Os conceitos acima
são idênticos? Se são diversos, como defini-los, ou
seja, quais seus limites essenciais (teóricos e até territoriais)? Como, enfim,
distinguí-los entre si? Qual a natureza dessa
trindade federal no Brasil? Por que essa trindade é sempre fugidia?
Enfim, Brasília, Plano Piloto, DF, Capital federal, do Brasil… existem de onde até aonde?
Certa vez fui
chamado a discutir com adolescentes de uma conhecida escola particular da Asa
Sul o tema “o DF”. Tema esse só aparentemente fácil. É onde moramos! É a
capital do Brasil! É Brasília! …, diziam os estudantes. Mas uma indagação
trouxe a sempre contornada e jamais resolvida confusão: “professor, quando
volto do ‘Parkshoping’ vejo placas
indicando que Brasília fica pra lá!! Aí eu fico confuso! Ali,
onde eu estava, o que é, se não é Brasília?” De
outra feita, uma interessada professora do GDF também propôs esse desafio: o
hino oficial é de Brasília ou do Distrito Federal? A esfinge permanece ainda indecifrada: “o governador é de Brasília ou do DF?” Por que
a Universidade Católica de Brasília, está em
Taguatinga (que não é considerada Brasília)?
São perplexidades
mais recentes (art.18, CF/1988) numa questão sempre muito indecifrável e que não se restringe
apenas à semântica, nem tampouco é meramente acadêmica, posto que tem implicações cotidianas na vida de muitos. Nada resolve,
pelo menos tecnicamente, o lugar comum: “o DF é um Estado e também um
Município”, ora o que há é tão-só acumulo de
competências jamais de pessoas. Ademais, aqui esse enfoque é de interesse
mediato, eis que o imediato é a localização física da capital federal, da sede
administrativa, do domicílio da pessoa União/República Federativa do Brasil,
interna e externamente.
Município anômalo, para Hely L. Meirelles; para Ruy o DF era um “semi-Estado,
um quase-Estado, um Estado que não dispõe de sua própria constituição.”;
para José Afonso da Silva é uma autarquia territorial; para Manoel
Ferreira Filho é uma circunscrição territorial assemelhada aos
Territórios Federais; para outros juristas o DF é: mais que um município e
menos que um Estado (p.ex. Pontes, Diogo Figueiredo, Sepulveda
Pertence…). Enfim, o DF é uma pessoa jurídica sui
generis, todos concordam.
A questão impõe um
breve histórico sobre a doutrina do Estado federal. O vocábulo Federal,
derivado do Latim ‘foederare’ (=unir,
legar por aliança), é empregado na técnica do Direito Público, enquanto
organização do Estado, como a união indissoluvelmente instituída por Estados
independentes ou da mesma nacionalidade para a formação de uma só entidade
soberana. Na federação, embora não se evidencie um regime unitário, há um laço
de unidade entre as diversas coletividades federadas, de modo a mostrá-las, em
suas relações internacionais e mesmo em certos fatos de ordem interna, como um
Estado único. Entre os entes da federação (na CF/1988: União, Estados, DF e
municípios) não há hierarquia, mas coordenação harmônica de poderes
distribuídos pela Carta Magna da federação.
Há, assim, um só
Estado soberano/federal (a União) e Estados-membro/federados,
ambos são titulares do poder para produzir o Direito (competência legislativa,
para Kelsen). Com efeito, o que mais caracteriza o
regime federativo é a coexistência de um centro de poder político
(nacional/federal/soberano) e de outro centro local/federado/autônomo. Como se
vê na federação tradicional só há dois centros de poder político: a União e o
Estado-membro, o município não é ente federativo, inexiste na federação, mas
pode existir no estado subunidade, sendo pois mero
ente integrante do Estado-membro, não da federação. A federação (tanto quanto o
presidencialismo) nasce por um lado como prática política concebida pelo
espírito genial dos pais da nação norte-americana (Hamilton, Jay, Madison, 1787/1778) para
prevenir os vícios do poder absoluto que tanto incomodaram os que embarcaram no
MayFlower para fundar
a Nova Inglaterra no continente americano; mas por outro lado, também federação
facilitaria a sustentação política da nova organização estatal por parte de
ex-colônias e sobretudo viabilizava a ratificação da constituição (também
experiência inovadora) então proposta. Assim, pois, a federação, a separação
dos poderes do Estado são aplicações práticas da Teoria do checks
and balances.
Como vimos, há
dois Estados autônomos (e logo dois governos) dentro da mesma federação: o
Estado central/geral que, pelo menos, territorialmente é uma abstração, eis que
se os Estados-membro/locais
têm base territorial o mesmo não ocorre com o estado soberano (o federal, a União). E assim
sendo, a sede desse governo geral não tem como não ficar localizada em
território de outro ente político (em um dos Estados-membro).
