Adequação da prisão temporária ao princípio constitucional da presunção de inocência

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Resumo: O presente artigo pretende demonstrar que o instituto da prisão temporária é compatível com o princípio constitucional da presunção de inocência, apesar de parecer, a primeira vista, que prender alguém antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória viola a Constituição Federal. Através da análise dos pontos de conflito apresentados tanto por aqueles que defendem a constitucionalidade da prisão temporária quanto pelos que sustentam sua inconstitucionalidade, será possível constatar que esse instituto, há quase vinte anos presente em nossa legislação, pode ser plenamente compatível com o princípio da presunção de inocência, desde que interpretado à luz do princípio da proporcionalidade.


Palavras-chave: Penal – Processo – Prisão temporária – Presunção de inocência – Proporcionalidade.


Abstract: The present article intend to demonstrate that temporary prison is compatible to the constitutional principle of presumption of innocence, despite opinion that arresting someone before of res judicata judgement of criminal sentence violates the Federal Constitution. Through analysis of points of conflict presented as by who defend the constitutionality of the temporary prison as who consider its unconstitutionality, we can see that this institute, with almost twenty years in our legislation, can be fully compatible with the principle of presumption of innocence, since interpreted in accordance with the principle of proportionality.


Keywords: Criminal – Process – Temporary prison – Presumption of innocence – Proportionality.


Sumário: 1. Introdução – 2. Prisão temporária: 2.1. Conceito; 2.2. Histórico; 2.3. Fundamentos – 3. Princípio da presunção de inocência – 4. A prisão temporária e o princípio da presunção de inocência: 4.1. Fundamentos pela inconstitucionalidade da prisão temporária; 4.2. Fundamentos pela constitucionalidade da prisão temporária – 5. Adequação da prisão temporária ao princípio da presunção de inocência através do princípio da proporcionalidade – 6. Conclusão – 7. Bibliografia.


1. Introdução


Em uma sociedade submetida aos ditames de uma constituição que expressamente prevê que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória – princípio da presunção de inocência – e que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei, o estudo das prisões cautelares, dentre as quais a prisão temporária, mostra-se por demais importante.


A consagração ao direito à liberdade está presente desde a Carta Magna inglesa de 1215, que dispunha o seguinte: “nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra”. Esse mesmo direito esteve presente nas primeiras constituições do século XVIII e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que estabeleceu que “ninguém deve ser acusado, preso nem detido senão em casos determinados pela lei segundo as formas que ela prescreveu”, e ainda que “todo homem é presumidamente inocente até que tenha sido declarado culpado”, sendo essa a primeira referência histórica ao princípio da presunção de inocência. As constituições posteriores a esses marcos históricos sempre prezaram por elevar a princípios básicos, garantias fundamentais dos cidadãos, o direito à liberdade e o princípio da presunção de inocência.


Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, fruto de amplos debates na Organização das Nações Unidas (ONU), proclamou que “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.


Além de constar da Constitucional Federal brasileira, a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica, incorporada ao nosso ordenamento jurídico com a edição do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, expressamente dispõe que “ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados-Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas” e que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.


Por essas razões, a constrição da liberdade do cidadão sempre foi tomada como medida extrema, como exceção, e rigidamente circunscrita aos ditames legalmente expressos, seja simplesmente em razão da consagração daquele direito, seja por conta do princípio da presunção de inocência.


Sob esse aspecto, as prisões cautelares sempre geraram amplos debates e discussões, o que não é diferente com a prisão temporária, desde a sua inclusão em nosso ordenamento jurídico no ano de 1989. Isso porque nas prisões cautelares prende-se o cidadão antes de uma sentença penal condenatória definitiva declarando-o culpado.


Assim, no entendimento de alguns, o instituto da prisão temporária ousou ao desafiar os ditames da Constituição Federal, permitindo que o cidadão fosse preso durante as investigações policiais, violando, assim, o princípio da presunção de inocência. No entanto, para outros, a própria Constituição previu a possibilidade de prisão mesmo antes da sentença penal condenatória, ao excepcionar as prisões decorrentes de flagrante delito e as baseadas em ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, que seriam os casos da prisão temporária e da prisão preventiva.


Com isso, construiu-se na doutrina entendimentos considerando a prisão temporária inconstitucional, ao mesmo tempo em que defensores do referido instituto formularam teorias pela sua constitucionalidade, sendo esse inclusive o entendimento da jurisprudência, surgindo um intenso debate entre as duas correntes, discussão essa que se alonga até os dias de hoje e que analisa a prisão temporária sob os seus mais diferentes aspectos.


Dessa forma, faz-se necessário compreender esse debate e estudar as teorias acerca da constitucionalidade da prisão temporária, em especial sua adequação com o princípio constitucional da presunção de inocência.


2. Prisão Temporária


2.1 Conceito


Em linhas gerais, a prisão temporária é uma prisão cautelar de natureza processual que restringe a liberdade de locomoção do indiciado por tempo determinado, a fim de possibilitar as investigações acerca de determinados crimes considerados graves. Só pode ser decretada pela autoridade judicial e em face de representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, por um prazo de cinco ou trinta dias, dependendo do crime, prazo esse que pode ser prorrogado uma única vez em caso de comprovada e extrema necessidade.


Possuindo natureza cautelar, a prisão temporária tem como objetivo resguardar o processo de conhecimento ou de execução, pois, se não for decretada, privando o acusado de sua liberdade, mesmo sem sentença definitiva, quando esta for proferida, já não mais será possível a aplicação da lei penal. Dessa forma, o caráter de urgência e necessidade informa a prisão temporária.


Como toda prisão cautelar, a prisão temporária se reveste das seguintes características:


I) jurisdicionalidade, só podendo ser decretada por autoridade judicial competente, já que se trata de medida de restrição a direitos consagrados na Constituição Federal;


II) acessoriedade, devendo seguir a sorte da medida principal, sendo dela dependente;


III) instrumentalidade, servindo de instrumento para se atingir uma medida principal;


IV) provisoriedade, durando enquanto estiverem presentes os seus requisitos autorizadores;


V) homogeneidade, devendo ser proporcional a um eventual resultado favorável ao pedido do acusador, não sendo admissível que a restrição à liberdade do acusado seja mais severa do que a sanção que será aplicada caso o pedido seja julgado procedente.


2.2. Histórico


A prisão temporária foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro no ano de 1989, com a edição da Medida Provisória nº 111, de 24 de novembro daquele ano, convertida posteriormente na Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989.


Tal instituto também existe em diversos outros países, como Portugal, Espanha, França, Itália e Estados Unidos.


Na França, por exemplo, tem-se o chamado contrôle judiciaire, instituído em 1970, em que se estabelecem limitações à liberdade individual que variam de acordo com a gravidade da infração e a personalidade do sujeito, como por exemplo não sair dos limites territoriais estabelecidos pelo Juiz, não freqüentar determinados lugares, atender às intimações para os atos do processo, abster-se de se encontrar com determinadas pessoas, dentre outros. O descumprimento dessas obrigações pelo acusado pode implicar sua prisão temporária.


Ainda naquele país existe a denominada la garde à vue, que é uma rápida privação da liberdade individual decretada pela própria polícia judiciária, que pode durar de 24 a 96 horas, dependendo do crime praticado.


A exposição de motivos da Lei nº 7.960, de 1989, bem demonstra o seu objetivo: “o clima de pânico que se estabelece em nossas cidades, a certeza da impunidade que campeia célere na consciência de nosso povo, formando novos criminosos, exigem medidas firmes e decididas, entre elas a da prisão temporária”.


A Lei nº 7.960, de 1989, pode, portanto, ser entendida como produto da comoção social decorrente do aumento da criminalidade e da agressão aos bens jurídicos da comunidade, pois surgiu do movimento da chamada “doutrina da lei e ordem”, que procurava o endurecimento das penas e das medidas que assegurassem o cumprimento destas, bem como a conseqüente efetivação do próprio processo penal. Buscava-se dar uma satisfação à sociedade, estabelecendo uma maior punição aos que desobedecessem às regras impostas. Outro fruto dessa fase histórica e que demonstra essa preocupação em impor medidas penais mais severas é a lei dos crimes hediondos – Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, promulgada meses depois da Lei nº 7.960, de 1989.


Alguns entendem que com a introdução da prisão temporária em nosso ordenamento jurídico foi recriada a famigerada prisão para averiguação, medida que não logrou êxito em ser implantada durante o governo do Presidente Costa e Silva, em pleno regime de exceção no final dos anos 60 do século passado. Infelizmente, apesar de não formalmente instituída, essa medida de privação da liberdade dos cidadãos era praticada pelas autoridades policiais naquela época, o que demonstra a completa incompatibilidade daquele regime com o Estado Democrático de Direito vivido nos dias de hoje.


2.3. Fundamentos


Conforme exposto, o instituto da prisão temporária encontra-se disciplinado pela Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989.


O referido dispositivo prevê que caberá a prisão temporária quando ela for imprescindível para as investigações do inquérito policial (art. 1º, inciso I); quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade (art. 1º, inciso II); e quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: homicídio doloso, sequestro ou cárcere privado, roubo, extorsão, extorsão mediante sequestro, estupro, atentado violanto ao pudor, epidemia com resultado morte, envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte, quadrilha ou bando, genocídio, tráfico de drogas e crimes contra o sistema financeiro (art. 1º, inciso III).


