A empresa e sua função social

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Resumo: Pretende-se delinear os aspectos jurídicos da empresa econômica, cujo substrato econômico consiste nos fatores da produção realizado pelo empresário visando a obtenção de lucro e correndo o risco da atividade, cuja função social da propriedade – dinâmica – no moderno mundo capitalista, se revela no capitalismo dos fundos de pensão, isto é no capitalismo sem capitalistas.


1. A empresa e sua função social


1.1. Aspectos jurídicos da empresa econômica


O essencial na base de todas as discussões doutrinárias relativas às diversas posições dos autores e de suas contribuições jurídicas é a transposição para o plano jurídico do fenômeno socioeconômico denominado empresa.


Na base dessas discussões doutrinárias está a idéia (ou noção, conceito, concepção etc.) que se tem desse fenômeno econômico-social; pois, necessariamente a questão passa pela noção econômica, qual seja, a idéia de organização dos fatores de produção, ou a organização da atividade econômica; ainda pode-se verificar sob a ótica sociológica, tratar-se a empresa como um núcleo social vivo e dinâmico, hierarquizado e com uma idéia diretriz (célula social etc.), congregando apenas pessoas, trabalhadores e empresário (comunidade de trabalho), ou por uma noção complexa envolvendo a organização dos elementos pessoais e bens (organismo), em geral qualificada como instituição, para qual se chega a advogar a própria personalização [1].


O termo “empresa” surgiu na linguagem jurídica nos arts. 632 e 633 do Código Comercial francês de 1807. A empresa em França era considerada como locação de serviços ou como organização de capital e trabalho para as finalidades previstas nos artigos acima referidos [2].


Posteriormente, o Código Civil italiano de 1942 [3], nos arts. 2082 [4] e 2195, nº 2 [5], teria adotado uma concepção jurídica de “empresa”. A técnica legislativa adotada na Itália, conhecida como “método da economia”, entendia que as formas jurídicas deveriam corresponder à substância econômica dos fenômenos regulados pelo direito. Os conceitos legislativos de “empresa” e de “empresário” foram postos enfaticamente: a empresa como atividade organizada para a produção, e o empresário como organizador da produção.


Há na concepção da empresa um substrato econômico consistente na organização dos fatores da produção (terra, capital, trabalho e hoje tecnologia) realizada pelo empresário, no sentido da atividade empreendedora, visando à obtenção de lucro e correndo o risco da atividade.


Os juristas apreenderam o conteúdo e a dimensão do fenômeno socioeconômico da empresa e procuraram valorá-lo juridicamente, explicando-se as variações doutrinárias sob o ponto de vista jurídico, pois diversas foram as posições jurídicas tomadas perante o tema, concluindo-se pela uniformidade na visão do fenômeno como unidade organizacional.


Essa visão unitária da empresa, acolhida pelo Código Civil italiano, abarcando seus quatro aspectos relevantes do ponto de vista jurídico, o empresário, a atividade, o estabelecimento e a organização do trabalho – influenciou decisivamente a compreensão jurídica do fenômeno econômico-social.


1.2. A função social [6] da empresa


A busca de uma fórmula para obtenção dos melhores resultados econômicos nos conduz à constatação de que os grandes fatores de sucesso empresarial se encontram na criação de uma rede suficientemente grande para ocupação do mercado (marketing e merchandising) e a criação de uma estrutura gerencial adequadamente hierarquizada. Tal tipo de organização só pode existir na grande empresa.


A evolução da grande empresa, na economia moderna, percorreu três etapas, das quais só a primeira acha-se hoje ultrapassada: organização unitária com divisões ou departamentos internos, o grupo societário e a rede empresarial [7].


A estrutura organizacional das empresas multinacionais era de um grupo societário de subordinação, com uma sociedade controladora e várias controladas. Com o desenvolvimento do fenômeno dito de “terceirização”, tem-se manifestado uma preferência marcante pela adoção do esquema dito “reticular”, em que a vinculação entre unidades empresariais já não se faz em termos de participação societária de capital, mas adota antes a forma de uma rede de contratos estáveis.


Sob o aspecto jurídico a novidade está no fato de que esses grupos societários conservam uma estrutura de controle societário externo, sob a forma contratual, com  abandono da técnica de participação acionária. “Na rede grupal, a sociedade controladora, denominada broker, assume exclusivamente as funções de governo de um conjunto de outras empresas fornecedoras de componentes ou matérias-primas, fabricadoras dos produtos acabados, pesquisadoras de novos produtos e novos mercados, ou distribuidoras em diferentes mercados nacionais. É uma holding pura, sem participação no capital das controladas” [8].


Algumas universidades públicas brasileiras (USP, UFSCAR, UNESP, etc.) pesquisam novos produtos, através de convênios mantidos com iniciativa privada, de modo a favorecer a grande empresa (multinacional e nacional) atendendo ao mercado nacional e internacional, portanto, inserindo-se nessa rede grupal.


O substantivo functio, etimologicamente deriva do latim functìo, ónis ‘trabalho, execução, término de desempenho’, ligado ao v. dep. lat. fungor, fèris, functus sum, fungi ‘cumprir, exercer, desempenhar’ [9].


Usa-se o termo função para designar a finalidade legal de um instituto jurídico, ou seja, o bem ou valor em razão do qual existe, segundo a lei, esse conjunto estruturado de normas.


Esse conceito abstrato de função é sempre o interesse alheio, e não o do próprio titular do poder, mais precisamente o poder-dever que conduz a atividade empresarial, pois a atividade da empresa é uma atividade organizada que implica na organização do trabalho alheio; e, é de se reconhecer, no entanto, a existência de interesses egoísticos de determinadas pessoas (empresário e trabalhador), porém a atividade empresarial apresenta um interesse público e para isso a existência de uma disciplina jurídica da “atividade” e da disciplina de intervenção na atividade privada, que caracteriza o direito moderno.


1.2.1. Modernas teorias sobre a função social


O conceito de função social não faz a distinção necessária entre a definição de um direito e a subordinação de um bem. Os bens de uso pessoal do indivíduo, obviamente, não têm função social, sob pena de destruir-se o próprio direito subjetivo de ser proprietário destes bens, tendo em vista a impossibilidade de acumular ao mesmo tempo um direito com o atendimento de uma função social.


