Resumo: Este artigo apresenta o contexto histórico em que se desenvolveu o direito à alimentação adequada no mundo, destacando-se, em seus entremeios, documentos e eventos que, de algum modo, contribuíram para a sua concretização. Igualmente, explicita-se a definição da expressão alimentação adequada, a fim de tornar o seu uso inteligível no transcorrer deste estudo. Por derradeiro, elabora-se um breve arrazoado sobre a fundamentalidade do direito em apreço, ressaltando, para tanto, a sua inclusão no rol constitucional de direitos e garantias por meio da cláusula de abertura firmada no art. 5o § 2o, da Constituição Federal de 1988, bem como a sua identidade com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Abstract: This article presents the historical context that was developed the right to adequate food in the world, doing it by emphasizing the documents and events that, in such way, contributed for its implementation. It also elucidates the definition of the expression adequate food, in order to turn its use comprehensive. Finally, it elaborates a brief argumentation about the fundamentality of this right, therefore, accentuates its inclusion in the constitutional roll of rights and remedies through the opening clause established on the 5th.article, second paragraph, as well as its identity with the principle of human dignity.
1. Contexto histórico
Desde a Pré-História há relatos sobre os esforços empreendidos no mundo, por aldeias inteiras, para satisfazer a necessidade básica de acesso à alimentação[1], contudo, somente a partir do século XIV esta passou a ser reivindicada em face do Estado.
Conforme Trindade[2], a primeira das insurreições com o fito de assegurar a subsistência humana data de julho de 1378, em Florença, na Itália, quando os ciompi, trabalhadores têxteis diaristas, e os pequenos proprietários burgueses, insatisfeitos com as condições de fome e miséria a que eram submetidos, tomaram o poder local e saquearam as casas dos mais abastados.
O próximo registro deu-se em 1601, quando o governo da Inglaterra, para conter a massa de desempregados que lhe rodeava, criou
“as famosas Leis dos Pobres, que tornavam as paróquias responsáveis pelo sustento de seus pobres, ou seja, dos residentes que perdiam seus meios de vida. A mesma lei também procurava dar trabalho aos destituídos, fornecendo-lhes um estoque de matérias-primas, como lã, que poderiam fiar e tecer e colocar à venda.” [3]
Na França, durante o século XVIII, os clamores foram encorpados aos escritos de Jean Jacques Rousseau por meio de sua análise sobre a constituição das diferentes classes sociais e dos privilégios dos mais abastados, tendo concluído que:
“(…) a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza, tira a sua força e o seu crescimento do desenvolvimento das nossas faculdades e dos progressos do espírito humano, tornando-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis.” [4]
Destarte, Rousseau trouxe novos elementos às discussões sobre a desigualdade, na medida em que afirmou que a pobreza não decorria da natureza humana ou do privilégio divino de uns poucos em face dos demais, mas dimanava da apropriação das terras, muitas vezes ilícita e injusta, e de todas as vantagens recolhidas sobre aquelas.
Para o genebrino, portanto, eram os homens, e o seu anseio por poder, que instituíam as desigualdades sociais e, em casos extremos, impediam, inclusive, o exercício dos direitos mais essenciais pelos mais fracos.
“Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram sem remédio a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, de um astuta usurpação fizeram um direito irrevogável, e, para proveito de alguns ambiciosos sujeitaram para o futuro todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria.”[5]
Nesse sentido, discorre Coutinho ao comentar sobre as reflexões de Rousseau:
“ele mostra como a raiz da desigualdade está na propriedade privada, na divisão do trabalho que a acompanha, nos conflitos de interesse e na desigualdade que emergem necessariamente da ação do mercado (…) para Rousseau, ao contrário, se há uma ‘mão invisível’ no mundo do mercado, ela conduz não ao bem-estar geral, mas à luta hobbesiana de todos contra todos, à alienação e à desigualdade”[6].