O § 4º do art. 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, dispõe ainda que “a prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade”. Os crimes previstos no referido art. 2º são os crimes hediondos (homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II,, III, IV e V); latrocínio (art. 157, § 3º, in fine); extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º); extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e §§ 1º, 2º e 3º); estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º); falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput, e § 1º, § 1º A, § 1º B, com redação dada pela Lei nº 9.677, de 2 de julho de 1998); genocídio (arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, tentado ou consumado)), o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (art. 12 da Lei nº 6.368, de 1976) e o terrorismo. Também é cabível a prisão temporária no caso da prática do crime de tortura (Lei nº 9.455, de 1997, e art. 233 da Lei nº 8.069, de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente).


Observa-se, portanto, que a prisão temporária fundamenta-se nas situações previstas no art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, quais sejam: imprescindibilidade da medida para as investigações do inquérito policial; indiciado que não possui residência fixa ou não fornece dados necessários ao esclarecimento de sua identidade; e fundadas razões de autoria ou participação do indiciado nos crimes previstos no inciso III do referido artigo ou da Lei nº 8.072, de 1990.


Nesse ponto, existem quatro posições a respeito da aplicação da prisão temporária, conforme enumera Fernando Capez[1]. Para Tourinho Filho e Julio Mirabete, é cabível a prisão temporária em qualquer das três situações previstas em lei, ou seja, os requisitos são alternativos. Já Antonio Scarance Fernandes defende que a prisão temporária só pode ser decretada se estiverem presentes as três situações, sendo os requisitos cumulativos. Damásio Evangelista de Jesus, Antonio Magalhães Gomes Filho e Paulo Rangel afirmam que a prisão temporária só pode ser decretada naqueles crimes apontados pela lei, ou seja, os que estão elencados no inciso III do artigo 1º da Lei nº 7.960, de 1989, sendo que, além disso, devem concorrer qualquer uma das duas situações previstas nos incisos I e II daquele artigo. Por fim, para Vicente Greco Filho, a prisão pode ser decretada em qualquer das situações legais previstas nos três incisos do art. 1º da Lei 7.960, de 1989, desde que com ela concorram os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva previstos no art. 312 do Código de Processo Penal, quais sejam: para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, sempre que existam provas da existência do crime e indícios suficientes de autoria.


Prevalece a terceira posição, ou seja, que a prisão temporária apenas pode ser decretada quando houver fundadas razões de autoria ou participação nos crimes elencados no inciso III do artigo 1º da Lei nº 7.960, de 1989, ou na Lei nº 8.072, de 1990, e exista ao menos um dos dois requisitos evidenciadores do periculum libertatis – imprescindibilidade da prisão para as investigações do inquérito policial – inciso I – ou se o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade – inciso II.


Essa interpretação é a mais correta, pois, decretando-se a prisão temporária somente porque o inciso I do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, foi preenchido, significaria possibilitar a prisão para qualquer delito, inclusive os de menor potencial ofensivo, desde que fosse imprescindível para as investigações, o que se mostra desproporcional.


Do mesmo modo, decretar a prisão temporária unicamente porque o indiciado não possui residência fixa ou não fornece elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade, conforme descrito no inciso II do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, em qualquer delito, mostra-se despropositado, sendo o mais acertado a combinação do inciso I ou do inciso II com o inciso III, que enumera os diversos crimes em que cabe a prisão temporária, bem como no caso dos crimes previstos na Lei nº 8.072, de 1990.


Analisando mais detidamente o inciso I do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, verifica-se que quando a lei diz que caberá a prisão temporária quando for imprescindível para as investigações do inquérito policial, quer dizer que, no caso do indiciado permanecer em liberdade, poderá criar eventuais entraves que impeçam se possa esclarecer devidamente o fato criminoso, suas circunstâncias e sua autoria. Somente com a demonstração de que, sem a prisão, é impossível ou improvável que se leve a cabo as investigações, com o esclarecimento dos fatos, será possível a decretação da prisão temporária.


No caso do inciso II do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, a prisão temporária do indiciado que não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade se justifica para possibilitar o bom andamento do inquérito policial, que ficaria prejudicado em razão do desaparecimento do indiciado, difícil de ser localizado por não possuir residência determinada ou por não se conhecer sua verdadeira identidade.


Com relação ao inciso III do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, convém destacar que a norma exige apenas fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado em um dos crimes que especifica. Isso significa que não é necessária a prova cabal, definitiva, da autoria ou da participação. Isso é bastante criticado, inclusive por Tourinho Filho, que afirma que “…na prisão temporária não se exige nem a prova da existência do crime nem os indícios suficientes de autoria…”[2], sendo tais elementos o fumus comissi delicti da prisão cautelar. Julio Mirabete também destaca que “ (…) há evidentes impropriedades técnicas no dispositivo. Em primeiro lugar, não é a lei penal que prevê quais as provas admissíveis em juízo. Em segundo era desnecessário referir-se à prova para a decretação da medida já que ‘fundadas razões’ evidentemente só existem com base na prova colhida no inquérito policial (…)”[3].


Como toda prisão cautelar, a prisão temporária somente pode ser decretada quando presentes o fumus boni iuris (fumus comissi delicti), que se concretiza no processo penal condenatório pela verificação da presença de elementos indicadores da existência do crime e da autoria, e o periculum in mora (periculum libertatis), ou seja, o perigo, o risco de que, com a demora no julgamento, possa o acusado, solto, impedir a correta solução da causa ou a aplicação da sanção punitiva.


O fumus comissi delicti está presente no inciso III, quando exige fundadas razões de autoria ou participação do indiciado nos crimes ali relacionados, bem como no § 4º do art. 2º da Lei nº 8.072, de 1990. Segundo Antônio Scarance Fernandes, “as fundadas razões serão aferidas diante de elementos concretos, objetivos, que permitam uma avaliação positiva do juiz a respeito da autoria ou participação do indiciado”[4].


Já o periculum libertatis está presente nos incisos I e II. O primeiro prevê a prisão para o êxito da investigação, a fim de assegurar o resultado futuro do processo diante do risco de não serem obtidos elementos necessários para a demonstração do crime ou da autoria. O segundo permite a prisão do indiciado que não possui residência fixa ou não fornece os elementos necessários para esclarecer sua identidade porque, no caso de fuga ou desaparecimento, dificilmente ele seria encontrado, com claro prejuízo para a futura instrução criminal ou para a aplicação da lei penal, conforme já descrito.


Da leitura dos crimes enumerados no inciso III do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, bem como na Lei nº 8.072, de 1990, observa-se que a gravidade e a repulsa social que provocam aqueles crimes justificam a prisão temporária. Pode-se erroneamente concluir daí que a prisão pode ser aplicada como medida destinada a apaziguar o clamor público e a indignação social diante da gravidade dos crimes ali previstos, apesar da lei não exigir que tais situações estejam presentes no caso particular.


Importante ressaltar, contudo, que a gravidade do delito, por si só, não autoriza a decretação da prisão temporária, sendo necessário que estejam presentes os requisitos do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989. O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 13.669-RJ[5], confirmou esse entendimento, como pode ser constatado da leitura da ementa do referido julgado:


“PROCESSO PENAL – PRISÃO TEMPORÁRIA – ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR COM VIOLÊNCIA PRESUMIDA – AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO – CONFIGURAÇÃO. – A decisão que decreta a prisão temporária, lastreando-se apenas na gravidade do delito, encontra-se sem a devida fundamentação. Tal medida é de natureza excepcional e deve conter elementos concretos que ensejem sua adoção. – Ordem concedida para que seja revogada a prisão temporária decretada.”


A prisão temporária somente pode ser decretada pelo Juiz, em face da representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, segundo o art. 2º da Lei nº 7.960, de 1989. Daí destaca-se a necessidade de despacho fundamentado da autoridade judicial, motivando convenientemente a decisão ao apreciar os fundamentos de fato e de direito do pedido formulado.


Convém destacar que a sumariedade da cognição não se confunde com o arbítrio. Como a lei se contenta, conforme adiante será explicitado, com mero juízo de probabilidade com relação ao fumus boni iuris, o mesmo não acontece relativamente ao periculum in mora, que deve obrigatoriamente resultar de avaliação mais aprofundada acerca das circunstâncias que apontam para a necessidade da medida excepcional. E essa efetividade da cognição judicial, conforme ensina Antônio Magalhães Gomes Filho, “…só pode ser constatada por meio da motivação do provimento, garantia de caráter instrumental em relação a todos os demais preceitos que devem ser obedecidos”[6]. A ausência da fundamentação na decisão que aprecie a prisão temporária levará à nulidade absoluta do provimento jurisdicional, pois haverá não apenas a violação à Lei nº 7.960, de 1989, mas também à Constituição Federal, que exige tal formalidade no art. 5º, LXI, e no art 93, IX, para garantia do direito de liberdade.


