Sempre[1] existiu polêmica no tocante à possibilidade dos Auditores Fiscais do Trabalho, administrativamente, reconhecerem o vínculo de emprego[2].
Todavia, é comum a constatação em algumas empresas de pessoas prestando serviços, sem registro e sem anotação em CTPS, havendo, por conseguinte, à lavratura de auto de infração. A empresa autuada, por sua vez, pode alegar a inexistência de vínculo de emprego, por tratar-se de trabalhador eventual ou autônomo. A controvérsia existente refere-se à legalidade da conduta do AFT na lavratura do auto de infração, quando o vínculo empregatício é negado pelo administrado.
Para Abel Ferreira Lopes Filho (2008) o poder-dever da Administração Pública de fiscalizar o cumprimento das normas trabalhistas não se confunde com a atuação jurisdicional da Justiça do Trabalho. Pois, quando a existência de contrato de trabalho é objeto de controvérsia entre a Administração Pública e o particular, aquela pode e têm o dever de aplicar, no âmbito administrativo, as normas pertinentes. Resguardado o acesso ao Poder Judiciário, podendo o particular discutir, no âmbito jurisdicional, a legalidade do ato administrativo praticado.
Ainda, conforme o autor acima, a competência da Justiça do Trabalho para reconhecer a relação de emprego, prevista na Constituição da República, refere-se ao exercício de atividade jurisdicional. Como a atividade da Inspeção do Trabalho não é jurisdicional, este dispositivo a ela não se contrapõe.
Ao Auditor-Fiscal do Trabalho incumbe a fiscalização do fiel cumprimento das normas de proteção do trabalho, e detectando a existência de contrato de trabalho sem a observância de regras essenciais, cabe ao mesmo aplicar as sanções previstas em lei. Trata-se de atividade administrativa plenamente vinculada[3].
A realidade fática na execução do contrato de trabalho prevalece sobre o aspecto formal das condições nele avençadas. Assim, por exemplo, pouco importa se foi efetuado Termo de Compromisso de Estágio, se na realidade o trabalhado executado pelo estudante não está em conformidade com o estabelecido na Lei n˚ 11.788, de 25 de setembro de 2008[4]. Valerão no Direito do Trabalho muito mais os fatos do que a forma empregada pelas partes.
A lei citada, em seu art. 3˚, § 2˚, acima estabelece que – “O descumprimento de qualquer dos incisos deste artigo ou de qualquer obrigação contida no termo de compromisso caracteriza vínculo de emprego do educando com a parte concedente do estágio para todos os fins da legislação trabalhista e previdenciária”.
Assim, é premissa básica dentro do Direito do Trabalho que o contrato de emprego é caracterizado a partir do Plano Real e não do nome que porventura as partes dão ao contrato. Nos termos da lei, sempre será empregado aquele que trabalhe, habitual e pessoalmente, com subordinação, a benefício econômico de outrem e recebendo remuneração. Verificadas estas condições na rotina da relação mantida, estar-se-á diante de típico vínculo empregatício, não importando que o trabalhador tenha firmado contrato denominado de prestação de serviços.
Destaca-se que, a lavratura de auto de infração pelo Auditor Fiscal do Trabalho possui presunção relativa de legitimidade. Como bem elucida o saudoso HELY LOPES MEIRELLES (1997), em seu Direito Administrativo Brasileiro: “Os atos administrativos, qualquer que seja sua categoria ou espécie, nascem com a presunção de legitimidade, independentemente de norma legal que a estabeleça. Essa presunção decorre do princípio da legalidade da Administração, que, nos Estados de Direito, informa toda a atuação governamental. Além disso, a presunção de legitimidade dos atos administrativos responde a exigências de celeridade e segurança das atividades do Poder Público, que não poderia ficar na dependência da solução de impugnação dos administrados, quanto à legitimidade de seus atos, para só após dar-lhes execução”.
Ainda neste sentido assevera o autor que: “Não poderia a Administração bem desempenhar sua missão de autodefesa dos interesses sociais se, a todo momento, encontrando natural resistência do particular, tivesse que recorrer ao Judiciário para remover a oposição individual à atuação pública”.
