirecta, incumba à parte demandada provar que não houve violação do princípio da igualdade de tratamento” (g.n.)[99].
À míngua de lei própria, até mesmo essa Diretiva ― ou, mais corretamente, as legislações por ela condicionadas[100] ― podem ser evocadas pelo juiz do Trabalho brasileiro, ante as insuperáveis lacunas da legislação nacional e a expressa referência, no artigo 8o, caput, da CLT, ao direito comparado como fonte alternativa do Direito do Trabalho (o que diz intimamente com o caráter de universalidade dos direitos humanos fundamentais, em geral, e dos direitos sociais, em especial).
4.4. PODERES INSTRUTÓRIOS E TUTELA «EX OFFICIO»
Tem-se tornado recorrente, na jurisprudência trabalhista, a afirmação de que no processo do trabalho vige o chamado princípio da verdade real[101], notadamente em matéria de admissão de provas testemunhais e documentais após o momento processual oportuno.
Esse princípio a rigor remonta ao processo penal. No dizer de TOURINHO FILHO,
“enquanto o Juiz não-penal deve satisfazer-se com a verdade formal ou convencional que surja das manifestações formuladas pelas partes, e a sua indagação deve circunscrever-se aos fatos por eles debatidos, no Processo Penal o Juiz tem o dever de investigar a verdade real, procurar saber como os fatos se passaram na realidade, quem realmente praticou a infração e em que condições a perpetrou, para dar base certa à justiça”[102].
Adiante, o mesmo autor assevera:
“No Processo Penal, cremos, o fenômeno é inverso [daquele do Processo Civil]: excepcionalmente, o Juiz penal se curva à verdade formal, não dispondo de meios para assegurar o império da verdade”[103].
Hodiernamente, esse dado torna-se cada vez mais constante no processo do trabalho, decerto por duas razões fundamentais: (a) o princípio da primazia da realidade, que DE LA CUEVA e AMÉRICO PLÁ RODRIGUEZ preconizaram para o Direito Material do Trabalho (e que tem, obviamente, reflexos no Direito Processual do Trabalho); (b) o caráter indisponível e fundamental de enorme gama de direitos que são violados no contexto das relações de emprego e depois se sujeitam à apreciação da Justiça do Trabalho.
Com efeito, se os direitos humanos fundamentais têm por característica a irrenunciabilidade, está claro que as convenções de prova[104] ou a própria inércia das partes não podem redundar, direta ou indiretamente, na disposição ou menoscabo daquele direito (como, p. ex., o direito à vida, ao tratamento igualitário, à integridade física, à saúde psíquica, ao meio ambiente do trabalho equilibrado, etc.). E, se é assim, resulta evidente que a natureza pública dos interesses em jogo exige, do juiz do Trabalho, que não transija com a verdade formal e nem com ela se satisfaça, senão muito excepcionalmente (quando, ante a impossibilidade de produção de provas hábeis, houver de decidir exclusivamente pela repartição do ônus da prova).
A última ilação permite entrever os influxos do caráter híbrido do Direito do Trabalho no processo laboral. No plano material, o Direito do Trabalho reúne características do Direito Privado (donde as teorias contratualistas), mas também têm características próprias do Direito Público (donde as teorias anticontratualistas ou institucionalistas). São os traços de Direito Público que se refletem, no processo, como persecução da verdade real.
Nessa ensancha, para «alcançar» a verdade real ― tão importante quando se discutem direitos fundamentais da pessoa humana trabalhadora ―, o juiz deve empregar largamente as suas prerrogativas processuais de instrução, com espeque no artigo 765 da CLT (rito ordinário) e/ou no artigo 852-D da CLT (sumaríssimo). O primeiro estatui:
“Os juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas” (g.n.).
E o último:
“O juiz dirigirá o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, considerando o ônus probatório de cada litigante, podendo limitar ou excluir as que considerar excessivas, impertinentes ou protelatórias, bem como para apreciá-las e dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica” (g.n.).
Conseqüentemente,
“a preclusão da faculdade de requerer a produção de determinada prova, verificada em relação à parte, não impede o exercício dos poderes probatórios do juiz. Inexiste aqui regra que legitime solução diversa. Nada indica tenha o sistema optado por inibir a iniciativa probatória oficial em razão da perda, pela parte, da faculdade de produzir determinada prova”[105].