Rousseau foi também um dos responsáveis pela democratização de direitos e pela defesa da igualdade entre todos os cidadãos[7], sobretudo por meio de seu Contrato Social, de 1762, quando fomentou a união de todos em prol de uma vontade geral, considerando que:
“Como os homens não podem criar novas forças, mas só unir e dirigir as que já existem, o meio que têm para se conservar é formar por agregação uma soma de forças que vença a resistência, com um só móvel pô-las em ação e fazê-las obrar em harmonia (…) Esses artigos quando bem entendidos se reduzem todos a um só: a alienação total de cada sócio, com todos os seus direitos, a toda a comunidade; pois, dando-se a cada um por inteiro, para todos é igual a condição, e, sendo ela para todos igual, ninguém se interessa em torná-la aos outros onerosa”.[8]
Conforme observado por Bonavides [9], Rousseau defendia que a vontade geral, expressa sob a figura do contrato social, não poderia ser vista senão como uma declaração política de todos, o que impende o seu usufruto também por todos, justificando, para tanto, que:
“(…) o corpo soberano que surge após o contrato é único a determinar o modo de funcionamento da máquina política, chegando até mesmo a ponto de poder determinar a forma de distribuição da propriedade, como uma de suas atribuições possíveis, já que a alienação de cada parte contratante foi total e sem reservas. Desta vez, estariam dadas todas as condições para a realização da liberdade civil, pois o povo soberano, sendo ao mesmo tempo parte ativa e passiva, isto é, agente do processo de elaboração das leis e aquele que obedece a essas mesmas leis, tem todas as condições para se constituir enquanto um ser autônomo, agindo por si mesmo.”[10]
Em 1789, a Revolução Francesa foi deflagrada, motivada por uma crise interna multifacetada. Primeiramente, esta crise caracterizou-se pela degeneração fiscal do Estado francês devido aos elevados gastos da Corte, que, cumulados ao longo do tempo, tornaram-se insustentáveis. Ela também decorreu de um descontentamento dos burgueses para com a condução política do Rei, sobretudo, pelo protecionismo em favor da aristocracia. Aliada aos dois aspectos citados, quais sejam, o fiscal e o político, a crise evidenciava-se, ainda, no âmbito social e econômico por meio da miséria disseminada entre os camponeses e o pequeno proletariado, especialmente pelas parcas safras entre 1788 e 1789. [11]
A burguesia, conforme o apregoado por Sieyès[12], se autodenominava como uma das principais responsáveis pelo sustento do Reino, contudo, sentia-se excluída dos espaços de decisão e dos privilégios de que gozavam nobreza e clero[13]. Por isso, estava decidida a tomar o governo da nação através de uma revolução.
Para tanto, a burguesia barganhava a adesão dos camponeses e dos demais trabalhadores à sua causa, entendendo esta como a única maneira de alcançar superioridade quantitativa em relação à nobreza e, assim, governar a França.
Para os campesinos, a Revolução significava uma oportunidade ímpar de garantir alguns dos direitos mais básicos, dentre os quais a sua própria sobrevivência, haja vista que, naqueles tempos de crise agrícola e econômica, pouco lhes restava, além de “peregrinar pelas cidades e pela zona rural, buscando sobrevivência na mendicância ou extravasando seu ódio aos privilegiados mediante saques e atentados contra senhores rurais”. [14]
Assim, os pleitos de ambos os grupos se conjugavam e consolidavam o escopo de tomada do poder. Os socialmente vulneráveis não mais suportavam a miséria, por isso, decidiram fortalecer a burguesia e, conseqüentemente, contribuir para a insurreição.[15] Os mais abastados, por seu turno, eram dotados de bens, todavia não lhes era concedido espaço no governo do Estado, nem possuíam condições de obtê-lo sozinhos, o que explicava a sua vinculação aos demais.
Em 1789, a Revolução findou com a ascensão da burguesia ao poder. Este fato, entretanto, diferentemente do pactuado entre os grupos revolucionários, não se traduziu na concessão de direitos em favor dos camponeses e pequenos trabalhadores urbanos.
Na realidade, os próprios fundamentos ideológicos da Revolução Francesa se encarregaram de apartar os responsáveis pela derrocada do Antigo Regime. Ao se estabelecer no governo, a burguesia cuidou de direcionar suas ações para o fortalecimento do seu poder, investindo na política liberal e no interesse privado[16]. Tais providências, por seu turno, em nada se comungavam com os anseios dos demais revolucionários, haja vista que não considerava a sua condição de vulnerabilidade social, tampouco a necessidade de intervenção do Estado em seu favor. Daí porque concluir que a gestão burguesa, ao invés de colaborar para a emancipação dos desprovidos, findou por lhes perpetuar o sofrimento, que, no mais das vezes, se arrematava pela extrema pobreza.
A proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, somente veio a ratificar a matriz liberal e protecionista da Revolução, conforme demonstram os artigos 1o. e 17, referentes à igualdade e à propriedade, respectivamente.
“Art. 1o. – Os homens nascem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum. [..]
Art. 17. – Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indenização.”
É verdade que esta declaração trouxe alguns lampejos sobre a intervenção do Estado para a segurança de todos e a obrigação de zelo para com coisa pública pelos seus administradores. Todavia, nada lhes garantia exeqüibilidade, conforme o infra transcrito:
“Art. 12. – A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; esta força é, pois, instituída para fruição por todos, e não para a utilidade particular daqueles a quem é confiada. [..]