Assevera Silvio Beltramelli (2008) – “Ora, não é difícil reparar que a atuação fiscal é uma atividade de constatação da regularidade da situação averiguada. Ao constatar que, na prática, há verdadeira relação de emprego ocultada por contrato civil de prestação de serviços, o Auditor Fiscal do Trabalho age como promotor da legalidade. Ele não sentencia, apenas constata. Se para tanto a fiscalização passar a depender de prévia autorização judicial, os empregadores não se furtarão a sempre indicar que mantêm formalmente contratos com pessoas jurídicas, instaurando controvérsia a ser levada ao Judiciário e impedindo o imediato ajustamento da realidade desvirtuada, sem falar no abarrotamento ainda maior dos tribunais e do prejuízo às ações do Ministério Público do Trabalho, sobremaneira calcadas nas constatações fiscais”.
Neste sentido:
“ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO À CLT. COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO DO TRABALHO. COOPERATIVAS DE TRABALHO. ATIVIDADE-FIM. VÍNCULO EMPREGATÍCIO. CERCEAMENTO DE DEFESA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. NORMAS DE SEGURANÇA. 1. No exercício das atribuições previstas nos artigos 626 e 628 da CLT, a fiscalização do Ministério do Trabalho pode desconsiderar contrato de terceirização e reconhecer o vínculo empregatício entre as partes, caso efetivamente constate que o contrato visa apenas burlar a legislação laboral e escapar das obrigações dela decorrentes. 2. Sendo incontroverso nos autos que a mão-de-obra cooperativada foi utilizada na atividade-fim da autora, qual seja, a construção civil, forçoso reconhecer a relação empregatícia entre os associados da cooperativa e a empresa tomadora do serviço (art. 3º da CLT), desconsiderando-se o contrato que visou desvirtuar e fraudar a aplicação da legislação trabalhista (art. 9º da CLT) e, por conseguinte, exigir-se o respectivo registro no livro de empregados, nos termos do art. 41 da CLT. 3. Não se cogita de cerceamento de defesa se a fiscalização do Ministério do Trabalho comprova ter entregue cópia do auto de infração ao preposto da empresa autuada na obra. Se, contudo, este não entrega o documento à empresa autuada, tal fato escapa à responsabilidade da fiscalização. 4. A prova testemunhal produzida nos autos, por si só, é insuficiente a infirmar a presunção de veracidade das alegações constantes do autos de infração, confirmadas em juízo.” (TRF 4. ª Região, 3.ª Turma, Apelação Cível 420917, Rel. Juiz Francisco Donizete Gomes, DJU de 20/11/2002).
Pontua José Pedro dos Reis (2008) que, a fiscalização do trabalho, no exercício de seu poder de polícia administrativa, pode verificar a existência do vínculo empregatício e ao praticar esse ato, não invade, em momento algum, a competência exclusiva do Judiciário Trabalhista de reconhecer judicialmente esse vínculo, pois são atuações distintas que coexistem no mundo laboral. A fiscalização trabalhista tem o objetivo de verificar se o empregador está cumprindo a legislação laboral através da observação in loco dos pressupostos objetivos da relação de emprego e, caso não esteja, tem o dever de ofício de autuar, instaurando aí o devido processo administrativo, enquanto que a Justiça Trabalhista, usando de seu Poder Jurisdicional, tem sua atuação vinculada à um processo judicial onde se discute uma lide a ela posta, ou seja, em um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida.
Em sentido diverso, o respeitável entendimento de JOSÉ ALBERTO COUTO MACIEL (Fiscal do trabalho não é juiz. In: Trabalho em Revista, ano 20, n. 244, nov. 2002. Curitiba: Decisório Trabalhista, p. 37-38): “Evidencia-se que somente à Justiça do Trabalho compete decidir pela existência da relação de emprego, não tendo as SRTEs competência para tanto, sendo incabível que emitam autos de infração e apliquem multas que dependam, diretamente, do reconhecimento do vínculo empregatício”.