Mas não é só. Pode-se ir um pouco além.
O artigo 273, caput, do CPC, na redação da Lei n. 8.952/94, dispõe que a antecipação dos efeitos da tutela de mérito só se fará a requerimento da parte (princípio dispositivo). Vedar-se-ia, dessarte, a tutela antecipatória “ex officio”. Nada obstante, a doutrina vanguardeira ― mesmo no processo civil ― tem reconhecido exceções a essa regra. Assim, “in verbis”:
“O legislador condiciona a medida ao pedido da parte (art. 273). Não se podem excluir, todavia, situações excepcionais em que o juiz verifique a necessidade de antecipação, diante do risco iminente do perecimento do direito cuja tutela é pleiteada e do qual existam provas suficientes de verossimilhança. […] Nesses casos extremos, em que, apesar de presentes os requisitos legais, a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicionais não é requerida pela parte, a atuação ex officio do juiz constitui o único meio de se preservar a utilidade do resultado do processo. Nessa medida, afastar taxativamente a possibilidade de iniciativa judicial no tocante à tutela antecipatória pode levar a soluções injustas”[106].
E isso se explica, segundo BEDAQUE, pela similitude, nesses casos, entre a tutela antecipatória e a tutela cautelar, aplicando-se analogicamente o artigo 798 do CPC (poder geral de cautela), já que tanto as liminares cautelares quanto as liminares antecipatórias do artigo 273, I têm a mesma função no sistema processual[107].
Não haveria de ser diferente no processo do trabalho, em cujo ensejo ― insista-se ― são bem mais recorrentes os pedidos de tutela processual antecipada de bens fundamentais da vida (direitos humanos). Eis porque doutrinadores há que sustentam ser regra, no Direito Processual do Trabalho, a possibilidade de concessão “ex officio” da tutela antecipada. Entendemos, pela via intermédia, que ― em face do teor explícito do artigo 273 do CPC ― apenas excepcionalmente o juiz do Trabalho poderá conceder de ofício a tutela antecipada. Fá-lo-á, precisamente, nos supostos de violação inequívoca de direitos humanos fundamentais da pessoa trabalhadora, por força do princípio da proporcionalidade (que impõe, na espécie, a interpretação conforme e ameniza a inflexibilidade legal)[108]. Pode-se afirmá-lo, ainda, por via de interpretação sistemática: se o processo do trabalho admite a execução “ex officio” (artigo 878, caput, da CLT) com fundamento no caráter alimentar e indisponível dos direitos exeqüendos, “a fortiori” se deve entender pela admissibilidade da tutela processual “ex officio”, mesmo em fase de conhecimento, quando há risco iminente a direitos humanos fundamentais (que, vimos, são por definição irrenunciávies ― logo, indisponíveis).
4.5. MEIO AMBIENTE DO TRABALHO
O meio ambiente do trabalho, segundo José Afonso da Silva, é “o local em que se desenrola boa parte da vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está, por isso, em íntima dependência da qualidade daquele ambiente”. Como dito alhures, tem previsão constitucional expressa (artigo 200, VIII) e geralmente transita entre os interesses difusos e os interesses coletivos “stricto sensu”, a depender da configuração das pretensões concretas.
Desenvolvendo o chamado Direito Processual ambiental, a doutrina tem reconhecido, como instrumentos processuais constitucionais de tutela ambiental, a própria ação civil pública (tópico 4.1, supra) e outros três outros institutos, a saber, a ação popular ambiental, o mandado de segurança coletivo ambiental e o mandado de injunção ambiental[109].
Admitindo-se que é da Justiça do Trabalho a competência para processar e julgar todos os litígios envolvendo o meio ambiente do trabalho (como parece decorrer da redação da Súmula 736 do STF[110] e ― mais recentemente ― do próprio teor do artigo 114 da CRFB, na redação da EC n. 45/2004), é forçoso reconhecer que todos esses instrumentos processuais servem à tutela dos direitos fundamentais da pessoa trabalhadora, no âmbito do processo do trabalho. Obviamente, cada qual surtirá bons efeitos nos lindes de sua vocação institucional. Consideremos os três últimos, já que a ação civil pública foi estudada em tópico próprio.