Art. 15. – A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração.”
A Constituição Francesa de 1791 foi mais adiante, determinando o socorro público, que deveria ser ofertado pelo Estado, por meio de abrigos assistenciais para desprovidos, nos termos seguintes: “Será criado e organizado um estabelecimento geral de socorros públicos para criar crianças expostas, aliviar os pobres e enfermos e prover trabalho aos pobres válidos que não o teriam achado”.
Em 1795, na Inglaterra, grande nação fabril, repleta de trabalhadores sujeitos a condições insalubres, passou-se a implementar “‘o sistema de abonos’ ou de aditamento aos salários, acrescentando-lhes um valor que flutuava segundo o preço do pão, o que garantia aos pobres, independente de seus proventos, uma renda mínima”. [17]
As preocupações com a realidade econômica evidenciaram-se mais claramente no ano de 1798, quando Thomas Malthus[18] publicou o livro Ensaio sobre a população, no qual defendeu que a produção agrícola em um curto período não mais seria suficiente para o contingente populacional no mundo, pois enquanto aquela crescia em progressão aritmética, este crescia em progressão geométrica, o que fatalmente incidiria em um colapso mundial. E, pior, asseverava que:
“(…) todas as formas de assistência social seriam inúteis e até perniciosas, tanto porque estimulariam os miseráveis a se acomodarem e casarem sem condições de sustentar a prole, como porque, retendo os trabalhadores nas paróquias beneficentes, restringiriam a conveniente mobilidade da mão-de-obra.” [19]
Posteriormente, em 1834, foi editada em solos ingleses a Poor Law Amendment Act, ou a New Poor Amendment, “um estatuto de insensibilidade incomum, deu aos trabalhadores (da Inglaterra) o auxílio-pobreza somente dentro das novas workhouses (…) e retirou a garantia paroquial de uma manutenção mínima.” [20] Esta mesma lei estabelecia que em troca do auxílio, as famílias eram obrigadas a viver em abrigos diferenciados por gênero, perdendo, assim, parte significativa de sua autonomia.
A partir dos anos 40 do século XIX, o economista alemão Karl Marx contribuiu para novas discussões sobre direitos, agora, contudo, direcionadas aos direitos sociais, especialmente aqueles vinculados às lutas proletárias.
Diferentemente de Malthus, Marx defendeu – e posteriormente demonstrou – que não havia uma lei natural de crescimento das populações, mas “apenas tendências ou ciclos demográficos históricos, que mudam de um período para outro de acordo com os tipos de organização social”.[21]
Para o economista, o grande problema se consubstanciava no modo de organização e de produção em que estava pautada a sociedade, que, uma vez afeita ao capitalismo explorador e opressor, tenderia a instituir um “‘exército industrial de reserva’, condenado ao desemprego ou subemprego, a baixos salários, condições de vida miseráveis e fome persistente”. [22]
No título A questão judaica, alertou para o debate sobre o Estado e as diferenças impingidas pelo exercício daquele entre os homens, conforme citado abaixo:
“Longe de eliminar de fato as diferenças provenientes de religião, nascimento, ocupação etc., o Estado só existe sobre essas premissas, ele só se sente como Estado político e só faz valer a sua genialidade em contraposição a esses seus elementos, sendo que o limite da emancipação política se manifesta imediatamente no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre.” (grifo nosso)[23]
Ali, Marx se debruçou sobre o Estado e a maneira como fora constituído, notadamente como o mesmo servia para justificar e perpetuar o poder burguês. Afirmava, inclusive, que o fato das declarações e constituições determinarem diversamente, não alterava esta verdade, mas, em algumas circunstâncias, colaborava para o fosso existente entre as classes, na medida em sustentavam uma pseudoigualdade – de fato, inexistente.
Em 1848, Marx publicou, juntamente com Friederich Engels, o Manifesto Comunista, obra significativa pela análise firmada sobre o capitalismo e a necessidade de uma revolução conduzida pelos proletários, demonstrando as injustiças provocadas pelo modo de aquisição burguês e sublinhando, como havia feito Rousseau séculos antes, os males vinculados à propriedade, conclamou: “Proletários de todo o mundo, uni-vos”.