Também, verifica-se a dificuldade de determinar o conteúdo dos deveres positivos, decorrentes da função social do instituto jurídico. Porém, “sob o ponto de vista jurídico, o exercício de acordo com o bem comum é insuficiente para a caracterização da função social”[10].


As modernas idéias sobre a função social procuram responder a essas contradições existentes no conceito de função social. A doutrina tradicional faz a distinção entre bens móveis e imóveis. Esta distinção teria origem medieval e refletiria a organização vigente na Europa naquela época, em que os bens imóveis conferiam poder político. A classificação mais importante atualmente é a de bens de consumo e bens de produção, que se finda não na sua natureza ou consistência, mas na destinação que se lhes dê [11]. Apenas os bens de produção deveriam exercer uma função social, que consiste no poder-dever de vincular a coisa a um objetivo determinado pelo interesse coletivo [12].


Essa concepção é mais razoável. Os bens de produção são as fontes de riqueza de uma sociedade, enquanto os bens de consumo são destinados para o uso do seu proprietário. Não há como exigir desses bens o atendimento de função social. Não produzem riquezas. Além disso, segundo a psicologia moderna, os bens de uma pessoa constituem a sua identidade.


A função social da propriedade coincide com a função social da empresa. “Aí, incidindo pronunciadamente sobre a propriedade dos bens de produção, é que se realiza a função social da propriedade. Por isso se expressa, em regra, já que os bens de produção são postos em dinamismo, no capitalismo, em regime de empresa, como função social da empresa” [13].


Trata-se aqui da denominada análise institucional do direito, pois o direito nada mais é que um instrumento do controle social. Ligam diretamente “a função social da empresa com sua qualificação como instituição e ainda de certa forma destacam a existência do que seria um interesse próprio da empresa, superior e diverso dos interesses egoísticos que nela se congregam, com especial referência à empresa como núcleo social, congregando trabalhadores, e o próprio empresário, cujo papel seria o de servir à empresa” [14].


“É característico dos grupos sociais estruturados a institucionalização da reação aos desvios como conseqüência da manifestação do fenômeno do poder. (…) A concepção do direito como técnica de controle social caracterizada justamente por um alto grau de institucionalização da reação aos comportamentos desviantes, nos permite distinguir o direito propriamente dito dos preceitos morais, de um lado, e das regras do costume, do outro” [15].


O direito se evolve, às vezes, lenta, mas continuamente; os novos institutos não surgem de improviso, mas se destacam, às vezes, aos poucos, do tronco de velhos institutos que, sem cessar, se renovam, preenchendo novas funções. É através dessa contínua adaptação de velhos institutos a novas funções que o direito, às vezes, se vai desenvolvendo; não raro, ostentando, então, a história do seu passado, nas formas, que permanecem idênticas, a despeito da renovação das funções [16].


A função jurídica pode ser tomada como atividade dirigida a um fim. No tocante à posição da empresa no ambiente socioeconômico, como agente da produção e circulação de bens ou serviços para o mercado, numa economia de massa, tendo sido identificados, em conseqüência, os interesses que nela convergem, chega-se à valoração dos interesses que devem ser tutelados pela norma.


Nesse sentido, “foi considerando a empresa como tendo a função de produzir ou fazer circular bens e serviços numa economia de massa em que impera o consumismo, que se deu relevo à empresa, como atividade funcional, o que desloca seu titular do âmbito estrito dos direitos subjetivos, para encaminhá-lo para o direito-função ou poder-dever, fazendo-se presente sua responsabilidade para com os que se relacionam com a empresa (trabalhadores, credores, consumidores, o Estado, a comunidade etc.), no que se tentou de certa forma, dar conteúdo às formulações mais genéricas de função social (bem público, interesse geral etc.). Procurou-se, pois, obter, tecnicamente, maior precisão, levando-se em conta que a atividade desenvolvida pelo empresário tem como fim a realização de interesses que ultrapassam aqueles egoísticos do agente, e portanto gera um poder-dever do sujeito da atividade funcional” [17].


1.2.2. A função social da propriedade


Para se discorrer sobre a função social da empresa é necessário refletir preliminarmente sobre a função social da propriedade, da qual aquela deriva.


Para conceituar propriedade e domínio, pode-se afirmar: em sentido amplíssimo, “propriedade é o domínio ou qualquer direito patrimonial. Tal conceito desborda o direito das coisas. O crédito é propriedade. Em sentido amplo, propriedade é todo direito irradiado em virtude de ter incidido regra de direito das coisas. Em Sentido quase coincidente, é todo direito sobre as coisas corpóreas e a propriedade literária, científica, artística e industria. Em sentido estritíssimo, é só o domínio” [18].


Hoje não há mais que se falar em propriedade no mesmo sentido e alcance tradicional. A propriedade pode ser estudada em dois aspectos, o estrutural e o funcional.


A dogmática tradicional preocupa-se somente com a estrutura do direito subjetivo proprietário – em seu aspecto estático – ou seja, os poderes do titular do domínio quais sejam: 1) O aspecto interno – cujo conteúdo é o econômico que é composto pelas faculdades de usar, fruir e dispor; e 2) O aspecto externo – o jurídico que se traduz na faculdade de exclusão das ingerências alheias.


Em seu aspecto dinâmico, mais polêmico, alvo de disputa ideológica, pode-se analisar qual a função que a propriedade desempenha no mundo jurídico econômico a chamada função social da propriedade. Propriedade esta não mais com os contornos dicotômicos de bens móveis e imóveis.


Tal classificação tem origens medievais e constituem um reflexo da organização política vigente na Europa, desde a queda do Império Romano do Ocidente até o surgimento do Estado moderno, nos albores do Renascimento. “As res mobilis eram consideradas vilis porque a sua propriedade não conferia poder político, ao contrário da propriedade do solo rural” [19].