Em 1783 o Congresso que preparava a futura constituição norte-americana,
instalado na Philadelphia, foi cercado por amotinados
que pretendiam impor-lhe seus interesses. O governo local não tomou as providencias devidas e a população da cidade também se pôs
contra o Congresso constituinte. A situação foi salva por tropas enviadas por
Washington e o congresso teve que retirar-se para Princeton onde foi abrigada no
prédio da universidade local. Logo esse fato fez com que os constituintes
concebessem um território neutro (art. I, Seção 8ª,
n.17, CF/EUA/1787). O governo federal precisava ter sua casa, dizia João
Barbalho (in CF/1891). Nascem, assim, as idéias de um território
neutro, de um distrito federal (conceitos mais ligadas à base
territorial) e de capital federal (mais voltada para a conceituação de
centro administrativo, de centro/cabeça da administração federal, da União).
É que, assim como
as províncias (no Estado unitário/império), os Estados-membro (na república/federação) carecem de
base territorial para sediar suas administrações centrais/capitais (ié, gerências principais dessas unidades geográficas:
província/Estado-membro, que são subdivisíveis em municípios e esses em
distritos) a União/Estado federal, também daquela base para instalar sua
própria administração (a máxima do país). Como se vê,
tanto a federação, quanto o Estado unitário são fenômenos sempre relativos: não
há absoluta descentralização, nem tampouco absoluta concentração de poder
político, mas sim equilíbrio entre os entes da federação.
No Brasil imperial
não havia discriminação entre a administração geral do Império e a
administração local da província do Rio de Janeiro onde se instalava-se
o Império. O Brasil era então um Estado unitário – em que as províncias
(ex-capitanias) eram mais ou menos segmentos locais do governo central. O Ato
Adicional nº 12, de 12/08/1834 então estatuía que “a
autoridade da Assembléia Legislativa da Província em que estiver a Corte não
compreenderá a mesma Corte, nem o seu Município.” (art.1º). Esse dispositivo
desligou a cidade (conceito urbanístico) do Rio de Janeiro da Província
(conceito político-adm./forma de organização do Estado) de mesmo nome, instituindo
o que se chamou de município neutro (município era então mera seção da
administração da província)
Já com o Brasil
República, presidencialista e federativa, sob a Constituição Federal de 1891
(art.2º) é que o antigo (do Império/Estado unitário) município neutro
vem de se converter no então denominado Distrito Federal (da
república/federativa) que passa a ter existência formal (jurídica). O grande
Carlos Maximiliano, sempre refutou a denominação de distrito porque esse não é
circunscrição autônoma, na técnica administrativo-política
brasileira, sendo parte do município cujo dirigente é indicado pelo
prefeito. O DF então era um município (art. 66, CF/1891), seguindo a pureza
original da teoria federal, tanto assim é que ao cuidar dos municípios a
CF/1891 diz: “Uma lei do congresso organizará o município no Distrito Federal.”
(art. 67, § ún.).
Na Constituição de
1934 o DF elegia seu prefeito e sua Câmara municipal. Embora dito no art.15 que
o prefeito seria nomeado, o art. 4º (c/c art.3º, §3º) das Disposições
Transitórias, garante que o legislativo municipal elegerá o primeiro e os
demais serão eleitos pelo povo do Rio de Janeiro. Era a autonomia política e
administrativa chegando ao Rio de Janeiro enquanto sede da federação. Todavia
na Constituição Polaca de 1937, o DF (art.30) atinge a máxima insignificância
político-administrativa na República; situação essa pior que a do Império, em
que havia pelo menos um legislativo local, o Conselho Municipal.
Já encerrada a
ditadura, a CF/1946 retoma a autonomia do DF menos quanto a
eleição popular do seu prefeito que restou ainda nomeado pelo Presidente da
República (art. 87, IV), mas dispunha 50 vereadores eleitos (art. 11, § 2º, I,
e IV, Dispos. Transit.). A
Emenda Constitucional nº 2, de 03/07/1956 reabilitou a
eleição popular do prefeito do DF que seria eleito, juntamente com o
Presidente da Republica, em outubro de 1960. Entretanto tal Emenda jamais teve
eficácia. Mudada, então, a capital federal para o planalto Central1, surge a Lei nº 3751,13/04/1960 que em flagrante inconstitucionalidade
(desconhece aquela Emenda incorporada ao texto magno) restabelece a nomeação, ad nutum, do
prefeito do DF.
A Constituição de
1967 (art.17, § 2º), manteve o titulo de prefeito do DF (e não do Rio de
Janeiro, de Brasília) como já era tradição de nosso federalismo. Só em
1969, via Emenda nº 01/1969 (aliás, ‘emendão’, eis que maior que o texto emendado por isso mesmo
alguns a consideram uma nova Carta), é que essa tradição é rompida e o
prefeito, num passe de mágica dos juristas de plantão, foi chamado de
governador do DF em dupla incoerência. A uma, porque deseduca o povo, que perde
a intuitiva/natural noção/conhecimento das
instituições fundamentais em meio a tantas modificações desnecessárias. A dois,
porque se prefeito nomeado já não convencia, pior então é governador-preposto.