Observa-se, então, o crescimento do movimento de operários, de livres pensadores e de profissionais liberais em prol dos direitos dos trabalhadores, principalmente os concernentes ao seu bem-estar e à sua condição enquanto cidadãos. Aqui, definitivamente, os direitos deixam de ser normas postas, para se tornarem objetos de lutas e perquirição entre classes.[24]
Contudo, a questão permaneceu latente até o final do século XIX, quando a Inglaterra suportou uma crise de escassez de trigo, decorrente do aumento de sua demanda, embora sua oferta permanecesse quase estática. [25]
Naquele período, o assunto tornou-se recorrente nas principais rodas inglesas, tanto pela publicização dos estudos de Cornelius Walford, em 1878, que “analisava as causas de mais de 350 surtos de fome que haviam flagelado os povos ao longo dos séculos” [26], como por meio de um discurso de Sir William Crookes na Associação Britânica para o Progresso da Ciência em 1898, quando a emergência da crise de alimentos alastrou-se juntamente com o anseio de se encontrar meios sustentáveis para a sua superação.
Pela primeira vez, também, teve-se a compreensão de que o provimento aos alimentos deveria ser encarado como garantia, e não como caridade do governo em favor da população. [27]
Em 1914, deflagrou-se a I Guerra Mundial, causando morte, fome e horror no mundo ocidental. Estima-se que em razão do conflito
“Cerca de seis mil pessoas foram mortas todo dia durante quatro anos (totalizando 8,5 milhões). Tomaram parte na guerra 65 milhões de soldados, e desses cerca de 37 milhões foram feridos, dos quais aproximadamente sete milhões aleijados para sempre (…) Orçamentos nacionais eram exauridos no socorro aos sobreviventes. As taxas de natalidade caíram bruscamente, as economias nacionais operavam a uma pequena fração de sua capacidade, a agricultura estagnou, e a fome e a pobreza surgiam a cada inverno.” (grifo nosso) [28]
Depois disso, o próximo enfrentamento institucionalizado ao pauperismo somente ocorreu “com a revolução que instaurou o socialismo na Rússia em 1917, e acelerou a implementação de medidas de proteção social”[29], inclusive, por meio de sua constituição escrita.
Ressalta-se, contudo, que tais feitos do governo russo não foram fruto de sua benevolência, mas deveu-se, em grande medida, às reivindicações dos camponeses e operários por pão, paz e terra.[30]
O conflito mundial, por sua vez, somente findou formalmente em 1919, com a assinatura do Tratado de Versalhes, que estabelecia aos países vencidos, principalmente para a Alemanha, a responsabilidade de reconstruir os demais, além da obrigação de ceder parte de seu território para a composição da Tchecoslováquia, da Polônia e da Iugoslávia.
Como sucedâneo da I Guerra Mundial, foi criado o Pacto da Liga das Nações (1919), “para melhorar a segurança, garantindo a paz, os direitos dos grupos e das pessoas e a cooperação entre os países” [31], juntamente com a Organização Internacional do Trabalho, com a finalidade de promover padrões internacionais de condições de trabalho e bem-estar. [32]
No mesmo ano, uma nova era foi formalizada por meio da Constituição de Weimar, da Alemanha. Esta, semelhantemente ao ocorrido na Rússia, resultava da demanda dos movimentos populares alemães, com destaque para o seu movimento operário, aliado ao seu contexto econômico caótico do pós-guerra. [33]
Por meio desta Constituição, os direitos sociais passaram a ser normatizados e, por isso, formalmente exigíveis. Suas inovações influenciaram toda uma geração de constituições que lhe seguiram, a exemplo da Constituição brasileira de 1934, demandando uma nova postura do Estado, agora efetivo provedor dos direitos individuais e coletivos.
Um exemplo dos novos tempos pode ser sistematizado pelo exercício do direito de propriedade, previsto na Carta Constitucional Alemã como elemento vinculado à função social
“(…) com a célebre fórmula: ‘ A propriedade acarreta obrigações. Seu uso deve visar o interesse geral.’ (art. 153)-,a repartição das terras (reforma agrária) (art. 155), a possibilidade da ‘socialização’ de empresas (art. 156), a proteção ao trabalho (art. 157), o direito de sindicalização (art. 159), a previdência social (art. 161) (…)”[34]
No continente americano, por sua vez, os primeiros escritos sobre alimentação e escassez ocorreram na década de 20, nos Estados Unidos, em razão de uma crise de produtividade, quando
“(…) o Agricultural Yearbook, uma publicação do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, publicou um extenso artigo intitulado ‘O Uso de Nossas Terras para Plantações, Pastos e Florestas’. Embora as conclusões fossem expostas em termos cautelosos, os autores estavam visivelmente preocupados com a capacidade dos Estados Unidos de alimentarem uma população de 150 milhões de habitantes”[35]. (grifo nosso).
A apreensão dos governantes e estudiosos diverge do anteriormente vigente, não mais se debruçando sobre os alimentos propriamente ditos, mas sobre as alternativas eficazes de promoção e acesso à alimentação adequada para o contingente populacional do mundo.