Com a expansão do sistema capitalista essa posição de importância relativa entre as duas espécies de bens (móveis e imóveis) reverteu-se; inicialmente em decorrência da expansão do comércio, e da economia monetária, posteriormente em decorrência da concentração das propriedades na mão de capitalistas urbanos, por força das execuções hipotecárias.


“A riqueza mobiliária, constituída pela propriedade de moedas e metais preciosos, serviu de base à instauração do sistema de crédito que, em pouco tempo, avassalou a economia rural e até mesmo o funcionamento da organização estatal incipiente. Fundos rurais de exploração decadente passaram à propriedade de capitalistas urbanos, por força das execuções hipotecárias. Inúmeras comunas e o próprio Estado central, em vários países, recorreram largamente aos empréstimos bancários, pela ineficiência do sistema tradicional de arrematação privada das rendas públicas. Ao mesmo tempo, a criação dos papéis comerciais, dos título-valores e dos diferentes sistemas de contas mercantis completou o instrumental necessário à eclosão e ao desenvolvimento da revolução industrial” [20].


1.2.2.1. Função social da propriedade e dos bens de produção


O texto Constitucional brasileiro de 1988 dá garantia de inviolabilidade da propriedade (art 5º, inciso XXII), porém dispõe que a mesma atenderá a sua função social (5º, inciso XXIII). Pelo texto o constituinte inseriu a propriedade no rol dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo e da coletividade.


A vida social passou a ser orientada para a atividade de produção e distribuição de bens ou de prestação de serviços em massa, conjugada ao consumo padronizado, tornando-se indispensável outra distinção jurídica entre os bens, qual seja: bens de produção e bens de consumo.


Os bens de produção: são móveis ou imóveis, indiferentemente. Não somente a terra, mas também o dinheiro, sob a forma de moeda ou de crédito, podem ser empregados como capital produtivo.


Os bens de consumo: também, de igual modo, os bens destinados ao mercado podem ser empregados como capital produtivo, isto é, as mercadorias, pois a atividade produtiva é reconhecida, na análise econômica, não pela criação de coisas materiais, mas pela criação de valor.


“Mas as mercadorias somente se consideram bens de produção enquanto englobadas na universalidade do fundo de comércio; uma vez destacadas dele, ao final do ciclo distributivo, ou elas se incorporam a uma atividade industrial, tornando-se insumos de produção, ou passam à categoria de bens de consumo. Nesse último conceito incluem-se tanto os bens cuja utilidade é obtida pela sua concomitante extinção, quanto aqueles que se destinam ao uso, sem destruição necessária” [21].


1.2.2.2. A funcionalidade das empresas


Deve-se notar, no entanto, que a classificação dos bens em produtivos ou de consumo não se funda em sua natureza ou consistência mas na destinação que se lhe dê. A função que as coisas exercem na vida social é independente da sua estrutura interna. A função assinada a determinado bem no ciclo econômico – como instrumento de produção ou como coisa consumível – pode ser realizada não necessariamente por um só tipo de relação jurídica, mas por vários.


A mesma máquina, componente do capital técnico numa empresa, pode ser objeto de propriedade, ou ser possuída em razão de financiamento com alienação fiduciária, de arrendamento mercantil, ou de comodato. “Importa, pois, distinguir a função econômica de uma coisa da função econômica da relação jurídica que tem essa coisa por objeto, ou a função econômica do negócio jurídico que estabelece essa relação” [22].


O conceito constitucional de propriedade é bem mais amplo que o tradicional do direito civil. Inclui-se na proteção constitucional, também, a propriedade de outros bens patrimoniais. Como conseqüência, dentre tal proteção se situa também o poder de controle empresarial, “o qual não pode ser qualificado como um ius in re[23], há de ser incluído na abrangência do conceito constitucional de propriedade” [24]


Na lei de sociedades por ações (Lei nº 6.404/76, de 15/12/1976), determina-se (art. 154) que: “O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa”.


Já no artigo 116, parágrafo único, dispõe esta mesma lei que: “O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”.


No exercício da atividade empresarial, reconhece a lei que devem ser respeitados os interesses internos e externos à atividade empresarial, ou seja, os interesses dos capitalistas e trabalhadores, mas também os interesses da “comunidade” em que ela atua.


Porém, há que delinear adequadamente quais os reais contornos desses deveres e responsabilidades do acionista controlador. Estabelece o art. 170 da Constituição brasileira de 1988 que: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência;  V – defesa do consumidor;  VI – defesa do meio ambiente; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”.


A livre iniciativa, aqui entendida como a liberdade de criação empresarial ou de livre acesso ao mercado, somente é protegida enquanto favorece o desenvolvimento nacional e a justiça social. “Trata-se, portanto de uma liberdade-meio ou liberdade condicional” [25].


Tal dispositivo constitucional apresenta-se como norma programática. Sua observância vincula não apenas o Estado, mas a todos, órgãos do Poder público ou pessoas de direito privado. Este e outros dispositivos fundamentais da ordem econômica e social do país, obrigam as empresas ao seu cumprimento visto que são os principais agentes da vida econômica.


Há, no entanto, que se identificar e classificar as empresas segundo a natureza e do interesse e reconhecida função social. Algumas atividades empresariais não podem ser encetadas sem que preceda de uma autorização do Poder Público, tendo em vista a relevância do empreendimento no que tange ao interesse nacional – econômico, social ou político. É o caso das instituições financeiras, dos agentes do mercado e capitais, e das sociedades seguradoras; das empresas de armamentos e das localizadas na faixa de fronteira, das empresas jornalísticas ou de rádio-telecomunicação. A lei reconhece que as empresas atuantes nesses setores exercem autêntica função social. 


Função, em direito “é um poder de agir sobre a esfera jurídica alheia, no interesse de outrem, jamais em proveito do próprio titular. A consideração dos objetivos legais é, portanto, decisiva nessa matéria, como legitimação do poder. A ilicitude, aí, não advém apenas das irregularidades formais, mas também do desvio de finalidade, caracterizando autentica disfunção” [26].