O professor Antônio Magalhães Gomes Filho continua dizendo que “é através da fundamentação que se expressam os aspectos mais importantes considerados pelo julgador ao longo do caminho percorrido até a conclusão última, representando, por isso, o ponto de referência para a verificação da justiça, imparcialidade, atendimento às prescrições legais e efetivo exame das questões suscitadas pelos interessados no pronunciamento judicial”[7].


É indispensável, com relação ao fumus boni iuris, que o magistrado demonstre a tipicidade do fato e sua existência, indicando as provas em que se apóia a sua convicção, além de sopesar os indícios de autoria, esclarecendo os motivos de seu convencimento.


Quanto ao periculum libertatis, a fundamentação deve trazer, explicitamente, os fatos que levaram à necessidade da adoção da medida de prisão, sendo que a mera repetição das palavras contidas na lei ou meras suposições não são suficientes diante da gravidade e do caráter excepcional da medida.


O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RHC 11.992-RJ[8], asseverou a necessidade de fundamentação na decisão que decreta a prisão provisória. O referido julgado possui a seguinte ementa:


“PENAL. PROCESSUAL. TENTATIVA DE ROUBO. PRISÃO PROVISÓRIA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. 1. Para a decretação da prisão provisória, sob o argumento de imprescindibilidade para as investigações do inquérito, impõe-se a efetiva demonstração do periculum libertatis, mediante a exposição de motivos concretos, sendo insuficiente para tanto meras conjecturas. 2. Recurso Ordinário provido, para revogar o decreto de prisão provisória contra o paciente, por ausência de fundamentação.”


Assim, conclui-se que, ao indicar os fundamentos fáticos e jurídicos que fundamentam sua decisão, a autoridade judicial deve explicitar a existência dos pressupostos que caracterizam a existência de um crime sujeito ao encarceramento temporário objeto da decisão e a existência de fundadas razões de autoria ou participação do indiciado naquele crime, bem como deve indicar a necessidade concreta da medida cautelar, ou seja, o periculum libertatis, traduzido na imprescindibilidade da prisão para as investigações do inquérito policial ou no fato do indiciado não ter residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade.


3. Princípio da presunção de inocência


A primeira referência histórica ao princípio da presunção de inocência data de 1789, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fazendo parte, posteriormente, de todas as constituições modernas. O art. 9º da referida declaração dispôs o seguinte: “todo homem é considerado inocente, até ao momento em que, reconhecido como culpado, se julgar indispensável a sua prisão: todo o rigor desnecessário, empregado para a efetuar, deve ser severamente reprimido pela lei”.


Antes disso, Cesare Beccaria já preconizava que “um homem não pode ser chamado de réu antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada”[9].


Posteriormente, a Organizações das Nações Unidas (ONU) proclamou tal princípio em 1948, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, e a Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1969, na Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica, sendo esta última incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 678, de 1992.


O princípio da presunção de inocência está intimamente ligado ao sistema acusatório, que proporcionou ao acusado mais dignidade e maior respeito à sua liberdade de locomoção, já que no sistema inquisitório anteriormente adotado o acusado era desprovido de qualquer garantia e considerado presumidamente culpado.


Segundo o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Assim está formulado o princípio da presunção de inocência em nosso ordenamento jurídico.


Convém destacar que com relação ao referido princípio surgiram duas orientações principais sobre a extensão do seu alcance. A primeira, mais restritiva, vinculava o princípio apenas ao ônus de prova, ou seja, ostentando o réu o status de inocente até a decisão final, impõe-se à acusação o ônus de demonstrar os fatos imputados a ele, ou seja, não é o acusado que deve demonstrar sua inocência, mas o acusador que deve provar sua culpa.


A segundo orientação, mais ampla, liga o princípio não apenas ao ônus de prova mas também à prisão. Assim, como o réu só pode ser considerado culpado após a sentença penal condenatória transitada em julgado, qualquer prisão antes disso não pode configurar antecipação da pena, apenas se justificando quando possuir natureza cautelar, ou seja, nas palavras de Antônio Scarance Fernandes, “…qualquer prisão durante o processo, para não haver ofensa ao princípio da presunção de inocência, deve ter natureza cautelar e não pode significar antecipação de pena, pois esta, necessariamente, deve decorrer de sentença condenatória transitada em julgado”[10].


Modernamente, entende-se que esse princípio desdobra-se em três aspectos: no momento da instrução processual, como presunção legal relativa de não-culpabilidade, invertendo-se o ônus da prova; no momento da avaliação da prova, valorando-se em favor do acusado quando houver dúvida; e no curso do processo penal, como paradigma de tratamento do imputado, especialmente no que concerne à análise da necessidade da prisão processual.


Considera-se que o que existe não é uma presunção de inocência, mas sim um estado de inocência, um estado jurídico no qual o acusado é inocente até que seja declarado culpado por uma sentença transitada em julgado. Por essa razão, alguns o chamam de princípio da não-culpabilidade ou da desconsideração prévia da culpabilidade, de aplicação mais restrita do que o princípio da presunção de inocência, que, assim, não poderia ser considerado de forma absoluta, mas sim relativa. A própria Constituição Federal não presume a inocência, mas sim declara que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ou seja, que o acusado é inocente durante o desenvolvimento do processo e seu estado só se modifica por uma sentença final que o declare culpado.


Por essa razão, preconiza Julio Mirabete: “ (…) não se impede que, de maneira mais ou menos intensa, seja reforçada a presunção de culpabilidade com os elementos probatórios colhidos nos autos de modo a justificar medidas coercitivas contra o acusado (…)”[11].


Do princípio da presunção de inocência, portanto, pode-se concluir que: a restrição à liberdade do acusado antes da sentença definitiva só deve ser admitida a título de medida cautelar, de necessidade ou conveniência segundo a lei processual; o réu não tem o dever de provar sua inocência, pois cabe ao acusador provar a sua culpa; e para condenar o acusado o juiz deve ter a convicção de que é ele o responsável pelo delito, convicção essa formada pelas provas levadas ao processo, bastando, para absolvê-lo, a dúvida a respeito de sua culpa (in dubio pro reo).


O princípio da presunção de inocência nada mais representa, nas palavras de Tourinho Filho “…que o coroamento do due process of law (…)”[12]. Ele se fundamenta no reconhecimento dos princípios do direito natural como base da sociedade, que aliados à soberania do povo e ao culto da liberdade, constituem os elementos essenciais da democracia.


Somente assegurando-se ao acusado o respeito aos seus direitos e dando-lhe a garantia de não ser tratado como culpado antes da condenação definitiva, têm-se as condições mínimas para um processo justo e civilizado.


Assim, observa-se que a presunção de inocência emerge ao mesmo tempo no processo penal como uma regra de juízo e como uma regra de tratamento: regra de juízo (regra probatória) porque os indícios de autoria ou participação deverão ser fortes o suficiente para amparar a medida cautelar restritiva de liberdade (fumus boni iuris); e regra de tratamento do acusado porque não perderá o indiciado suas garantias processuais penais, nem se prestará a prisão cautelar a finalidades retributivas antecipando a pena definitiva. Tais limites infranqueáveis se impõem a todos, tanto à Polícia Judiciária quanto ao Poder Judiciário.


Ao funcionar como regra que disciplina a atividade probatória, nos ensina Rogério Schietti, “…a presunção de não-culpabilidade preserva a liberdade e a inocência do acusado contra juízos baseados em mera probabilidade, determinando que somente a certeza pode lastrear uma condenação. Além disso, não se impõe ao acusado a prova da sua inocência, pois é ao órgão acusador que se atribui o ônus de provar a culpa daquele a quem imputa a prática da infração penal”[13].


Assim, impõe-se ao acusador o ônus de comprovar as afirmações formuladas contra o acusado, sob pena de, havendo qualquer dúvida acerca da prova, decidir-se a favor da defesa (in dubio pro reo). O órgão acusador afirma a existência de um fato criminoso e atribui sua autoria ao acusado, mas deverá comprovar segundo as regras do devido processo legal, que essas afirmações encontram respaldo em provas consistentes, submetidas ao contraditório, a fim de não restar dúvida sobre os fatos atribuídos ao acusado.


Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 73.338-RJ[14], asseverou o seguinte:


“(…) A exigência de comprovação plena dos elementos que dão suporte à acusação penal recai por inteiro, e com exclusividade, sobre o Ministério Público. Essa imposição do ônus processual concernente à demonstração da ocorrência do ilícito penal reflete, na realidade, e dentro de nosso sistema positivo, uma expressiva garantia jurídica que tutela e protege o próprio estado de liberdade que se reconhece às pessoas em geral.


(…)Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência….”


Como regra de tratamento, continua Rogério Schietti, “…o princípio da presunção de inocência exige que o acusado seja tratado com respeito à sua pessoa e à sua dignidade e que não seja equiparado àquele sobre quem já pesa uma condenação definitiva (…)”[15]. Isso significa que o acusado só pode ser preso diante de uma imperiosa necessidade, devidamente justificada, e apoiada em critérios legais. Só assim legitima-se a prisão cautelar.


4. A prisão temporária e o princípio da presunção de inocência


Para alguns, a prisão temporária contrasta com a tendência doutrinária moderna de que não se deve possibilitar o recolhimento à prisão do autor da infração penal antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.


Se o réu não pode ser considerado culpado enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória, por que prendê-lo antes da sentença penal definitiva?