A demanda por alimentos inaugurou uma nova fase quando passou a ser compreendida como direito dos cidadãos e dever do Estado, tal qual proclamava Goodfellow, “(…) o homem não precisa apenas de comida, mas de uma organização para obter comida”.[36]
Em 1929 a bolsa de Nova Iorque foi à bancarrota, juntamente com o sistema financeiro americano. Milhares de trabalhadores se viram desempregados, tendo que clamar por auxílio governamental, que chegou somente em 1933 com o plano econômico intitulado New Deal, “baseado nas idéias do economista inglês John Maynard Keynes, que defendia um plano ativo do Estado no cenário econômico”. [37]
Através da política do welfare state, instrumentalizada pelo supracitado plano, durante o governo do presidente Franklin Delano Roosevelt, frentes de trabalho foram abertas, incluindo desempregados e subempregados na modernização e na construção de infraestrutura básica no país; créditos rurais foram disponibilizados para pequenos agricultores; e a previdência social foi implementada.
Significativa, ainda, para o estudo ora plasmado, foi a criação, pelo mesmo governo, do Food Stamp Program, “que concedia cupons de alimentação para famílias pobres comprar alimentos em estabelecimentos credenciados pelo governo.” [38]
Em janeiro 1941, o presidente Roosevelt profere o famoso discurso Four freedoms, quando ressaltou a idéia de que “(…) true individual freedom cannot exist without economic security”. [39]
No mesmo ano, os Estados Unidos e quase todos os demais países americanos foram conclamados a se imiscuir na II Guerra Mundial, já deflagrada há dois anos.
A partir daí a história da I Guerra Mundial se repete, todavia, em proporções expressivamente maiores, haja vista que, nesta quadra, o mundo já era, quase que em sua totalidade, modernizado, gozava de um maior acesso às armas atômicas e bélicas, era composto por exércitos mais numerosos, formado por países mais poderosos e, principalmente, dispostos a vencer o conflito a qualquer custo.
Não pode ser olvidado que os países periféricos, também, suportaram grandes prejuízos com a guerra, sobretudo pela limitação no acesso a capitais para investimento e pelo desabastecimento, no mercado mundial, de alguns gêneros alimentícios pelos países desenvolvidos produtores.
Tal política não era infundada. Agindo assim, os países desenvolvidos pressionavam as nações mais pobres para o ingresso no conflito, através da cessão de seus militares e de seus espaços territoriais para treinamento bélico. Em contrapartida, as nações abastadas ofertavam-lhes segurança, capital e alimentos.
Este amparo, embora revestido de caráter beneficente, era nitidamente devastador à medida que gerava um novo ciclo de dependência entre os países em desenvolvimento e os países desenvolvidos e perpetuava o modelo de relações já cristalizadas desde o período colonial.
Finda a guerra em 1945, tem-se um quadro caótico de miséria e destruição por todo o globo. Entre vencedores e vencidos, observa-se um movimento de franca estagnação na economia, de supressão dos direitos sociais e de reestruturação da política interna.
No intuito de oportunizar a reconstrução dos países vencidos no conflito, foi, então, anunciado o Plano Marshall, o qual tinha por meta financiar e reestruturar as nações combalidas, o que, em alguns casos, custou-lhes a própria soberania, dada a ingerência dos vitoriosos em suas leis e sobre as políticas ali implementadas. [40]
Ainda, para que fossem efetivadas ações internacionais de monitoramento, promoção e defesa do direito à alimentação adequada, inaugurou-se a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em 1945, tendo como principal finalidade atuar em forma de fórum neutro para negociar acordos e debater políticas de combate e erradicação da fome. [41]
Em 10 de dezembro de 1948, como marco emblemático contra os horrores perpetrados na II Guerra Mundial, foi promulgada, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que dentre outros avanços, formalizou a exigibilidade do direito à alimentação, a saber:
“Art. 25. Todo homem tem o direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive, alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”[42] (grifo nosso)
Nos anos 60, por conta da má colheita de cereais nos grandes países produtores, especialmente União Soviética, Índia e Estados Unidos, uma nova crise de alimentos assolou o mundo. Em ordem de debelá-la, foram concedidos incentivos estatais para modernizar o setor agrícola[43], direcionados especialmente à Ásia.
Naquele continente, deu-se o prelúdio da política que, posteriormente, restou conhecida como Revolução Verde[44], porque ensejadora de um aumento na produtividade das terras e na diminuição do preço dos alimentos em âmbito mundial, contrariando as pessimistas teses malthusianas.