1.2.2.3. Análise funcional  


Tanto os bens, quanto as relações jurídicas ou negócios jurídicos podem ter varias funções ou utilidades na vida social. “Para os negócios jurídicos em muitos casos a lei lhes fixa um objetivo ou função  determinada – a sua causa típica -, sem proibir aos particulares o emprego da mesma técnica negocial para a consecução de outras finalidades. É o fenômeno dos chamados negócios indiretos” [27]. O mesmo se deve dizer das relações jurídicas.


A propriedade privada sempre foi justificada, ao longo da história econômica e da evolução do pensamento ocidental sobre a vida econômica, como modo de proteger o indivíduo e sua família contra as necessidades materiais, ou seja, como forma de prover a sua subsistência.


Na civilização contemporânea, a propriedade privada deixou de ser o único, senão o melhor meio de garantia da subsistência individual ou familiar. Em seu lugar surgiram como preocupações primordiais a garantia de emprego e salário justo e as prestações sociais devidas ou garantidas pelo Estado, como a previdência contra os riscos sociais, a educação e a formação profissional, a habitação, o transporte, saúde e saneamento básico, o lazer e mais recentemente a proteção do ambiente.


Fenômeno análogo, “é observado em matéria de responsabilidade civil. Sua função essencial, a partir do séc. XIX, tem sido a reparação dos danos. Hoje, porém, essa função reparatória é exercida, com muito mais amplitude e eficiência, pelo sistema segurador, privado ou social” [28].


Não é difícil perceber, nessa ordem de considerações, que a “eficiência da propriedade, como técnica de realização dos interesses individuais e familiares, sempre ligada à estrutura da relação real, o caráter absoluto do direito exercido sobre as coisas adversus omnes. Na medida em que esse caráter absoluto pode ser conferido a outros direitos, eles passam a servir para o exercício da mesma função atribuída à propriedade” [29].


1.2.2.4. O sentido antigo de propriedade  


A propriedade, compreendida como a potestade individual excludente da ingerência de outrem sobre um bem, está fundamentalmente ligada aos meios de produção. No primitivismo dos primeiros agrupamentos humanos não há lugar para a propriedade como a que se conhece hoje senão sob a forma rudimentar de domínio sobre um mínimo de bens individuais de uso pessoal.


Nas civilizações mais antigas a propriedade era comunitária com um domínio coletivo sobre as coisas úteis, ficando a propriedade privada reservada para objetos de uso exclusivamente pessoal. A terra não era a rigor objeto de apropriação, dado o caráter nômade das tribos primitivas.


Somente com incremento da produção agrícola, e a “revolução dos metais” possibilitou-se saltos evolutivos que permitiram a criação de condições que levaram à evolução do conceito de propriedade. A noção de propriedade será firmada especialmente na Grécia e em Roma, fundada em um modelo com predominância ainda da propriedade comunitária, embora restrita à das gens e à família.


Ao indivíduo cabia uma pequena promoção de terra, de resto inalienável. A propriedade individual é atingida por um caminho que passa pelo fortalecimento da propriedade familiar que se sobrepõe à propriedade coletiva da cidade e gradativamente avulta no seio familiar a figura do pater familias.


Com a queda do modelo gentílico consolidou-se uma propriedade realmente individual, porém não se pode falar que fosse absoluta, pois se submetia a certas restrições como as decorrentes de vizinhança.


Acompanhando a queda do Império Romano, segue-se o modelo feudal cuja principal característica reside na concentração da propriedade e na exploração indireta da terra. A propriedade concentra-se em mãos de poucos senhores feudais que permitiam a seus servos explorarem as terras em troca de vassalagem. Com a unificação das nações européias e o absolutismo monárquico surge um terceiro componente corporificado no poder do rei, que é o senhor absoluto nos limites do reino. É de se observar que o poder que exerce é mais formal do que concreto já que, no feudo, é o senhor feudal titular de poder absoluto.


O Código de Napoleão e todos os códigos da família jurídica romano-germânica tinham a propriedade uma concepção muito mais estreita do que as antigas concepções.


Para TEIXEIRA DE FREITAS, por exemplo, “a idéia geral da propriedade é ampla: ela compreende a universalidade dos objetos exteriores, corpóreos e incorpóreos, que constituem a fortuna ou patrimônio de cada um. Fazem parte da  propriedade as cousas materiais que nos pertencem de um modo mais ou menos completo, como os fatos ou prestações que se nos devem e que, à semelhança das cousas materiais, têm um valor apreciável, promiscuamente representado pela moeda” (Consolidação das Leis Civis, Introdução). A propriedade, portanto, diferiria do domínio, que “é a soma de todos os direitos possíveis que pertencem ao proprietário sobre sua cousa, quais são os da posse, uso e gozo e de livre disposição” (ibidem). Essa concepção  “é idêntica à do direito anglo-saxônico, em que property é o gênero e ownership uma de suas espécies” [30].


1.2.2.5. Fundamento sob a ótica constitucional  


O conceito constitucional de propriedade é mais lato do que aquele de que se serve o direito privado. A Lei Maior estendeu a mesma proteção, que, no início, só se conferia à relação do homem com as coisas, à titularidade da exploração de inventos e criações artísticas de obras literárias e até mesmo a direitos em geral que hoje não o são à medida que haja uma devida indenização da sua expressão econômica.


A propriedade tornou-se, portanto, o anteparo constitucional entre o domínio privado e o público. Neste ponto reside a essência da proteção constitucional: impedir que o Estado, por medida genérica ou abstrata, evite a apropriação particular dos bens econômicos ou, já tendo esta ocorrido, venha a sacrificá-la mediante um processo de confisco.


No nosso sistema, a propriedade privada tanto colabora para a expressão da individualidade, quando incidente sobre meios de produção, quanto sobre bens de consumo, daí por que no nosso sistema constitucional a propriedade estar simultaneamente vinculada ao regime das liberdades pessoais que estatui como também à própria ordem econômica.


1.2.2.6. Propriedade e poder de controle


A faculdade de usar, gozar, e dispor da coisa, especificamente no tocante aos bens de produção, dada ao proprietário, já foi “profusamente confundida com o poder de controle empresarial” [31].