Dessa forma, a prisão temporária pode parecer contraditória com o princípio da presunção de inocência, até porque vários fundamentos são levantados sustentando esse entendimento.


No entanto, a maioria dos doutrinadores e a jurisprudência pátria sinalizam no sentido da constitucionalidade do referido instituto, entendo que ele é perfeitamente compatível com os princípios constitucionais.


4.1. Fundamentos pela inconstitucionalidade da prisão temporária


Os argumentos contrários à constitucionalidade da prisão temporária frente ao princípio da presunção de inocência são muitos e partem de importantes doutrinadores do direito processual penal.


Sustenta Tourinho Filho que “a constituição, que é a Lei Maior, proclama que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Se não é considerado culpado, por que exigir a sua prisão antecipadamente? (…)”[16]. As leis tem que se adequar à Carta Política, sob pena de estarem elas sobrepondo-se à Constituição, numa inversão de valores que afronta qualquer raciocínio lógico-jurídico.


O princípio da presunção de inocência, que com a Constituição Federal de 1988 foi elevado à categoria de dogma constitucional, foi fruto, segundo Tourinho Filho, “…de insopitável anseio libertário da nação brasileira. E, em razão desse princípio, toda e qualquer prisão deve revestir-se de natureza cautelar. Observe-se que a prisão preventiva se baseia, precisamente, em uma presunção concreta de culpabilidade (…)”[17]. Sem essa cautelaridade, não teria sentido nem fundamento.


Ainda discorrendo sobre a aplicação do princípio da presunção de inocência às prisões cautelares, assim sustenta aquele mestre:


“(…) Quando ocorre uma prisão em flagrante, e não estando presente qualquer das circunstâncias que autorizam a decretação da prisão preventiva, o indiciado tem o direito de ficar em liberdade, nos termos do parágrafo único do art. 310 do CPP; se o cidadão cometeu um crime inafiançável, mas não foi preso em flagrante, sua prisão preventiva somente poderá ser decretada se for necessária, e a lei diz quando ela se torna necessária: se o agente está perturbando a ordem pública ou a ordem econômica, se está criando obstáculo à instrução criminal, ou se está pretendendo subtrair-se da eventual aplicação da lei penal. Ausentes tais circunstâncias, não poderá ser preso preventivamente. Note-se que, em rigor, nem se pode admitir possa a prisão preventiva ser decretada em todas aquelas hipóteses, a não ser quando indispensável para impedir a fuga ou para impedir que a instrução criminal seja obstaculizada. E se for condenado? Pela mesma razão, se for condenado por sentença não transitada em julgado, sua prisão provisória, ou o seu antecipado cumprimento de pena, só se justifica se ele estiver dando sinais de que pretende subtrair-se à aplicação da lei penal. Senão, não.”[18]


Se não for dada tal interpretação ao princípio da presunção de inocência, estar-se-á admitindo a existência de palavras inúteis no texto constitucional.


O professor Tourinho Filho, continuando sua crítica à prisão temporária, afirma que:


“Para que serviria, então, proclamar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”? Trata-se, a toda evidência (para que não haja ultraje ao legislador constituinte), de um direito do cidadão. E direito fundamental, posto que inserido no art. 5º da Lei Maior. Direito a quê? Direito de ver respeitada a sua liberdade ambulatória. Direito de não sofrer qualquer medida constritiva de liberdade, a não ser nos casos estritamente necessários, ditados por evidente cautela. Direito de não sofrer a punição antecipadamente. Esse o real sentido da expressão ‘presunção de inocência’. (…)”[19]


O professor afirma também que a prisão temporária contraria o princípio da presunção de inocência, sustentando que “(…) ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de uma sentença condenatória. Embora seja certo que a prisão provisória não é dirigida aos considerados culpados, não é menos certo que ela só se justifica em casos de real necessidade, como é a hipótese da preventiva. Que necessidade terá o Poder Público de decretar a prisão temporária? (…)”[20].


O referido doutrinador continua sua crítica, agora com relação aos fundamentos que autorizam a prisão temporária:


“A exigência de fundadas razões quanto à autoria ou participação é necessariamente imprescindível, visto não existir cautelaridade sem esse requisito. O periculum in mora, ou libertatis, consistirá na circunstância de ser a medida “imprescindível às investigações policiais”, tenha ou não o indiciado residência fixa, crie ou não crie embaraços à colheita de dados para estabelecer sua identidade, ou, finalmente, ainda que não imprescindível às investigações, ‘se o indiciado não tiver residência fixa’ ou ‘não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade’.”[21]


Para Tourinho Filho, a prisão temporária não poderia ser considerada uma espécie de prisão cautelar e, por isso, não estaria autorizada pela Constituição Federal. Isso porque, para considerar-se medida cautelar, a prisão deve estar sustentada no fumus boni iuris e no periculum in mora, que não são identificados nesta espécie de prisão.


Analisando o fumus boni iuris, sustenta o renomado professor o seguinte:


A fumaça do bom direito é, pois, necessariamente indispensável. Não se trata de prova da existência de um direito, mas da sua aparência. Na cautelar há um juízo de probabilidade e que se justifica ante a impossibilidade de o homem conhecer a certeza absoluta. Na hipótese em exame, onde estará o fumus boni iuris? Responda-se com o próprio texto legal: ‘nas fundadas razões baseadas em qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado’ na prática de um daqueles crimes elencados no inc. III do art. 1º da citada lei. (…)


Já na prisão temporária não se exige nem a prova da existência do crime nem os indícios suficientes de autoria. Bastam, apenas, fundadas razões com base em qualquer prova.


Ora, fundadas razões são razões sérias, importantes, que denotam gravidade. E, ao que parece, nenhuma autoridade, por mais perspicaz que seja, poderá vislumbrar “fundadas razões” em face de um testemunho infantil, de uma declaração da suposta vítima, de um simples indício. (…) Para nós, as fundadas razões devem ser idôneas, sérias, sob pena de se transformar a prisão temporária em instrumento de perseguição e tortura.


A lei, sobre ser malfeita, conduz a abusos que afetam o status dignitatis e o status libertatis. É de supor que a materialidade do fato esteja provada. Do contrário, a medida, já violenta, nem teria mais qualificação. (...)”[22]


Com relação ao periculum in mora, segundo requisito da prisão cautelar, assim aduz aquele processualista:


“(…) Não obstante se diga ser possível a decretação da prisão temporária havendo fundadas razões para se supor seja o indiciado autor ou partícipe, com base em qualquer prova admitida na legislação processual penal, desde que ele não tenha residência fica ou não forneça elementos necessários para o esclarecimento da sua identidade, indaga-se: se a prisão não é imprescindível às investigações, por que o encarceramento por 5 dias do indiciado sem residência fixa? Se a prisão não é imprescindível às investigações policiais, por que a prisão por 5 dias daquele que ‘não forneceu elementos necessários ao esclarecimento da sua identidade’? (…)”[23]


Na mesma linha, Luiz Flávio Gomes, observa que:


“… o eixo, a base, o fundamento de todas as prisões cautelares no Brasil residem naqueles requisitos da prisão preventiva. Quando presentes, pode o Juiz fundamentadamente decretar qualquer prisão cautelar; quando ausentes, ainda que se trate de reincidente ou de quem não tenha bons antecedentes, ou de crime hediondo ou de tráfico, não pode ser decretada a prisão antes do trânsito em julgado da decisão.”[24]


De fato, para não se ofender ao princípio da presunção de inocência, se faz necessária a presença do fumus boni juris (fumus comissi delicti) e do periculum in mora (periculum libertatis), autorizadores da prisão cautelar.


Assim, apenas se preservam as garantias constitucionais quando se identificam os requisitos da prisão preventiva na prisão temporária.


Ora, então por que não decretar a prisão preventiva ao invés da temporária? Simples. Porque na temporária não há fumus boni iuris, que é exigido na preventiva. Dessa forma, prende-se temporariamente porque não se pode prender preventivamente, ferindo-se a Constituição Federal. Não se exige nem a prova da existência do crime, nem indícios suficientes de autoria – fumus boni iuris, apenas fundadas razões baseadas em qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação, pois se existisse o fumus boni iuris seria possível a decretação da Prisão Preventiva.


Também com relação ao periculum libertatis, convém ressaltar que ele se constitui na circunstância de ser a medida imprescindível às investigações policiais, tenha ou não o indiciado residência fixa, crie ou não embaraços à colheita de dados para esclarecer sua identidade, ou, ainda que não imprescindível às investigações, se o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade. No entanto, sustentam os que se mostram contrários à prisão temporária, mostra-se descabida tal situação, pois, se a prisão não for imprescindível para as investigações, não haverá necessidade de se prender alguém só porque não possui residência fixa ou não há elementos para esclarecer sua identidade, ainda que tenha praticado um crime grave, pois nesse caso estar-se-ia prendendo em razão da gravidade do crime e não pela imprescindibilidade às investigações.


Paulo Rangel, outro crítico da prisão temporária, também afirma que o instituto é inconstitucional, aduzindo para tanto o seguinte:


“…no Estado Democrático de Direito não se pode permitir que o Estado lance mão da prisão para investigar, ou seja, primeiro prende, depois investiga para saber se o indiciado, efetivamente, é o autor do delito. Trata-se de medida de constrição de liberdade do suspeito que, não havendo elementos suficientes de sua conduta nos autos do inquérito policial, é preso para que esses elementos sejam encontrados.