Em 1966, o direito à alimentação tornou-se pauta específica do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que determinou o seguinte:
“Artigo 11[…]
§1º – Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive, à alimentação, vestuário e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre convencimento.
§2º – Os Estados-partes no presente pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessários para:
1. Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais.
2. Assegurar uma repartição eqüitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios” (grifo nosso) [45]
Desde então, os Estados foram instados a prover os meios necessários para a subsistência de seus cidadãos. Senão vejamos:
“(…) todo Estado-Parte do Pacto é obrigado a assegurar que toda pessoa sob sua jurisdição tenha acesso ao mínimo essencial no tocante ao direito à alimentação, que deve ser suficiente, nutricionalmente adequada e segura, para assegurar a erradicação da fome”[46].
Alguns países, dentre os quais o Brasil, resistiram por longas décadas até subscreverem e implementarem o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Tal desídia deve-se, em grande medida, às políticas neoliberais adotadas a partir dos choques petrolíferos[47], notadamente pelos governos Margaret Tatcher, na Inglaterra, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, durante a década de 80.
Estas políticas disseminaram a lógica de estado mínimo, que deveria realizar cortes drásticos nos programas de bem-estar para manter a dívida pública sanada, a inflação debelada e promover o crescimento econômico da nação. Reverenciadas por alguns, abominadas por outros, estas práticas findaram por colocar a ordem social em segundo plano, o que colaborou com o prejuízo à implementação do direito à alimentação adequada. [48]
Entre 1987 e 1989, malgrado o neoliberalismo reinante, um estudo elaborado pela Subcomissão de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre o direito à alimentação adequada reafirmou a obrigação do Estado
“(…) de respeitar, proteger e garantir (facilitar e prover) todos os direitos humanos, sejam políticos, civis, econômicos, sociais ou culturais. Respeitar inclui uma obrigação de não-interferência (…) A obrigação de proteger requer do Estado medidas para prevenir que terceiros como empresas ou indivíduos interfiram ou privem os indivíduos de seus direitos. Facilitar implica num dever de tomar medidas positivas para permitir que indivíduos e comunidades desfrutem dos seus direitos”[49].
A omissão estatal, entretanto, persistiu. Muito em razão da conjugação das políticas neoliberais com o processo de globalização econômica forjado pelas “medidas econômicas neoliberais voltadas para a reforma e estabilização de economias ‘emergentes’ – notadamente latino-americanas” [50] – ditadas pelo Consenso de Washington no início da década de 90, que viabilizou “a transnacionalização dos mercados e a privatização do Estado, condenando os tributos progressivos e os gastos sociais, em prol da austeridade monetária”. [51]
O recrudescimento deste programa findou por prejudicar não apenas a condução das políticas públicas em termos globais, como também as populações mais vulneráveis dos países em desenvolvimento[52], que se viram negadas aos incrementos e empréstimos, sujeitas a elevados índices de desemprego e à crescente desigualdade social[53], impedidas, portanto, do acesso aos direitos sociais mais básicos, dentre os quais, destaca-se a alimentação adequada.
Destarte, se há algum crédito neste período pelo desenvolvimento e ulterior reconhecimento da alimentação adequada, este não se deve às políticas estatais, mas ao trabalho desempenhado pelas organizações não-governamentais, as quais firmaram posição sobre a relevância do tema e mobilizaram diversos países para a causa através do encontro conhecido como Cúpula Mundial da Alimentação, em 1996, ocasião em que:
“Mais de 1.000 organizadores oriundos de mais de 80 países participaram do fórum paralelo de organizações não-governamentais durante a conferência. Vários governos foram também ativos em exigir que a Conferência reconhecesse e construísse o direito à alimentação. Eles obtiveram sucesso considerável: Na declaração da Cúpula Mundial da Alimentação, os líderes de Estado e Governo ali reunidos reafirmaram o direito de todos ao acesso seguro e a alimentação nutritiva, consistente no direito à alimentação adequada e no direito de todos serem livres da fome”[54].
Em seguida, foi adotado pela Organização das Nações Unidas o Comentário Geral nº. 12, que discorreu sobre a acessibilidade, a adequação e a freqüência à alimentação adequada[55], ratificando os três níveis de obrigação sobre a matéria, preceituados ainda em 1987, quais sejam: respeitar, proteger e garantir, conforme o disposto por Carlos Villán Durán:
“La OG 12 ha colocado con firmeza el derecho a la alimentación en una perspectiva basada en el derecho, en la que los países asumen obligaciones positivas y negativas de respetar, proteger y realizar ese derecho en relación con todos los seres humanos. Además, la OG 12 describe minuciosamente de qué manera los Estados incurren en violación del derecho a la alimentación”[56].