A empresa – ou seja, a organização de capital, trabalho e tecnologia – instrumentos de produção,  atividade econômica e produtiva, a partir do momento em que é criada como organização do trabalho alheiro, já não pode se confundir o direito absoluto sobre o capital, com o poder de organização e comando das forças produtivas.


A constituição de empresas sob a forma de pessoas jurídicas, aliás, separa nitidamente o acervo empresarial do patrimônio individual dos sócios. Este, de proprietários passam à posição jurídica de participantes dos resultados de uma exploração patrimonial autônoma.


Os critérios diferenciadores dos patrimônios foram analisados pela doutrina, trata-se das universalidades de fato e as de direito, cujo traço distintivo essencial reside em que a universitas juris é um conjunto de direitos (relações ativas e passivas), ao passo que a universitas facti é um conjunto de objetos de direito [32]


À medida que a empresa cresce e se torna mais complexa, ainda mais se acentua o destaque entre empresários e capitalistas. “O último grande bastião da propriedade produtiva individual – a agricultura – vem se enfraquecendo dramaticamente em proporção à produção total dos Estados Unidos, e mesmo na agricultura as sociedades anônimas têm crescido” [33]


Nas grandes corporations norte-americanas, ou nas macro-empresas nipônicas, a participação acionária diluiu-se a tal ponto que o maior acionista, ou conjunto de maiores acionistas, não chega a deter 10% do capital social.


Tem-se que observar, no entanto, que toda organização empresarial, analogamente à sociedade política, é dotada de um poder ativo, cujo comando decisório está enucleado em alguns diretores, ou ostensivamente no officer (CEO), bem como são dotadas de órgãos de administração e fiscalizador, que são, respectivamente, o conselho de administração e o fiscal.


Tal esquema estrutural se apresenta de forma análoga nas empresas públicas, com a única variante de que o seu órgão autorizador e fiscalizador pode se encontrar fora da empresa e não dentro dela.


Na grande corporação os proprietários legais, os acionistas, não estão mais aptos ou dispostos a controlar. Gerências profissionais exercem o controle sem serem proprietários [34].


Pela importância que reveste o assunto, deve-se, ao menos, mencionar que há uma tendência no sentido do capitalismo sem capitalista. Tal fenômeno se faz notar, quando se observa a influência que os fundos de pensão vêm exercendo na economia, em especial, nas sociedades anônimas que têm seus ativos negociados em bolsa de valores . “Nunca houve antes importâncias tão grandes como aquelas atualmente nas mãos de investidores institucionais, principalmente fundos de pensão, em países desenvolvidos” [35].


A relevância do assunto não se encontra na propriedade dos fundos de pensão, porém na gerência dos mesmos. “O capitalismo dos fundos de pensão irá se tornar o modo universal de propriedade nos países desenvolvidos; a própria estrutura etária deles torna essa prática inevitável. Os fundos de pensão são um fenômeno curioso e sem dúvida paradoxal. São “investidores” que controlam enormes capitais e seu investimento. Mas nem os gerentes que o administram, nem seus proprietários, são “capitalistas”. O capitalismo dos fundos de pensão é capitalismo sem os capitalistas” [36].


Aqui no Brasil, de acordo com os últimos dados oficiais da Associação Brasileira das Entidades de Previdência Fechada (Abrapp), os fundos de pensão aumentaram sua participação no Produto Interno Bruto (PIB) nacional de 15,8%, no fim de 2002, para 18,00% no final de 2007.


Assim, não se trata da poder do proprietário, porém, do controle da propriedade, melhor dizendo, da função social do controle da propriedade, por fim do controle social (gerencial) da propriedade, ou seja, a governança corporativa.


1.2.2.7. Função social da propriedade


Atinge-se, agora, o ponto central da análise, qual seja, a questão da função social da propriedade de bens de produção diante da importância que o controle gerencial atinge nas empresas.


Cumpre, preliminarmente, definir os conceitos e evitar os contra-sensos. Quando se fala em função social da propriedade não se indicam as restrições ao uso e gozo dos bens próprios (art. 1.228 do CC). Tais restrições seriam limites negativos aos direitos do proprietário.


A noção de função social da propriedade relaciona-se com a capacidade produtiva da propriedade, ou seja sua função produtiva, trata-se do poder de dar ao objeto da propriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo objetivo.


Nesse sentido funcional é que se admite que a propriedade seja dividida em propriedade de consumo e propriedade produtiva; “com respeito à propriedade produtiva, a proprietas agora está sujeita a uma determinação global, política, que o tipo de civilização do Estado americano decidiu adotar democraticamente. Trata-se de um processo em andamento, que ainda não se completou” [37].


O adjetivo social mostra que esse objetivo corresponde ao interesse coletivo e não ao interesse próprio do dominus; o que não significa que não possa haver harmonização entre um e outro. Mas, de qualquer modo, essa função social da propriedade corresponde a um  poder-dever do proprietário sancionável pela ordem jurídica, ou seja, um interesse coletivo [38].


E mais, “a idéia de função social da propriedade entrou a fazer parte do Direito Positivo com a promulgação da primeira Constituição Republicana Alemã, em Weimar, em 1919. A disposição do art. 153 desse texto constitucional foi retomada ipsis verbis pela Constituição da República Federal da Alemanha, de 1949 (art. 14, 2ª alínea): “A propriedade obriga. Seu uso deve, ao mesmo tempo, servir o interesse da coletividade”, (Eigentum verpflichtet, Sein Gebrauch soll  augleich dem Wohle der Allegemeinheit dienen)” [39].


Tal norma tem, indubitavelmente, o sentido de uma “imposição de deveres positivos ao proprietário. O verbo verpflichten (obrigar), conjugado a dienen (servir) na 2ª parte do dispositivo, indica com clareza que não se trata aí de simples restrições à ação do proprietário” [40].


Tal doutrina, no Brasil, apenas a partir de 1934 é que se começou a ter os seus primeiro contornos. A carta de 1937, num estranho retrocesso, silenciou a respeito do assunto, felizmente a Constituição de 1946 o retomou e condicionou a utilização da propriedade ao bem-estar social.


Constituição de 1934 em seu art. 17 estabelecia: “É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior”.