(a) Ação popular ambiental. Nos termos do artigo 5º, LXXIII, da CRFB, serve tanto para os casos de lesão ou ameaça ao patrimônio público (i.e., bens públicos “stricto sensu”, como uma praça, um fundo estatal ou um prédio público), como para os de lesão ou ameaça aos bens de natureza difusa[111] (entre os quais está o próprio meio ambiente do trabalho equilibrado). Assim, qualquer cidadão brasileiro[112], no gozo de seus direitos civis e políticos, pode ajuizar ação popular com vistas à anulação ou à declaração de nulidade de atos públicos ou de interesse público que sejam lesivos ao meio ambiente do trabalho (artigo 1º, caput, da Lei n. 4.717/65) ― inclusive o trabalhador. Aplica-se a Lei 4.717/65, em tudo que “não contrariar ou prejudicar a incidência de princípio ou dispositivo da jurisdição civil coletiva”[113]. Suponha-se que a inspeção do trabalho tenha sido fraudada, acobertando sucessivos descumprimentos de normas de saúde e segurança no trabalho que podem prejudicar, direta ou indiretamente, o grupo de trabalhadores, o entorno e/ou toda a comunidade (como, p. ex., nas operações em instalação geradora de energia nuclear ou na manipulação de elementos carcinogênicos). Como resultado da ação popular, o relatório original poderá ser declarado nulo (desvio de finalidade: artigo 2º, “e”, da Lei 4.717/65), acometendo-se a outro auditor a tarefa de fiscalização[114].O mesmo se aplicaria à hipótese de um EIA/RIMA eivado de vícios, que permitisse, a um tempo, a exposição dos trabalhadores e da comunidade a níveis intoleráveis de concentração de benzeno: ainda que tenham origem em perícias particulares, laudos como esse suscitam o interesse público e podem desafiar ações populares. Mas em nenhum desses casos haverá reparação de dano, porque a ação popular não tem essa finalidade. Para o fim de reparação, deve-se ajuizar ação civil pública ou coletiva (tópico 4.1, supra). A ação popular colima tão-só declarar nulos, anular ou fazer cessar atos jurídicos e/ou materiais que sejam prejudiciais ao patrimônio público ou atentatórios à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
(b) Mandado de segurança coletivo ambiental. À mercê do artigo 5º, LXX, “b”, da CRFB, o mandado de segurança ambiental pressupõe a violação de um direito líquido e certo em matéria ambiental, seja pela autoridade pública, seja pelo agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. No meio ambiente do trabalho, pode-se imaginar a hipótese do Município que não concede, aos seus coletores, equipamentos de proteção individual (direito líquido e certo do trabalhador, ut artigo 166 da CLT). A prova é, a rigor, meramente documental (termos de entrega de EPIs), valendo aqui a regra da inversão do ônus da prova. Podem impetrá-lo, e.g., o sindicato de classe ou o próprio Ministério Público, em face do artigo 127, caput, da CRFB[115].
(c) Mandado de injunção ambiental. Previsto no artigo 5o, LXXI, da CRFB, o mandado de injunção visa à “proteção de quaisquer direitos e liberdades constitucionais, individuais ou coletivas, de pessoa física ou jurídica, e de franquias relativas à nacionalidade, à soberania popular e à cidadania, […] por inação do Poder Público em expedir normas regulamentadoras pertinentes”[116]. Serve, portanto, à tutela processual da segurança jurídica e da exeqüibilidade dos direitos, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Qualquer pessoa com legítimo interesse jurídico pode usar da injunção, impetrando qualquer das pessoas jurídicas políticas do Estado ou Poderes da Federação. Reitere-se que o direito ao meio ambiente equilibrado, se bem que previsto no artigo 225 da CRFB, é fundamental e goza da aplicabilidade imediata do artigo 5o, §1o, da CRFB. Assim, a se entender que, em relação às normas de segurança, saúde e higiene no trabalho, há omissão do Poder Público em regulamentar certa matéria, e desde que isso inviabilize o exercício de direitos labor-ambientais com fulcro constitucional, caberá a impetração do writ. A competência será da Justiça do Trabalho, por extensão da norma do artigo 114, IV, da CRFB.