Em 2002, a FAO decidiu por criar “um grupo de trabalho intergovernamental para elaborar um conjunto de diretrizes para apoiar os esforços das nações para a realização progressiva do direito humano à alimentação adequada” [57], findando na publicação das Diretrizes Voluntárias para o Direito à Alimentação Adequada em 2004.
Tal instrumento foi emblemático tanto por democratizar, como por sistematizar os fundamentos e perspectivas do direito à alimentação adequada, sendo consagrado como “a primeira iniciativa de governos em interpretar um direito econômico, social e cultural”, além de “recomendar ações para apoiar a sua realização”, e tem norteado, desde então, todas as iniciativas implementadas na sua consecução.
Nos anos mais recentes, notadamente, a partir de 2006, a FAO tem buscado fomentar ações de promoção e monitoramento com enfoques diferenciados por continente, no intuito de criar diretrizes e intervenções que se assemelhem com o demandado por cada um, de modo a tornar a realização da alimentação adequada mais eficaz.
2. Definição
O direito à alimentação adequada é aqui entendido como o acesso de todos os seres humanos “(…) aos recursos e aos meios para produzir ou adquirir alimentos seguros e saudáveis que possibilitem uma alimentação de acordo com os hábitos e práticas alimentares de sua cultura, de sua região e de sua origem étnica”. [58]
É, pois, premissa básica de sobrevivência de todos os seres humanos, mas que não se limita ao simples acesso à “ração básica nutricionalmente balanceada” [59], levando em consideração também os aspectos pertinentes aos hábitos e práticas, além da quantidade e qualidade adequadas da alimentação.
Ademais, o direito à alimentação adequada preceitua que sua satisfação plena somente se dará quando todos os membros da sociedade tiverem acesso aos nutrientes indispensáveis para uma vida saudável.
Destarte, a realização do direito à alimentação jamais poderá ser confundida com a mera satisfação da fome[60], uma vez que o consumo de alimentos por si não propicia nutrição satisfatória se não for dotado das quantidades e qualidades necessárias para garantir equilíbrio físico e psicológico ao ser humano.
Nesse esteira, a FAO tem entendido que para o atual contexto – físico e ambiental – da América Latina, um adulto deverá ingerir diariamente, no mínimo, 1900 kcal. [61]
Mas, repisa-se, não basta ingerir a quantidade básica de calorias preceituada. Fundamental também é a mensuração da quantidade e da qualidade dos alimentos ingeridos, ou seja, se constantes de porções regulares de proteínas, vitaminas e minerais.[62]
Deve-se fazer incluso, nesta discussão, o acesso à água potável, que se caracteriza por compor o núcleo essencial da alimentação adequada. Sem água não podem ser providenciados, elaborados e comercializados apropriadamente os gêneros alimentícios, tendo em vista ser aquela a substância mais simples e de custo mais diminuto para proceder tanto com a higienização como com a efetiva preparação destes.
Ademais, sem a regular ingestão de água potável pelo organismo, a alimentação se torna prejudicada, o que pode incidir, inclusive, em óbito, haja vista que o ser humano, pela sua própria constituição fisiológica, demanda um acesso satisfatório à água limpa e tratada para fins de digestão, absorção e excreção.[63]
Ainda, sobre a ingestão dos nutrientes adequados, convém pontuar que, desde os anos 40 do século XX, Josué de Castro já destacava que a ingestão da alimentação, para ser considerada saudável, deveria ser compatível com as necessidades de cada ser humano, por isso sublinhava a relevância do Estado cuidar não apenas dos acometidos pela fome crônica, que visivelmente flagela, mas também zelar em relação aos atingidos pela fome aguda, que silenciosa e paulatinamente fragiliza. Nas próprias palavras de Castro, elucida-se:
“(…) É que existem duas maneiras de morrer de fome: não comer nada e definhar de maneira vertiginosa até o fim, ou comer de maneira inadequada e entrar em um regime de carências ou deficiências específicas, capaz de provocar um estado que também pode conduzir à morte. Mais grave ainda que a fome aguda e total, devido às suas repercussões sociais e econômicas, é o fenômeno da fome crônica ou parcial, que corrói silenciosamente inúmeras populações do mundo.”[64] (grifo nosso)
Outro exemplo de ingestão inadequada de alimentos advém dos acometidos pelos “distúrbios nutricionais decorrentes da ingestão excessiva ou desequilibrada de energia e/ou nutrientes, em particular a obesidade, problema crescentemente importante no país” [65], que aparentam estar bem alimentados, contudo, a ingestão excessiva de alimentos nem sempre lhes garante o suprimento nutricional devido, ensejando doenças das mais diversas ordens. Dentre as mais comuns, citam-se a cardiopatia, a hipertensão e a diabetes.