Enquanto a Constituição de 1937 em seu art. 122, inciso 14 assegurava: “o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia”. E dispunha ainda, que o seu conteúdo e os seus limites seriam definidos nas leis que lhe regularem o exercício”.


E, finalmente a Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de janeiro de 1969 consagraram este princípio da forma mais ampla, dispondo que a ordem econômica e social têm por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base no princípio que menciona, dentre os quais se destaca o da função social.


Tal mandamento constitucional, e a idéia da função social passou para a legislação ordinária, encontrada no Estatuto da Terra – Lei 4.504, de 30.11.1964 – estabeleceu, no artigo 12, que “à propriedade da terra cabe intrinsecamente uma função social e seu uso é condicionado ao bem estar coletivo previsto na Constituição Federal e caracterizado nesta lei”.


“A profunda repercussão social que alcançou o fenômeno da funcionalidade condicionadora do uso da propriedade mereceu a atenção dos juristas e legisladores contemporâneos, levando-os a compreender – como o próprio Duguit já havia previsto – que a qualidade de função social, não a possui apenas a propriedade, senão, também se projeta ela sobre outros institutos do Direito Privado” [41].     


Deve-se atentar, no entanto, para a deficiência técnica normativa e pela imprecisão do termo função social da propriedade. Pois, “no contexto do amplo debate político e ideológico da atualidade, defender a função social da propriedade, sem especificações maiores, pode ser e tem sido um argumento valioso para a sustentação do status quo social em matéria de regime agrário e de exploração empresarial capitalista” [42].


Assim, no avanço Constitucional da propriedade, é preciso estabelecer as distinções e precisões fundamentais.


Pode-se afirmar, correlacionando Direitos Humanos com o Direito de Propriedade, que ela (a propriedade) “é sempre um direito-meio e não um direito-fim. Ela não é garantida em si mesma, mas como instrumento de proteção de valores fundamentais” [43].


Nesse sentido “a função social da propriedade não se confunde com as restrições legais ao uso e gozo dos bens próprios; em se tratando de bens de produção, o poder-dever do proprietário de dar à coisa sua destinação compatível com o interesse da coletividade transmuda-se, quando tais bens são incorporados a uma exploração empresarial, em poder-dever do titular do controle de dirigir a empresa para a realização dos interesses coletivos” [44]


A seguir analisa-se esse poder-dever do titular de controle da empresa frente aos interesses da coletividade.


1.2.2.8. Destinação social dos bens produtivos  


Já se viu que a classificação dos bens em produtivos e bens de consumo não se funda em sua natureza ou consistência, mas na destinação que se lhes dê.


Ora, fixar essa destinação ou função dos bens, no ciclo econômico, não é tarefa que deva ficar inteiramente submetida ao princípio da autonomia privada.


Nos postulados da economia clássica, se propunha uma relação entre a iniciativa privada e a prosperidade geral: “a prosperidade é resultado natural da livre iniciativa dos empresários privados e terá um efeito tanto mais seguro quanto maior for a garantia de liberdade e iniciativa”.


1.2.2.9. Deveres sociais do controlador de empresas  


O controlador das empresas tem um poder-dever insculpido na exploração empresarial cujo escopo da função social conduzem-no aos ditames não mais com as características egoística e única do lucro, mas também, com os princípios da ordem econômica constitucional, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. 


Importa reafirmar aqui que poder de controle não se confunde com propriedade. Não é um direito real, portanto, de caráter absoluto, incidindo  sobre uma coisa, mas um poder de organização e de direção, envolvendo pessoas e coisas. A causa dessa persistente confusão conceitual está, sem dúvida, no fato de que, em regime capitalista, o poder de controle empresarial funda-se na propriedade do capital ou dos títulos-valores representativos do capital da empresa.


A Lei de Sociedades por Ações, de 1976 atribuiu às companhias uma função social. Em seu art. 116, parágrafo único, declara que “o acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”.


No art, 177, § 1º, “a”, caracterizou como modalidade de abuso do poder de controle o fato de o controlador, “orientar a companhia para fim (…) lesivo ao interesse nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade, brasileira ou estrangeira, em prejuízo (…) da economia nacional”. 


Tais disposições permanecem inócuas, pela inexistência de um aparelhamento de sanções adequadas. Pela lei acionária, “o controlador que abusa do seu poder incorre apenas em responsabilidade por perdas e danos. É de se perguntar como seria fixada essa indenização e quem teria legitimidade para fazer atuar em juízo essa responsabilidade. Ademais,  a exigência de respeito aos interesses nacionais no exercício da exploração empresarial implica a exata definição normativa desses interesses” [45].


Na verdade, “o que está em causa nas organizações empresariais, tanto privadas quanto públicas, é a legitimidade do poder de controle fundado na propriedade. A complexidade crescente da macroempresa contemporânea, realçando as funções internas de organização e planejamento; a importância crescente da tecnologia como fator de produção; o caráter marcadamente social e não econômico das organizações empresariais nos setores de educação,  saúde e comunicação de massa (imprensa,  rádio e televisão) todos esses fatores tornam insustentável a atribuição do poder de controle empresarial aos proprietários, por uma espécie de direito natural” [46].


A exploração empresarial dos bens de produção tende, incoercivelmente, a se destacar do regime da propriedade. “Mas a harmonização entre os interesses empresariais e o largo interesse da coletividade local, regional ou nacional só poderá ser alcançado quando a ordem econômica e social estiver fundada no princípio do planejamento democrático. Tal significa uma planificação em que os objetivos são conscientemente definidos pelos representantes legítimos dos diferentes grupos sociais, e em que a elaboração dos meios técnicos a serem empregados compita a autoridades independentes do Poder executivo; uma planificação vinculante para o Estado e diretiva da atividade econômica privada” [47].


A tese da doutrina da função social baseou-se na concepção da propriedade, não como um direito subjetivo, mas como um dever. Tal concepção convencionou chamar propriedade-função. Nesse contexto o homem não tinha direito, mas seria um instrumento a serviço da sociedade. Como membro da coletividade teria obrigações a cumprir. Tal concepção da propriedade-função, tem como inspiração as idéias e posicionamento nas concepções tomistas.