Por derradeiro, conforme ensinamentos de José Pedro dos Reis (2008) o alcance social do trabalho realizado pela Inspeção Trabalhista é altamente relevante, pois ele contribui expressivamente para a formalização de vínculos dos trabalhadores encontrados em situação irregular, para a diminuição do ajuizamento de processos judiciais e para o resgate da cidadania de trabalhadores que se encontram à margem do Estado de Direito. As decisões judiciais que vêm negando a possibilidade da fiscalização trabalhista de verificar a existência do vínculo empregatício durante a ação fiscal transcendem aos interesses exclusivos das partes (empregador/autuado e União Federal) e atingem a toda sociedade trabalhadora. Por um raciocínio de razoabilidade, a verificação primeira da existência dos pressupostos objetivos da relação de emprego é o fundamento para a geração dos demais direitos.
Prevalecendo esse equivoco judicial, em hipótese, de os auditores fiscais do trabalho somente poderem fiscalizar onde existirem trabalhadores devidamente registrados em CTPS, ou que a Justiça do Trabalho tenha decidido que realmente há vínculo de emprego após ação judicial transitada em julgado, o que seria um contra-senso, pois o exame de todo o arcabouço normativo aponta que a atuação dos auditores fiscais do trabalho está baseada primeiramente na constatação do vínculo empregatício. Conclui-se, portanto, que a fiscalização do trabalho tem a capacidade para verificar a existência do vínculo de emprego quando constatados os elementos fáticos: prestação de serviços de natureza não eventual, com pessoalidade e subordinação.
Na prática, relata Lílian Carlota Rezende (2008), que a configuração da relação de emprego é quase intuitiva, e considera mais a situação fática encontrada do que as declarações de empregados e empregadores, ainda que estas possam ser analisadas. De registrar-se que as declarações do empregador ao Auditor-Fiscal são por vezes, viciadas, por motivos óbvios, e as do empregado, na condição de hipossuficiente, às vezes tem valor relativo, uma vez que, pode encontrar-se sob coação econômica ou pelo temor em desagradar seu patrão, além de outros motivos escusos como não falar a verdade por estar recebendo seguro-desemprego, ou algum benefício do Instituto de Previdência (INSS). Outros omitem, negam ou falseiam as informações simplesmente para não pagar os impostos e contribuições sociais inerentes ao contrato de trabalho.
Continua Rezende (2008) – Outro aspecto que deve ser analisado na atualidade são as relações estabelecidas sob outras denominações, para mascarar uma verdadeira relação de emprego: criação de pessoa jurídica para prestar serviços, estágio, cooperativa, prestação de serviço sob forma autônoma e outros. Para casos que tais o Auditor precisa, utilizando-se do artigo 9o[5] da CLT, combater a intenção fraudulenta dos sujeitos envolvidos e demonstrar que esta relação nova foi criada com o objetivo de fraudar a verdadeira relação subjacente que é a de emprego.
Para tanto o Auditor Fiscal do Trabalho fará uso da mesma construção jurídico-doutrinária a que estão vinculados todos perante a lei: estabelecer se na relação encontrada estão presentes os requisitos do artigo 3o[6] da CLT: subordinação, não eventualidade, pessoalidade e onerosidade. (negritamos)
Após desenvolver, e demonstrar, este processo intelectual de subsunção jurídica, pelo enquadramento da situação fática encontrada à previsão normativa, o Auditor Fiscal do Trabalho lavra um termo de autuação, que, somente após um Processo Administrativo onde resta assegurada a ampla defesa, é aplicada a penalidade.
A atuação do Auditor-Fiscal, aqui examinada é de uma relação de subordinação entre o administrado-empregador e a Administração Pública. O auto de infração não é um instrumento executório para os interesses do empregado na Justiça do Trabalho, podendo, todavia, ser usado como elemento de prova (Lílian Carlota Rezende, 2008).
Em todo este processo, sempre está resguardado ao administrado (fiscalizado e autuado) pleitear em Juízo direito seu que entenda desrespeitado, pelo pleno controle do Judiciário àquele que sofrer lesão ou ameaça de lesão (art. 5o, XXXV da CF/88).
Informações Sobre o Autor
Jair Teixeira dos Reis
Professor Universitário. Auditor Fiscal do Trabalho. Autor das seguintes obras: Manual de Rescisão de Contrato de Trabalho. 4 ed. Editora LTr, 2011 e Manual Prático de Direito do Trabalho. 3 ed. Editora LTr, 2011.