Existe, a propósito do mandado de injunção, pelo menos um caso notável de omissão do Poder Legislativo Federal que tem obstado a fruição de um direito labor-ambiental de compleição constitucional: o do artigo 7º, XXIII, da CRFB, no que toca ao adicional de remuneração para as atividades penosas. Embora a preeminência axiológica caiba à redução/neutralização dos riscos inerentes ao trabalho (inciso XXII), é inegável que o inciso XXIII veicula um direito social relevante, que deveria ser pago, à guisa de compensação, a tantos quantos exercessem atividades penosas. No entanto, faltante a regulamentação legal e administrativa da matéria, o adicional de penosidade não tem sido pago àqueles que se sujeitam, em tese, ao labor penoso[117] (exceção feita às categorias que negociaram o direito e o sacramentaram em acordos e convenções coletivas, como ocorreu com os engenheiros e técnicos industriais de Santa Catarina e com os trabalhadores em transportes rodoviários do Pará). Têm, conseqüentemente, legitimidade para lançar mão do remédio[118].
4.6. JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
Um estudo sério da tutela processual dos direitos humanos fundamentais necessariamente culmina com o tema da judicialização da política. Inclusive no processo do trabalho.
É que os direitos fundamentais, mormente os de segunda, de terceira e de quarta geração, deveriam ser garantidos e implementados pelo Poder Público, mediante leis (Poder Legislativo) e políticas públicas (Poder Executivo). Há, porém, óbvio déficit de efetividade no que diz respeito a vários desses direitos (sobretudo os de terceira geração). Esse quadro reclama a intervenção do Poder Judiciário, na qualidade de guardião dos valores constitucionais e da Democracia Republicana. E, por conta disso, o que seria, na origem, objeto da discrição legislativa ou da oportunidade e conveniência administrativas acaba por se tornar elemento componente de um processo judicial.
Diante desse movimento sociológico, certos autores têm empregado a expressão supra ― «judicialização da política» ― para designar a tendência pós-moderna de que as omissões ou insuficiências da legiferância e das políticas públicas sejam supridas pela construção jurisprudencial. Tendência que reputamos bem-vinda, se expurgados os excessos e as teratologias (pois, no limite, corroem o sistema dos “checks and balances” e vulneram o princípio do artigo 2º da CRFB). Esse fenômeno revela-se útil, se não necessário, para o pronto atendimento das novas demandas e a solução dos novos litígios, que do contrário defrontariam a inércia e a morosidade natural dos Poderes Executivo e Legislativo[119] (a cujos trâmites políticos, próprios do “iter” decisório, o Judiciário é menos permeável).
Essa, porém, é a judicialização “positiva”. Não é aquela, negativa (= de alta intensidade), suposta por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS:
“Há judicialização da política sempre que os tribunais, no desempenho normal das suas funções, afectam de modo significativo as condições da acção política. Tal pode ocorrer por duas vias principais: uma, de baixa intensidade, quando membros isolados da classe política são investigados e eventualmente julgados por actividades criminosas que podem ter ou não a ver com o poder ou a função que a sua posição social destacada lhes confere; outra, de alta intensidade, quando parte da classe política que, não podendo resolver a luta pelo poder pelos mecanismos habituais do sistema político, transfere para os tribunais os seus conflitos internos através de denúncias cruzadas, quase sempre através da comunicação social, esperando que a exposição judicial do adversário, qualquer que seja o desenlace, o enfraqueça ou mesmo o liquide politicamente”[120].
Essa derradeira forma de judicialização é decerto nefasta. Instrumentaliza os tribunais para azeitar as armas do peleja político-partidária, sem nenhum ganho para a Democracia. A interferência “política” da magistratura deve ter o único propósito de fazer cumprir o programa constitucional republicano, especialmente quando os outros Poderes da República injustificadamente se recusarem a fazê-lo. O que houver de mais será espúrio.