Esta idéia de inexistência de direitos subjetivos foi rejeitada pelo sistema jurídico contemporâneo, bem como também o conceito de propriedade como “função social”. No entanto, a propriedade não é uma função social, mas contém uma função social, de tal forma que “o proprietário deve ser compelido a dar aos bens um destino social, além daquele que atende ao seu próprio interesse, na intenção de, harmonizando o uso da propriedade ao interesse coletivo, se chegar ao plano da justiça social”.  Assim, pode-se concluir: “que o direito de propriedade segue considerado como direito subjetivo, sem se transformar em “função”, mas contendo, inerentemente, essencialmente, uma função social que deve ser atendida” [48].


Importa reconhecer que o interesse da empresa capitalista é a organização para produção bens com objetivo de lucro. O objeto da empresa, ou seja, o exercício da atividade econômica de produção ou distribuição de bens ou serviços está sempre subordinado ao objetivo final de apuração e distribuição de lucros.


Em um sistema capitalista de produção, é imperioso reconhecer que a função social da empresa – pelo menos quando se trata da macroempresa – é a eficiência lucrativa, “admitindo-se que, em busca do lucro, o sistema empresarial como um todo exerça a tarefa necessária de produzir ou distribuir bens e de prestar serviços no espaço de um mercado concorrencial” [49].


Em um mundo cada vez mais globalizado é incongruente esperar que as macroempresas multinacionais trabalhem em prol do interesse nacional de cada país. Pois o interesse da empresa não é no país, mas sim no chamado mercado, tema que se  tratará adiante.


Fica claro, no entanto que está em jogo uma série de interesses em relação à atividade empresarial; a função social da empresa, enquanto atividade organizada, justifica a imposição de certas obrigações e de certas responsabilidades além da própria disciplina jurídica da empresa, que em si, já constitui uma limitação, em termos de liberdade de iniciativa. Daí as opções legislativas que impõem obrigações e responsabilidades ao empresário, como agente da atividade empresarial e, portanto, centro de imputabilidade, não só em relação exclusivamente aos credores, como também aos trabalhadores, aos consumidores e à comunidade, quando não à própria economia do país. Sem, no entanto, se excluir a perspectiva dos interesses egoísticos que estão na base da iniciativa empresarial e que lhe constituem o móvel, e em decorrência do qual se pode falar em risco e apropriação dos frutos dela decorrentes.


Mas as feições jurídicas da empresa econômica, examinadas por Asquini, lograram dividir escritores, pela preferência que dão, ora a um ora a outro, dos elementos que caracterizam juridicamente a empresa, polarizando correntes de opinião diversas.


1.3. A qualificação jurídica da empresa


A construção da teoria jurídica da empresa, ou seja, enquadrar o fenômeno socioeconômico no sistema da ciência jurídica de qualificá-lo, de traduzi-lo em termos jurídicos, de apreender os significados jurídicos é tarefa em permanente construção, pois não se trata de tarefa estática, “trata-se a empresa de um fenômeno amplo, de estrutura complexa, apresentando elementos reais e pessoais, e ainda com natureza dinâmica” [50].


O Professor Waldemar Ferreira apresentou uma figura geométrica em que aparecem três círculos concêntricos, onde no primeiro círculo – círculo maior – aparece um empresário ou sociedade empresária que é o que dá impulso a atividade empresarial; a empresa aparece no segundo círculo, que é justamente essa atividade, e o estabelecimento no círculo menor, que é o complexo de bens que o empresário organiza para o exercício da atividade.

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Essa imagem demonstra a interligação entre esses conceitos, pois não se concebe o exercício de uma atividade sem um mínimo de organização. Quer dizer, para que o empresário exerça a sua atividade, ou para que a sociedade empresária exerça a sua atividade, é preciso um mínimo de organização. Os bens que ele organiza constituem o estabelecimento.


Vejam que o Código Civil brasileiro, tal como ocorre com o Código Civil italiano, não define empresa. Ele define empresário, e define estabelecimento. Tal conceito de empresa stricto sensu como atividade, é extraído da conjugação de dois dispositivos do CCb (arts. 966 e 1.142):


Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.


Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa (ou seja, para exercício da atividade), por empresário, ou por sociedade empresária.”


Conclui-se, pois, de que a noção de empresa, stricto sensu, é a atividade econômica organizada, da conjugação desses dois dispositivos: os artigos 966 e 1.142 do Código Civil brasileiro. “A empresa é, pois, em sentido instrumental, a organização do trabalho que dá lugar à atividade profissional do empresário, e, em sentido funcional, a atividade profissional organizada pelo empresário” [51].


A unificação legislativa no campo do direito obrigacional não suprime a profunda diferença entre, de um lado, as relações jurídicas que dizem respeito à produção e circulação de bens e serviços para o mercado, e de outro lado, as relações jurídicas que são pertinentes à organização da família e das sucessões ou ainda à produção e circulação de bens que não se destinam ao mercado.


As relações jurídicas típicas da atividade empresarial situam-se sempre no campo da economia, enquanto que as relações jurídicas tradicionalmente classificadas como “civis” em grande parte abstraem de critérios econômicos [52].


Deriva, pois, da satisfação das necessidades do mercado a exigência não só da organização especializada e diferençada, como reclama uma instrumentação técnica e, ainda mais, uma atividade criadora que não existe na vida civil comum [53].


Na atividade mercantil, as relações econômicas apresentam-se e são reguladas tendo em vista sua atuação dinâmica, não sua posição estática. O ponto de referência do Direito Comercial é a atividade (seja ela comercial, industrial, transporte, seguro, bolsa e banco), isto é, a série coordenada e unificada de atos em função de um fim econômico unitário. Numa palavra, toda a problemática do Direito Comercial se centraliza na “atividade” [54].


 


Notas:

[1] Waldirio Bulgarelli, Tratado de Direito Empresarial, 3ª ed. –  São Paulo: Atlas, 1997, p. 51.

[2] Sylvio Marcondes, Problemas de Direito Mercantil, São Paulo: Max Limonad, 1970, 2ª tiragem, p. 10.