Percebam que se houvesse elementos de convicção suficientes, o inquérito estaria concluído e o Ministério Público poderia oferecer denúncia, iniciando a ação penal e, se necessário fosse, requereria a prisão preventiva. Contudo, como não há, o Estado prende, por sua incompetência, para investigar se o indiciado é ou não autor do fato (…).[25]


Continuando sua crítica à prisão temporária, Paulo Rangel sustenta que o acusado somente pode ser preso se houver necessidade, caracterizada pela existência dos elementos de convicção quanto ao periculum libertatis e fundamentos que evidenciem o fumus comissi delicti, afirmando ainda que “prisão não pode ser uma satisfação à sociedade, por mais grave que seja o crime, mas sim uma necessidade para se assegurar o curso do processo. No caso da temporária é para assegurar que se realize uma investigação sobre o fato, dizem, praticado pelo apontado suspeito, o que, por si só, é inadmissível. Prender um suspeito para investigar se é ele, é barbárie. Só na ditadura e, portanto, no Estado de exceção”[26].


Por fim, o professor fluminense critica ainda o excesso de prisões cautelares, sustentando que:


“…não podemos confundir prisão cautelar com política pública séria de combate à violência, ou seja, nada tem a ver com a prisão cautelar os altos índices de violência urbana que assolam nosso País. Se há roubo, homicídios, estupros, etc, ocorrendo nas grandes metrópoles, deve o Estado adotar as medidas necessárias para conter essa onda de violência e não culparmos o Judiciário que não lançou mão de uma medida cautelar para contê-la. Uma coisa é a certeza de que nas ruas não há polícia, outra, bem diferente, é, em decorrência disso, haver necessidade de, no curso do processo, o réu ser preso.


Não é a prisão cautelar que vai resolver o problema da violência nas ruas, mas sim a adoção de políticas públicas sérias de combate à violência pelo Executivo.


O Judiciário não pode substituir a ação do Executivo. Polícia nas ruas, garantindo nossa segurança, é problema do Executivo. Prisão cautelar, para assegurar o curso do processo penal justo, é medida a ser adotada pelo Judiciário.”[27]


Some-se a esses fundamentos o fato do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ter decidido, em sessão plenária de 6 de novembro de 2007, considerar inconstitucional a Lei nº 7.960, de 1989, autorizando a Diretoria do Conselho Federal da entidade a adotar todas as medidas políticas e judiciais cabíveis a fim de retirar do ordenamento jurídico o referido dispositivo.


Entendeu a OAB que essa modalidade de prisão tem sido utilizada principalmente com o intuito de pressionar psicologicamente a pessoa investigada, convertendo-se em verdadeira coação moral, voltada a denegrir a imagem da pessoa e arrancar a prova que se deseja do indiciado. Questiona a OAB que se já existe a prisão preventiva, por que se necessita da prisão temporária de vários dias? Entre os motivos que levaram a OAB a tal posicionamento, está o fato de que a referida lei fere a garantia prevista no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, que prevê que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.


Há quem sustente que a prisão temporária é constitucional porque há previsão legal assecuratória do êxito da persecução criminal durante a fase do inquérito policial, já que a prisão emana de ordem escrita e fundamentada de autoridade judicial, nos termos da Constituição Federal. No entanto, no sistema penal brasileiro o status libertatis é o preceito a seguir, sendo a prisão cautelar a exceção. É nesse sentido que a Carta Magna impõe o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.


Os fundamentos de todas as prisões cautelares residem nos requisitos da prisão preventiva elencados no art. 312 do Código de Processo Penal: garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal. Assim, observa-se que a Lei nº 7.960, de 1989, veio preencher uma lacuna não alcançada pela prisão preventiva, o que ofenderia ao princípio constitucional da presunção de inocência.


Além disso, como anteriormente destacado, a prisão temporária mostra-se dispensável porque os seus requisitos se igualam aos da prisão preventiva. Como ela não pode estar alicerçada em suposições, se existir algum fato concreto que se aplique a prisão preventiva e não a temporária. Caso contrário, banalizam-se as restrições cautelares de liberdade, sendo um instituo penal excepcional transformado em regra, subvertendo-se, dessa forma, o sistema penal.


4.2. Fundamentos pela constitucionalidade da prisão temporária


O princípio da presunção de inocência confirma a excepcionalidade e a necessidade das medidas cautelares de prisão, pois os indivíduos nascem livrem, somente podendo ser levados à prisão quando realmente for útil à instrução criminal e à ordem pública, razão pela qual se torna indispensável que o acusador evidencie a necessidade dessa prisão.


Sendo a liberdade do cidadão um dos dogmas do Estado Democrático de Direito, é natural que a constituição fixe determinadas regras fundamentais com relação à prisão, seja ela de qualquer natureza, já que restringir o direito à liberdade é medida extraordinária, que, se adotada, deve sempre estar subordinada a parâmetros de legalidade estrita.


Com relação às prisões cautelares, essas exigências tornam-se muito mais rigorosas, em razão do princípio da presunção de inocência, pois a antecipação do resultado do processo significa providência excepcional e que não deve ser confundida com a punição, só sendo justificada naquelas situações de extrema necessidade.


Por essa razão, a Constituição Federal submeteu todas as formas de prisão cautelar à apreciação de autoridade judicial, quer de forma preventiva ou não. Além disso, a apreciação do juiz deve ser devidamente fundamentada, exigência básica de todo e qualquer provimento jurisdicional relacionado à restrição antecipada do direito de liberdade do cidadão. Conforme ensina Antônio Magalhães Gomes Filho, “…somente através da declaração expressa dos motivos da decisão será possível reconstituir o caminho percorrido pelo magistrado para a decretação da medida extrema, aferindo-se, assim, o atendimento das prescrições legais e o efetivo exame das questões suscitadas pelos interessados no provimento”[28].


Assim, um dos principais aspectos a ser considerado a fim de adequar a prisão temporária ao princípio da presunção de inocência e não considerá-la inconstitucional é exatamente a fundamentação da decisão que decreta a medida cautelar, pois é ali que a autoridade judicial vai explicitar os motivos da prisão diante da existência dos seus pressupostos autorizadores, quais sejam, o fumus comissi delicti e o periculum libertatis.


Além disso, a prisão cautelar não viola o princípio de presunção de inocência porque a própria Constituição Federal admite a prisão provisória nos casos de flagrante e crimes inafiançáveis e autoriza o legislador a proibir a liberdade provisória.


Observa-se, no entanto, que a prisão provisória só deve ser decretada com base no poder geral de cautela do juiz, isto é, desde que necessária para uma eficiente prestação jurisdicional. Segundo Fernando Capez, “sem preencher os requisitos gerais de tutela cautelar (fumus boni iuris e periculum in mora), sem necessidade para o processo, sem caráter instrumental, a prisão provisória não seria nada mais do que uma execução da pena privativa de liberdade antes da condenação transitada em julgado, e, isto sim, violaria o princípio da presunção de inocência”[29].


Nessa mesma linha, Luiz Flávio Gomes afirma que:


“…a prisão cautelar não atrita de forma irremediável com a presunção de inocência. Há, em verdade, uma conveniência harmonizável entre ambas desde que a medida de cautela preserve o seu caráter de excepcionalidade e não perca a sua qualidade instrumental. A prisão cautelar não pode, por isso, decorrer de mero automatismo legal, mas deve estar sempre subordinada à sua necessidade concreta, real, efetiva, traduzida pelo fumus boni iuris e o periculum in mora.”[30]


O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o HC 7.655-GO[31], afirmou que “a prisão provisória, de natureza processual, medida que implica sacrifício à liberdade individual, deve ser concebida com cautela, em face do princípio constitucional da inocência presumida, impondo-se, por isso, que a mesma tenha por base motivos concretos, susceptíveis de autorizar a medida constritiva de liberdade”.


O próprio Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já editou o enunciado de súmula nº 9, segundo o qual a prisão processual não viola o princípio do estado de inocência.