V. CONCLUSÕES
No livro “What should legal analysis become?”, MANGABEIRA UNGER examina os processos ordinários de interpretação do Direito, dominados por uma teórica inercial estéril (a que denomina “rationalizing legal analysis”), e propõe um novo modelo, bifocal (centrado nos pressupostos da democracia representativa e na natureza humana), que engendre um processo paulatino de revisão das instituições a partir do diálogo franco entre os técnicos do Direito (juízes inclusos) e a sociedade civil. Termina por concluir que, “para nos tornarmos realistas, antes devemos nos fazer visionários”[121].
Abstemo-nos, a esta altura, de considerar os méritos do modelo proposto (“mapping and criticizing”), pensado para o caso anglo-saxão. Mas os pruridos que estão na sua base genética coincidem, em grande parte, com os receios pulverizados nas entrelinhas deste trabalho ― esses e aqueles relacionados ao imobilismo jurídico-judicial. E a conclusão destacada tem, nesse contexto, um particular interesse.
Em Direito é, efetivamente, assim. Ser realista é ser visionário. Não se constrói uma realidade melhor sem depositar esperanças na consolidação de novos paradigmas jurídicos. Mas só a esperança não basta: é preciso agir. Agir com prudência, é certo; erigir toda construção dogmática sobre os poderosos alicerces da Ciência, porque a jurisprudência “intuitiva” ou de ímpeto é a primeira a ruir na dança das ideologias. Mas há que agir.
Age-se em juízo, ousando pedir e ousando julgar. Ou, numa palavra, ousando perfilhar (teses menos ortodoxas). Mas, antes disso, é preciso agir noutra instância, muito mais sutil e imponderável: no plano das convicções. O operador do Direito só logra bem convencer os seus interlocutores quando está, ele próprio, convencido da justiça de seus argumentos.
E é disso, afinal, que se trata quando o assunto é a tutela processual dos direitos humanos da pessoa trabalhadora. Convencer-se intimamente de que, no mais prosaico dia-a-dia e nos mais diversos rincões, há trabalhadores brasileiros cujos direitos fundamentais vêm sendo obstinadamente malferidos, à mercê de uma insensibilidade crônica peculiar ao capitalismo industrial e financeiro. Convencer-se de que esses direitos sem dimensão patrimonial podem ser resgatados com os instrumentos jurídicos que a legislação oferece. Convencer-se, enfim, de que algo pode ser feito. Agir e ousar… ousar agir.
Informações Sobre o Autor
Guilherme Guimarães Feliciano
Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (Estado de São Paulo, Brasil), é Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Doutorando em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade (Clássica) de Lisboa. Professor Assistente Doutor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade de Taubaté (admitido por concurso público de provas e títulos). Extensão Universitária em Economia Social e do Trabalho (Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP). Diretor Cultural da AMATRA-XV (Associação dos Magistrados do Trabalho da Décima Quinta Região), gestão 2005-2007. Diretor para Assuntos Legislativos da AMATRA-XV, gestão 2003-2005. Membro do Conselho Editorial da Revista ANAMATRA-FORENSE “Direito e Processo”. Membro da Subcomissão de Doutrina Internacional do Conselho Técnico da EMATRA-XV (Escola da Magistratura do TRT da 15a Região) para a Revista do Tribunal Regional do Trabalho da Décima Quinta Região. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e do Instituto Manoel Pedro Pimentel (órgão científico vinculado ao Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo), de cujo Boletim foi editor-chefe entre 1997 e 2002. Autor de teses e monografias jurídicas (Tópicos Avançados de Direito Material do Trabalho, v. I e II, Editora Damásio de Jesus, 2006; Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal Ambiental brasileiro, Editora LTr, 2005; Informática e Criminalidade, Editora Nacional de Direito, 2001; Execução das Contribuições Sociais na Justiça do Trabalho, Editora LTr, 2001; Tratado de Alienação Fiduciária em Garantia, Editora LTr, 2000). Palestrante e articulista em Direito Penal e Direito e Processo do Trabalho. Ex-membro das Comissões Legislativa e de Prerrogativas da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA). Diretor Científico do Núcleo de Estudantes Luso-Brasileiro (NELB), anexo à Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, gestão 2004-2005. Membro da Academia Taubateana de Letras (cadeira n. 18).