Na atual
Constituição, retoma-se o modelo mais democrático já praticado entre nós, ou
seja, o da CF/1934. Há legislativo e governador eleitos diretamente. Essa
constituição inova profundamente. Faz do município, expressamente, um ente
federal, elevando bastante seu potencial administrativo-político
com tratamento específico (um Capítulo exclusivo, sendo que antes o município
quase inexistia nas constituições brasileiras) na Constituição Federal tanto
quanto o Estado-membro. O DF também foi bastante elevado no plano federativo.
Se antes mais se aproximava do município, agora é quase um Estado-membro.
Assim, refere-se a CF/1988 à vedação do DF dividir-se em
municípios o que pressupõe sua natureza de Estado-membro. È administrado
por governador (já era assim na EC nº1/1969). O Legislativo do DF é composto
por deputados e não por vereadores. Conquanto mais para Estado-membro que para
município. O DF é regido não por Constituição, como os Estados, mas por lei
orgânica como os municípios. Embora deputados distritais não há
Assembléia legislativa, mas Câmara (tradicionalmente de vereadores/municipal)
legislativa.
A fonte de onde
nascem todas as pessoas, ou seja, todos os sujeitos de direito (o ser humano e
outros entes personalizados), o Código Civil (art.13, II e 40 do futuro CCB) o
DF é pessoa jurídica de direito público interno, dentre as de natureza
política (ié, que detêm parcelas do poder político
nacional) ao lado da União, dos Estados e dos municípios. São só essas as pessoas políticas existentes no Brasil. Só o DF
é, assim, ente jurídico personalizado e unidade da federação, ao
lado da União e dos Estados e dos municípios (esse desde a CF/1988)
em nossa prática federativa. Brasília é só um conceito urbanístico, eis que
tão-só uma cidade e tal conceito só tem relação com
qualquer pessoa jurídica política enquanto base territorial-urbana,
ou seja, sede sobretudo municipal.A principal cidade costuma ser a sede do
município; o principal município, a sede do Estado-membro, ou
da União.
Como se vê, não há
governador ou mesmo prefeito de cidade, mas de Estado-membro ou de município. Não há, tecnicamente,
governador de Brasília (sem governo ficaria, então, Taguatinga,
Planaltina…??). O prefeito/governador sempre foi,
expressamente designado em todas nossas constituições, como sendo do DF, jamais
de Brasília. Tampouco Brasília é a capital federal, salvo se nela estiver
abrangida toda a área do DF, incluindo as cidades satélites. A desapropriação
do quadrilátero realizada no planalto central para instalação (física/cidades)
da pessoa jurídica DF (e não da cidade Brasília) teria sido exorbitância e um
desvio de finalidade (ié, sediar a capital federal)
se a capital restar restrita ao Plano piloto e cercanias, o que ensejaria, em
tese, a retrocessão das áreas não utilizadas como capital federal. Em nenhum
dos textos constitucionais que tivemos há um despropósito técnico como o
inscrito no art.18, § 1º da CF/1988, ou o art. 6º, da Lei Orgânica do DF
(e não de Brasília) que diz ser “Brasília a capital da União” quando devia ter
mantido nossa tradição e a correção técnica, dizendo: “O Distrito Federal é capital
da União”, declaração essa expressa desde 1937 (art.2º, CF 1967/69) em que pese
verdade óbvia. Vale dizer: o DF só existe para ser capital federal, para
garantir base territorial segura à administração da federação.
Respondendo as
indagações iniciais: Brasília é só uma cidade (uma bela cidade!), a
pessoa jurídica e política que serve de centro político à União/Federação, ou
seja, de capital federal é o DF e não Brasília (que é o núcleo
urbano mais importante do DF, onde física/predialmente funciona o governo
federal). Aquele centro de compras está, assim, localizado certamente no
DF e condicionalmente em Brasília também, se for ela do tamanho do DF, não se
limitando ao Plano Piloto e cercanias (como parece entender a Universidade
Católica de Brasília). Taguatinga não é Brasília e a Capital federal é mais que
Brasília, é todo o DF. Creio que a esfinge, agora, está decifrada.È
hora, então, de uma boa adequação, pelo menos, nas placas indicativas no DF
para não deseducar o povo e complicar mais ainda a missão dos professores. (2001)
Notas
1 O art. 3º
da CF/1891 já determinava que “fica pertencendo a União, no planalto
central da República, uma zona de 14.400 Km2, que será oportunamente demarcada,
para nella estabelecer-se a
futura capital.” No § único desse mesmo artigo, dizia-se : “Effectuada
a mudança da capital, o actual Districto
Federal passará a constituir um Estado.” A CF/1946 também determinou
providencias para a transferencia da capital
federal, regulando que após a mudança o atual DF constituirá o Estado da
Guanabara (art. 4º, § 4º, Disposições Transitórias).
Informações Sobre o Autor
Luiz O. Amaral
advogado militante
ex-professor Direito na UnB e UDF