Julio Mirabete, ao estudar o princípio da presunção de inocência, que ele denomina estado de inocência, ressalta o seguinte:


“(…) De uns tempos para cá, passou-se a questionar tal princípio que, levado às últimas conseqüências, não permitiria qualquer medida coativa contra o acusado, nem mesmo a prisão provisória ou o próprio processo. Por que admitir-se um processo penal contra alguém presumidamente inocente? Além disso, se o princípio trata de uma presunção absoluta (juris et de jure) a sentença irrecorrível não a pode eliminar; se trata de uma presunção relativa (juris tantum), seria ela destruída pelas provas colhidas durante a instrução criminal antes da própria decisão definitiva.”[32]


O Supremo Tribunal Federal, através de sua Segunda Turma, ao julgar, em 26 de junho de 2001, o HC 80.719-SP, da relatoria do Ministro Celso de Mello, consolidou o entendimento de que as prisões cautelares não violam o princípio da presunção de inocência. O referido julgado, publicado no Diário de Justiça do dia 28 de setembro de 2001, possui a seguinte ementa:


“HABEAS CORPUS – CRIME HEDIONDO – ALEGADA OCORRÊNCIA DE CLAMOR PÚBLICO – TEMOR DE FUGA DO RÉU – DECRETAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA – RAZÕES DE NECESSIDADE INOCORRENTES – INADMISSIBILIDADE DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE – PEDIDO DEFERIDO. A PRISÃO PREVENTIVA CONSTITUI MEDIDA CAUTELAR DE NATUREZA EXCEPCIONAL. – A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade. A prisão preventiva, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e indício suficiente de autoria) – que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. A PRISÃO PREVENTIVA – ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR – NÃO TEM POR OBJETIVO INFLIGIR PUNIÇÃO ANTECIPADA AO INDICIADO OU AO RÉU. – A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. O CLAMOR PÚBLICO, AINDA QUE SE TRATE DE CRIME HEDIONDO, NÃO CONSTITUI FATOR DE LEGITIMAÇÃO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE. – O estado de comoção social e de eventual indignação popular, motivado pela repercussão da prática da infração penal, não pode justificar, só por si, a decretação da prisão cautelar do suposto autor do comportamento delituoso, sob pena de completa e grave aniquilação do postulado fundamental da liberdade. O clamor público – precisamente por não constituir causa legal de justificação da prisão processual (CPP, art. 312) – não se qualifica como fator de legitimação da privação cautelar da liberdade do indiciado ou do réu, não sendo lícito pretender-se, nessa matéria, por incabível, a aplicação analógica do que se contém no art. 323, V, do CPP, que concerne, exclusivamente, ao tema da fiança criminal. Precedentes. – A acusação penal por crime hediondo não justifica, só por si, a privação cautelar da liberdade do indiciado ou do réu. A PRESERVAÇÃO DA CREDIBILIDADE DAS INSTITUIÇÕES E DA ORDEM PÚBLICA NÃO CONSUBSTANCIA, SÓ POR SI, CIRCUNSTÂNCIA AUTORIZADORA DA PRISÃO CAUTELAR. – Não se reveste de idoneidade jurídica, para efeito de justificação do ato excepcional de privação cautelar da liberdade individual, a alegação de que o réu, por dispor de privilegiada condição econômico-financeira, deveria ser mantido na prisão, em nome da credibilidade das instituições e da preservação da ordem pública. ABANDONO DO DISTRITO DA CULPA PARA EVITAR SITUAÇÃO DE FLAGRÂNCIA – DESCABIMENTO DA PRISÃO PREVENTIVA. – Não cabe prisão preventiva pelo só fato de o agente – movido pelo impulso natural da liberdade – ausentar-se do distrito da culpa, em ordem a evitar, com esse gesto, a caracterização da situação de flagrância. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO, NO CASO, DA NECESSIDADE CONCRETA DE DECRETAR-SE A PRISÃO PREVENTIVA DO PACIENTE. – Sem que se caracterize situação de real necessidade, não se legitima a privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Ausentes razões de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, a decretação ou a subsistência da prisão preventiva. DISCURSOS DE CARÁTER AUTORITÁRIO NÃO PODEM JAMAIS SUBJUGAR O PRINCÍPIO DA LIBERDADE. – A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível – por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) – presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário.”


Observa-se, portanto, que a prisão temporária deve ter caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade e sempre através de uma decisão judicial suficientemente motivada, nunca se confundindo com a prisão-pena imposta no final do processo.


Quanto a esse ponto, importante relembrar que a prisão cautelar encontra seu fundamento exatamente no direito que o Estado tem de exigir do indivíduo certos sacrifícios, inclusive restringir sua liberdade, visando ao bem comum da coletividade.


5. Adequação da prisão temporária ao princípio da presunção de inocência através do princípio da proporcionalidade


Identificado o conflito existente entre os que consideram a prisão temporária constitucional e aqueles que sustentam sua inconstitucionalidade, busca-se agora uma forma de compatibilizar aquele instituto com o princípio da presunção de inocência.


De início, cumpre assinalar que, analisando a questão sob um ângulo meramente lógico-jurídico, não faz sentido afirmar que o acusado é inocente se o processo só foi instaurado exatamente porque se reuniram provas ou ao menos indícios de sua responsabilidade, a ser esclarecida na instrução criminal. Se os indícios são fonte de presunções, logo, existindo indícios de que o acusado praticou determinado delito, é de se presumir sua culpa, pois, caso contrário, estaria caracterizada uma contradição lógica. Por essa razão, o princípio da presunção de inocência deve ser entendido como uma presunção de natureza política e não somente jurídica ou até mesmo lógica.


Considerar alguém não-culpado significa presumi-lo inocente. Porém, apenas dizer que não se considera alguém culpado não tem outro significado senão o de negar qualquer presunção de culpabilidade em seu desfavor. Observa-se, assim, que a exclusão do juízo de culpabilidade não impõe, necessariamente, a inclusão do juízo de inocência.


A prisão temporária, portanto, não pode ser vista como reconhecimento antecipado de culpa, pois o juízo que se faz ao decretá-la é de periculosidade e não de culpabilidade. Para que o Estado atinja o fim precípuo de sua atuação, que é o bem comum, pode exigir dos cidadãos certos sacrifícios, sendo um deles a privação de sua liberdade antes da sentença definitiva, desde que haja extrema e comprovada necessidade para tanto.


Observa-se que o mesmo texto constitucional excepciona o princípio da presunção de inocência quando cuida dos casos de prisão em flagrante ou por ordem de autoridade judiciária competente (art. 5º, inciso LXI). A privação da liberdade de forma provisória ainda no curso do inquérito policial também pode se afigurar legítima e constitucional, desde que encontre amparo nos interesses superiores da coletividade, no bem comum a ser preservado. Faz parte, portanto, das restrições a direitos individuais que ao Estado é lícito adotar quando sua finalidade primária é a tutela do interesse público.


Assim, compreende-se que, havendo periculum libertatis, com risco efetivo de frustração da aquisição de provas causada pelo suposto infrator, o direito à liberdade do cidadão deve ceder frente ao interesse punitivo do corpo social. Se este cidadão ameaçado em sua liberdade tem em seu desfavor elementos probatórios que o indiquem como provável autor ou partícipe daquelas infrações referidas no inciso III do art. 1º da lei 7.960, de 1989, ou na Lei nº 8.072, de 1990 (fumus comissi delicti), não havendo à disposição da autoridade outros meios de prova aptos a impulsionar as investigações, havendo recusa do imputado em fornecer elementos de sua identificação e residência, esta prisão, em tese, é constitucional.


Tudo deve levar em conta a razoabilidade, a proporcionalidade entre sacrificar-se o direito à liberdade de um indivíduo em prol de toda a sociedade, desde que essa privação seja necessária e adequada.


Dessa forma, constata-se que a perfeita adequação do instituto da prisão temporária com o princípio constitucional da presunção de inocência apenas se fará se esse cotejo for feito à luz do princípio da proporcionalidade, ou da razoabilidade.


Rogério Schietti afirma que “a noção de proporcionalidade das medidas cautelares e, em particular, das que interferem na liberdade do indivíduo é de extrema importância para a própria possibilidade de convivência dessas medidas com a presunção de não-culpabilidade, não sendo raras as vozes que apontam a incompatibilidade desses institutos”[33].


A idéia de proporcionalidade esteve sempre presente no direito, como um princípio que obrigaria o operador a buscar o justo equilíbrio entre os interesses em conflito.


Desenvolvido na Alemanha, baseado em pensamentos jusnaturalistas e iluministas, o princípio da proporcionalidade preconiza que a limitação da liberdade individual só se justifica para a concretização de interesses coletivos superiores, buscando-se, através dele, o justo equilíbrio entre interesses em conflito. No ordenamento jurídico brasileiro, ele complementa o princípio da reserva legal e reafirma o Estado de Direito, podendo ser entendido como uma garantia especial, exigindo-se que toda intervenção na esfera dos direitos fundamentais se dê apenas por necessidade, de forma adequada e na justa medida, segundo lição de Suzana Toledo de Barros[34].


Apesar de não ser regra a positivação expressa do princípio da proporcionalidade nos ordenamentos jurídicos constitucionais ou processuais, estando presente apenas, por exemplo, nos Códigos de Processo Penal da Itália, de 1988, e de Portugal, de 1987, esse fato nunca foi obstáculo a que se aceitasse a existência desse princípio e o aplicasse diante dos casos concretos.


O Ministro Gilmar Mendes ensina que “a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade”[35].


Modernamente, o princípio da proporcionalidade deve ser entendido através da identificação de seus três elementos: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.


A adequação, também conhecida como pertinência, aptidão ou idoneidade, deve indicar se determinada medida tomada pelo Poder Público representa o meio certo para a concretização de um fim de interesse público, se existe adequação entre o meio e o fim colimado pelo Estado. Essa adequação, que será verificada empiricamente, deve ser avaliada de forma objetiva – adequação qualitativa ou quantitativa, e de forma subjetiva – ligada à idoneidade em face do sujeito passivo, como nos ensina Antonio Scarance Fernandes. A medida, continua o ilustre professor, deve “…ostentar qualidade essencial que a habilite a alcançar o fim pretendido (adequação qualitativa), a sua duração ou intensidade deve ser condizente com a sua finalidade (adequação quantitativa) e deve a medida ser dirigida a um indivíduo sobre o qual incidam as circunstâncias exigíveis para ser atuada (adequação subjetiva)”[36].