[3] http://www.jus.unitn.it/Cardozo/Obiter_Dictum/codciv/home.html.

[4] E’ imprenditore chi esercita professionalmente un’attività economica organizzata al fine della produzione o dello scambio di beni o di servizi. Tradução livre: É empresário quem exercita profissionalmente uma atividade econômica organizada com a finalidade de produção ou de troca de bens ou de serviços.

[5] Sono soggetti all’obbligo dell’iscrizione nel registro delle imprese gli imprenditori che esercitano: 2) un’attività intermediaria nella circolazione dei beni. Tradução livre: São sujeitos à obrigação das inscrições no registro das empresas os empresários que exercitam: 2) uma atividade intermediária na circulação de bens.

[6] Sobre o tema Função Social, sob orientação do professor Antônio Martin, durante o curso de mestrado em Direito Empresarial, obtive primeira colocação no concurso promovido pelo IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo – que resultou em obra publicada na Editora Revista dos Tribunais, à qual remetemos:  Augusto Geraldo Teizen Júnior, A função social no código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

[7]  Fábio Konder Comparato, Estado, Empresa e Função Social, RT/Fasc. Civ. Ano 85 v. 732 out. 1996 p.38-46

[8] Idem.

[9] dicionário houaiss in http://houaiss.uol.com.br

[10] Orlando Gomes, Relações entre o direito e a economia, Direito econômico e outros ensaios. Salvador: Distribuidora de Livros Salvador, 1975, p. 73.

[11] Os bens de consumo são bens destinados para o uso pessoal do indivíduo, enquanto os bens de produção são bens empregados em atividades produtivas, o que incluiria as máquinas e insumos.

[12] Fábio Konder Comparato, Função social da propriedade dos bens de produção, São Paulo, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, vol. 63, p. 71-79, 1986.

[13] Eros Roberto Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988, 5ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 258.

[14] Waldirio Bulgarelli, Tratado de Direito Empresarial, 3ª ed. –  São Paulo: Atlas, 1997, p. 71.

[15] Giuseppe Lumia, Elementos de teoria e ideologia do direito, Tradução: Denise Agostinetti, – São Paulo : Martins Fontes, 2003, p. 28.

[16] Tullio Ascarelli, Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado, São Paulo: Saraiva, 1969, p. 90.

[17] Waldirio Bulgarelli, Tratado de Direito Empresarial, 3ª ed. –  São Paulo: Atlas, 1997, p. 70.

[18] Francisco Cavalcante Pontes De Miranda, Tratado de direito privado, Campinas: Atualizador Vilson Rodrigues Alves, Campinas: Bookseller, 2001. vol. 11, p. 37, § 1.161.

[19] Fábio Konder Comparato, Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[20] Fábio Konder Comparato, Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[21] Fábio Konder Comparato, Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[22] Idem.

[23] Remete-nos Comparato ao seu “O Poder de Controle na Sociedade Anônima”, 3ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1983, n. 17 et.seq..

[24] Fábio Konder Comparato, Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[25] Fábio Konder Comparato, Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[26] Fábio Konder Comparato, Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[27] Idem.

[28] Ibidem.

[29] Fábio Konder Comparato, Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[30] Fábio Konder Comparato, Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[31] Fábio Konder Comparato, Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[32] Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, p. 107 e 108,

[33] Ver Berle/Means, A moderna Sociedade Anônima e a propriedade privada, p. 4, (ano de 1932).

[34] Berle e Means em 1932 (A moderna Sociedade Anônima e a Propriedade Privada) demonstraram que não havia outra maneira para financiar uma grande corporação. Ela ficou grande demais para ser financiada por um só proprietário ou por um grupo de proprietários.

[35] Peter Ferdinand Druker, A sociedade pós-capitalista, p. 48

[36] Idem. p. 51.

[37] Adolf Augustus Berle,  A moderna sociedade anônima e a propriedade privada, ob. cit. p. 6.

[38] Fábio Konder Comparato, Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[39] Fábio Konder COMPARATO, Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[40] Idem.

[41] Fábio Konder Comparato, Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[42] Idem.

[43] Fábio Konder Comparato, Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade, Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, Brasília, vol. 1, nº 3, set./dez. 1997, p. 98.

[44] Fábio Konder Comparato, Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[45] Fábio Konder Comparato,  Função social da propriedade dos bens de produção, RDM 63, p. 71/79.

[46] Idem.

[47] Ibidem.

[48] Giselda Hiranaka, A função social do Contrato, Direito Civil, São Paulo: ed. Atlas, p. 100.

[49] Idem.

[50] Waldirio Bulgarelli, Tratado de Direito Empresarial, 3ª ed. –  São Paulo: Atlas, 1997, p. 75.

[51] Sylvio Marcondes, Problemas de Direito Mercantil, São Paulo: Max Limonad, 1970, 2ª tiragem, p. 21.

[52] Francesco Messineo, Manuale di Diritto Civile e Commerciale, vol. I, 8ª ed., Milano: Giuffrè, 1952, § 3º, nº 7, p. 62.

[53] Oscar Barreto Filho, Teoria do Estabelecimento Comercial, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, nº 8, p. 17.

[54] Giuseppe Ferri, Diritto Commerciale in Enciclopédia Del Diritto, Milão, 1964, vol. XII, p. 926, apud. Oscar Barreto Filho, Teoria do Estabelecimento Comercial, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988. nº 8, p. 18. 


Informações Sobre o Autor

Augusto Geraldo Teizen Júnior

Advogado, Mestre em Direito Empresarial – UNIMEP, Especialista Gestão Empresarial Competitiva – UNICEP. Graduou-se – FADISC. Professor: ACADJUR – Direito Civil; UNIANARA – Pós-gradução em Direito Empresarial – Direito Econômico e Financeiro – UNISAL – Pós-graduação – Resp. Civil; MOURA LACERDA – Direito Arbitral e Empreendedorismo; UNICASTELO – Direito Civil. SEBRAE-SP, UNICEP, EESC – USP – São Carlos – (Escola de Engenharia de São Carlos) e Associação Comercial e Industrial de Araras-SP


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