Assim, a medida cautelar só se legitima quando for capaz de produzir o resultado esperado, quando se mostrar eficaz, adequada, idônea para proteger o direito que se encontra ameaçado na situação concreta. Não se permitirá, portanto, um ataque ao direito do indivíduo se o meio utilizado não se mostrar adequado à obtenção do resultado pretendido.


O segundo elemento é o da necessidade – ou da intervenção mínima, da subsidiariedade, da alternativa menos gravosa, da indispensabilidade ou da proibição de excesso, segundo o qual a medida não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja. Se existem outros meios de alcançar o objetivo pretendido pelo Poder Público, devem ser utilizados os menos gravosos para os cidadãos, os que menos restringirem a esfera dos seus direitos individuais.


Com o objetivo de se impor uma restrição a um direito individual, apresentam-se várias possibilidades de atuação ao Estado, devendo ser escolhida por ele a menos gravosa, não sendo razoável optar por aquela que imponha maiores restrições à obtenção do resultado pretendido, desprezando-se outras que, do mesmo modo, também alcançariam aquele mesmo resultado, porém de maneira menos danosa. Na análise da eficácia da medida não se deve ter em mira o meio mais eficaz, mas o meio suficientemente eficaz, pois nem sempre a medida mais gravosa assegura com maior intensidade o atingimento da medida mais benigna à consecução do fim pretendido.


Segundo Antonio Scarance Fernandes, “a verificação da adequação é feita de maneira excludente, pois, caso se constate que o meio não serve para atingir o fim, a sua utilização deve ser repelida e afastada. A análise da necessidade, quantitativa ou qualitativa, contudo, é feita mediante juízo positivo, por meio do qual se indica, entre os vários meios adequados para atingir um fim, o mais adequado”[37].


Isso significa que a medida cautelar, além de ser adequada para atingir o fim esperado, deve ser a alternativa menos gravosa ao sujeito passivo dentre as expressamente previstas na lei.


Por fim, o terceiro elemento é a proporcionalidade em sentido estrito, segundo o qual a escolha do Poder Público em sua atuação deve recair sobre o meio que, no caso específico, leve mais em conta os interesses em jogo, ou seja, da constatação, entre os valores em conflito, qual deve prevalecer. Essa escolha deve guardar proporcionalidade entre o bem que se objetiva proteger e o sacrifício da liberdade humana, ou seja, deve haver uma relação justa e adequada entre os benefícios obtidos com a medida e os meios empregados para levá-la a termo.


Haverá a observância ao princípio da proporcionalidade se predominar, dentre os valores em conflito no caso concreto, o de maior relevância, evitando-se, dessa forma, que sejam impostas restrições descabidas a direitos individuais se comparadas com o objetivo a ser alcançado.


Assim, segundo lição de Rogério Schietti, “…somente se mostrará legítima a prisão cautelar quando o sacrifício da liberdade do acusado for razoável (ante os juízos de idoneidade e necessidade da cautela), e proporcional (em termos comparativos) à gravidade do crime e às respectivas sanções que previsivelmente venham a ser impostas ao sujeito passivo da medida”[38].


Essa exigência objetiva impedir que o acusado, submetido a uma prisão cautelar, sofra um mal maior do que a própria sanção penal que poderá vir no final do processo, ou seja, que a coerção processual resulte mais gravosa que a prisão-pena.


Dessa forma, segundo ensina Rogério Schietti, deve-se “..,evitar a prisão ante tempus para delitos considerados leves, que não cominem pena privativa de liberdade ou para aquelas situações em que, em avaliação racional, não se espera a efetiva imposição dessa modalidade de sanção. Outrossim, a custódia cautelar deve cessar quando já tenha transcorrido o tempo equivalente à pena estimada para o caso concreto”[39].


O mestre Antonio Scarance Fernandes[40] destaca ainda que, no caso das prisões cautelares, além dos três requisitos que ele chama de intrínsecos (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), são exigidos dois requisitos extrínsecos, quais sejam: a judicialidade e a motivação, ou seja, a necessidade de que as medidas restritivas de direitos sejam impostas por uma autoridade judicial e sempre mediante decisão motivada, fundamentada.


Dessa forma, se a prisão de um indivíduo é um meio que o Estado utiliza para a investigação dos delitos, é claro que esta prisão deve atender ao princípio da proporcionalidade no caso concreto. Necessário se faz aferir se esta prisão é o meio investigatório idôneo para a instrução do inquérito (adequação), se é o meio menos gravoso de que dispõe autoridade para conduzir suas investigações (necessidade) e se no conjunto dos interesses em jogo esta prisão é a medida proporcional a atender fins de interesse público (proporcionalidade em sentido estrito). Além disso, a medida deve ser decretada por um juiz e mediante decisão devidamente fundamentada. Uma resposta negativa a estas indagações inquina de inconstitucionalidade a prisão temporária, por se afigurar medida excessiva, injustificável, não se adequando ao princípio da proporcionalidade.


Em sua obra, Antônio Scarance Fernandes dedica um título à difícil busca da proporcionalidade entre a segurança social e a liberdade individual, tarefa árdua do juiz, no qual aduz o seguinte:


Como visto, no tratamento da prisão e da liberdade, a legislação elaborada logo após a Constituição foi, em regra, rigorosa…Tudo além do que poderia ser considerado o balanceamento necessário entre a segurança social e a liberdade individual, justamente quando a Constituição Federal acenava para a necessidade de ser atingido o ponto de equilíbrio, aumentando a proteção individual da liberdade principalmente com a consagração do princípio da presunção de inocência.


A doutrina, em boa parte, não aceitou esse caminho legislativo. Procurou dar à Constituição exegese no sentido de não ser possível nenhuma prisão que não tenha natureza cautelar instrumental ou final…


A jurisprudência, com algumas exceções, andou no mesmo sentido do legislador, mostrando-se também rigorosa ao interpretar os dispositivos legais atinentes à prisão e à liberdade: afirmou a constitucionalidade da legislação nova restritiva e não admitiu influência na legislação anterior dos novos princípios constitucionais garantidores. Assim, entendeu-se que o princípio da presunção de inocência não impediria as espécies de prisão até então admitidas…


São manifestações legislativas e jurisprudenciais reveladoras de descrença injustificável em relação ao juiz, retirando-lhe o poder de, em cada caso, verificar a necessidade da prisão.


Contudo, nota-se mudança na orientação dos Tribunais Superiores. (…)


Não é fácil atingir o ponto justo e equilibrado, mas a regra deve ser a preservação da liberdade, só se admitindo a prisão se cautelar e quando estritamente necessária. A meta é produzir uma legislação que sirva eficazmente para combate a determinados delitos graves ou à criminalidade organizada, e que, ao mesmo tempo, preserve as garantias essenciais de um processo justo.”[41]


Apesar de difícil a tarefa do juiz em buscar a devida proporção entre a segurança da coletividade e a liberdade do indivíduo, ele não pode abrir mão de tão poderoso instrumento. Conforme ensina Luiz Roberto Barroso, para preservar o ato normativo, a razoabilidade ou proporcionalidade “…oferece uma alternativa de atuação construtiva do judiciário para a produção do melhor resultado, ainda quando este não seja o único possível ou mesmo aquele que mais obviamente resultaria da aplicação acrítica da lei”[42].


Daí advém a importância do juiz criminal garantista, apto a realizar o direito no caso concreto. Somente assim, aplicando-se os princípios constitucionais que regem o processo penal, preserva-se o texto da lei, dando-lhe interpretação compatível com a Constituição Federal.


A privação da liberdade de forma provisória, portanto, ainda no curso da investigação policial, pode se configurar legítima e constitucional, desde que encontre amparo nos interesses superiores de proteção à coletividade, no bem comum a ser preservado. É lícito ao Estado, de forma excepcional, restringir direitos individuais quando sua finalidade primária é a tutela do interesse público, conforme explicitado na própria Constituição Federal. Assim, entende-se que, existindo periculum libertatis, com risco efetivo de frustração na obtenção de provas causada pelo acusado, o seu direito de liberdade deve ceder ao interesse punitivo do corpo social. Se este cidadão, ameaçado em sua liberdade, tem em seu desfavor elementos probatórios que o apontem como provável autor ou partícipe das infrações referidas no inciso III do art. 1º da lei 7.960, de 1989, ou na Lei nº 8.072, de 1990 (fumus comissi delicti), não havendo à disposição da autoridade outros meios de prova aptos a impulsionar as investigações ou não possuindo o acusado residência fixa ou se recusando a fornecer elementos para sua identificação, a prisão temporária é, em tese, constitucional, devendo o decreto de prisão estar suficientemente fundamentado pela competente autoridade judicial, a fim de demonstrar a real necessidade da medida.


6. Conclusão


Em um Estado Democrático de Direito, submetido a uma constituição que eleva a dogma a proteção à liberdade individual e declara expressamente que ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, toda e qualquer restrição a esse direito fundamental deve ser sempre interpretada o mais restritivamente possível.


No entanto, essa mesma constituição prevê a possibilidade de prisão cautelar, desde que em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judicial competente.


Como interpretar tais comandos constitucionais e, além disso, incluir no ordenamento jurídico pátrio uma outra espécie de prisão, denominada temporária, que a primeira vista parece inconstitucional por colidir com certos princípios esculpidos na Carta Magna?


Essa proteção que é dada ao direito do cidadão deve ser sempre preservada, defendida, pois foi conquistada com muito esforço, ao longo de vários anos e consolidada no tempo, permanecendo forte enquanto os regimes ditatoriais que surgiram em seu caminho foram ruindo.


O direito à liberdade, consagrado desde a Carta Magna inglesa, no longínquo ano de 1215, foi se aperfeiçoando, gerando outros direitos também consagrados, em especial o direito de não ser considerado culpado antes de uma sentença penal definitiva, o que gerou o princípio da presunção de inocência, fruto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.


Importante destacar mais uma vez que a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica, incorporado ao nosso ordenamento jurídico no ano de 1992, expressamente também prevê tanto a proteção ao direito à liberdade quanto o princípio da presunção de inocência.


Desde a proclamação desses importantes marcos jurídicos, buscar um equilíbrio entre preservar os direitos fundamentais, como a liberdade, e a defesa da coletividade, sempre foi tarefa das mais árduas. E é exatamente nesse difícil exercício de ponderação que pode-se encontrar o instituto da prisão temporária em contraposição com o princípio da presunção de inocência.


A tarefa não é das mais fáceis, como pôde ser comprovado pela leitura de diversos doutrinadores que se posicionam tanto pela constitucionalidade quanto pela inconstitucionalidade do instituto, apesar da pacificação da questão perante o Supremo Tribunal Federal.


Sendo assim, a única maneira encontrada de se fazer a perfeita adequação do instituto da prisão temporária com o princípio constitucional da presunção de inocência, objetivo desta pesquisa, foi interpretá-lo segundo outro princípio, o da proporcionalidade, ou da razoabilidade.


Prender um acusado antes da sentença penal condenatória definitiva, restringindo seu direito à liberdade, só é possível desde que essa privação seja adequada, necessária e proporcional, visando o bem comum de toda a sociedade.


Adequada porque a medida a ser adotada pelo Poder Público deve representar o meio idôneo para se alcançar o objetivo pretendido; necessária porque se exige que essa medida, dentre aquelas que se apresentam possíveis, seja a menos gravosa ao indivíduo; e proporcional porque a opção escolhida pelo Estado deve buscar a proporcionalidade entre o bem que se pretende proteger com aquela medida e o sacrifício da liberdade individual que será feita por ela.


Graças ao princípio da proporcionalidade, pautado pelos seus três subprincípios, podem conviver o instituto da prisão temporária e o princípio da presunção de inocência, sempre relembrando que no caso das prisões cautelares também devem ser observadas mais duas exigências: a decretação da prisão deve ser feita por autoridade judicial e através de uma decisão devidamente fundamentada, que exponha com clareza os motivos que levaram à decretação daquela medida.


O princípio da proporcionalidade, aliás, deve pautar não só a atuação do Estado no caso de prisões cautelares, mas também todo e qualquer ato que signifique restrições de direitos individuais.


Aliás, o que é o princípio da proporcionalidade senão bom senso? Direito é bom senso, já ensinam os professores nos primeiros anos do estudo do direito. Através da proporcionalidade, ou da razoabilidade, pode-se medir exatamente a medida necessária à aplicação da lei ao caso concreto, ou seja, a atividade jurisdicional do Estado deve sempre se pautar por esse princípio para oferecer à sociedade o que ela procura e exige desse mesmo Estado: justiça.


Só dessa forma, sacrificando-se direitos individuais em prol da coletividade, será possível uma perfeita e harmônica convivência entre os membros da sociedade, exercendo o Estado seu papel de garantir o bem comum.


Essa atuação do Poder Público, no entanto, somente se mostrará legitima quando feita de acordo com os ditames da lei e da constituição e sempre, no caso específico da restrição de direitos fundamentais, feita segundo o princípio da proporcionalidade, ou da razoabilidade.


Pode-se concluir, portanto, que a prisão temporária só deve ser decretada de modo excepcional, para atender a situações particularmente graves, contra os que legitimamente sejam suspeitos de ter praticado um crime (fumus comissi delicti) e existam razões fortes para se acreditar na ocorrência de perigo de fuga ou obstrução do curso da investigação criminal (periculum libertatis), devendo a autoridade judicial levar em consideração as particularidades do caso concreto e indicar o mais precisamente possível as razões da decretação da prisão (motivação). Além disso, a prisão não deve ser ordenada se a privação da liberdade não se mostrar adequada, necessária e proporcional.


Dessa forma, constata-se que não é legítima a prisão anterior à condenação transitada em julgado senão por exigências cautelares indeclináveis de natureza instrumental ou final, sempre com observância ao princípio da proporcionalidade, sob pena de violação ao princípio constitucional da presunção de inocência e, conseqüentemente, ao devido processo legal.


O próprio mestre Cesare Beccaria, um defensor do direito à liberdade e do tratamento digno aos acusados em geral, já preconizava, no século XVIII, que “sendo a privação da liberdade uma pena, não pode preceder a sentença senão quando o reclamar a necessidade”[43]. Quão clara se mostra a lição de Beccaria, mais de duzentos anos depois, quando lida sob a ótica do princípio da proporcionalidade, o que prova a perfeita harmonia entre discursos tão distantes no tempo mas tão próximos na essência, na compreensão do direito.


Tratar o acusado como não-culpado, ou presumir sua inocência, significa, portanto, não tratá-lo como se condenado definitivamente fosse, sem que isso, todavia, signifique a completa impossibilidade de se impor certas restrições aos seus direitos individuais, inclusive a prisão temporária, desde que tal medida se mostre necessária diante do caso concreto, pois só assim a prisão estará em conformidade com a Constituição Federal e com todos os seus princípios aplicáveis ao processo penal, dentre os quais o princípio da presunção de inocência.


 


Bibliografia

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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 23ª edição. Volume 3. São Paulo: Saraiva, 2001.

 

Notas:

[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 243-244.

[2] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Processo Penal. 24ª ed. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 468.

[3] Mirabete, Julio Fabbrini. Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 1998. p. 393.

[4] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 336.

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 13.669-RJ. Relator: Min. Jorge Scartezzini. Brasília, DF, 19 de abril de 2001. Diário de Justiça da União, 20 ago. 2001.

[6] GOMES FILHO, Antonio Magalhães et al. As Nulidades no Processo Penal. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 290.

[7] GOMES FILHO, Antonio Magalhães et al. Op. cit. p. 290.

[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus nº 11.992-RJ. Relator: Min. Edson Vidigal. Brasília, DF, 5 de fevereiro de 2002. Diário de Justiça da União, 18 mar. 2002.

[9] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Milão: Giuffrè, 1973. p. 39.

[10] FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit. p. 328.

[11] Mirabete, Julio Fabbrini. Op. cit. p. 42.

[12] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 61.

[13] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 69-70.

[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 73.338-RJ. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, DF, 13 de agosto de 1996. Diário de Justiça da União, 19 dez. 1996.

[15] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Op. cit. p. 70.

[16] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 64.

[17] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 67.

[18] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 67-68.

[19] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 69.

[20] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 465.

[21] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 467.

[22] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 467-468.

[23] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 468.

[24] GOMES, Luiz Flávio. Revista Jurídica. 189. Porto Alegre: Síntese, 1994. p. 74.

[25] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. p. 643-644.

[26] RANGEL, Paulo. Op. cit. p. 644.

[27] RANGEL, Paulo. Op. cit. p. 581.

[28] GOMES FILHO, Antonio Magalhães et al. Op. cit. p. 279.

[29] CAPEZ, Fernando. Op. cit. p. 238.

[30] GOMES, Luiz Flávio. Direito de Apelar em Liberdade. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 49.

[31] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 7.655-GO. Relator: Min. Vicente Leal. Brasília, DF, 15 de outubro de 1998. Diário de Justiça da União, 23 nov. 1998.

[32] MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. cit. p. 41.

[33] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Op. cit. p. 94.

[34] BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.

[35] MENDES, Gilmar Ferreira et al. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 250.

[36] FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit. p. 58.

[37] FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit. p. 59.

[38] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Op. cit. p. 99.

[39] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Op. cit. p. 100.

[40] FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit. p. 58.

[41] FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit. p. 364-365.

[42] BARROSO, Luiz Roberto. José Ronald Cavalcante Soares (Coordenador). Princípio da Razoabilidade e da Proporcionalidade. Estudos de Direito Constitucional em homanagem a Paulo Bonavides. São Paulo: LTR, 2001. p. 342.

[43] BECCARIA, Cesare. Op. cit. p. 69.


Informações Sobre o Autor

Alberto André Barreto Martins

Procurador do Banco Central do Brasil em Brasília-DF, Assessor Jurídico da Coordenação-Geral de Processos de Consultoria Bancária e de Normas da Procuradoria-Geral do Banco Central, Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília-UNICEUB e Especialista em Direito, Estado e Constituição.


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