Nota-se, portanto, que o efetivo cumprimento do direito à alimentação adequada combina a adequação entre a quantidade de calorias e a qualidade dos nutrientes ingeridos, razão pela qual não podem ser destacados do objetivo maior, qual seja, a disponibilidade de alimentos para todos, indistintamente, respeitando-se os seus aspectos culturais, regionais e étnicos, conforme o estabelecido pela segurança alimentar e nutricional.
Sob os auspícios da perspectiva de segurança alimentar e nutricional, a realização do direito à alimentação adequada tem adquirido novos contornos. Diz-se isto porque, até o início do século XX a discussão sobre alimentos tinha por propósito exclusivo combater a fome[66], portanto, o “estado crônico de carências nutricionais que podem levar à morte por inanição ou às doenças da desnutrição” [67], desconsiderando por completo os fundamentos e os elementos norteadores que lhe estavam adstritos.
A partir de então a idéia de segurança alimentar tornou-se conjugada ao direito à alimentação adequada. Primeiramente, no contexto da segurança nacional, ao se identificar com a “capacidade de cada país de produzir sua própria alimentação de forma a não ficar vulnerável a possíveis cercos, embargos ou boicotes de motivação política ou militar”. [68]
Em seguida, especialmente nos meados da década de 50, a segurança alimentar trouxe para o centro das discussões a assistência alimentar, que deveria ser implementada por meio dos excedentes agrícolas como solução para todos os males ocasionados pela falta de alimentação. [69]
Posteriormente, quando da década de 80, incluiu em seu rol de mecanismos para a obtenção do direito à alimentação adequada, a “oferta estável e adequada de alimentos e de garantia de acesso e de qualidade. Para tanto, reafirma-se a necessidade da redistribuição dos recursos materiais, da renda e de redução da pobreza (…)”. [70]
Consoante Valente, entre o final da década de 80 e a década de 90, foi adicionada à expressão segurança alimentar o termo “nutricional”, de modo a abranger, também,
“(…) questões relativas à qualidade sanitária, biológica, nutricional e cultural dos alimentos e das dietas. Ao mesmo tempo, entram em cena as questões de equidade, justiça e relações éticas entre a geração atual e as futuras, quanto ao uso adequado e sustentável dos recursos naturais, do meio ambiente e do tipo de desenvolvimento adotado, sob a égide da discussão de modos de vida sustentável.” [71]
Assim, o conceito de segurança alimentar que inicialmente comportava os requisitos de food safety e food security [72] – sendo o primeiro decorrente das “condições de acesso físico e econômico de todos aos alimentos em quantidade e qualidade suficiente”[73], enquanto que o segundo refere-se à inocuidade dos alimentos – findou por alcançar aspectos mais complexos, como a equidade e a sustentabilidade.
Este conceito trouxe consigo novas discussões, como a pertinente aos organismos geneticamente modificados[74], elementos de natureza ambígua que ao longo da sua história têm reiteradamente prejudicado a realização da alimentação adequada tanto para as gerações presentes como para aquelas do porvir.
Ademais, malgrado os cientistas responsáveis pelas pesquisas com organismos geneticamente modificados tenham assegurado, dentre outras benesses, a erradicação da fome no mundo, passadas duas décadas, infelizmente, a realidade difere do declarado: inúmeros danos foram ocasionados por tais organismos em toda a cadeia que os cerca, desde quem trabalha no seu cultivo, passando pelo próprio meio ambiente, alcançando os que efetivamente fazem uso de seus elementos, assim como os pequenos trabalhadores rurais, que são freqüentemente massacrados pela oligopolização provocada no mercado; enquanto a fome, a mesma que os cientistas haviam prometido debelar, prossegue se alastrando no mundo.
Não pode ser olvidado, ainda, o caráter emancipatório que a segurança alimentar e nutricional trouxe à realização do direito à alimentação adequada, uma vez que agregou ao debate conceitos diversos, tais como cultura, ambiente e sustentabilidade; além de ter exposto, como no caso dos organismos geneticamente modificados, a necessidade de uma fiscalização mais eficaz, em prol de uma oferta de alimentos de qualidade.
Por tudo isso, entende-se que a segurança alimentar e nutricional tem garantido a progressividade do direito à alimentação adequada, na medida em que considera todo o seu ciclo de concreção: desde a disponibilidade do alimento – se por conta do próprio cidadão, através de terceiros ou do aparato estatal -; passando pela observância quanto à qualidade com o que o alimento se apresenta – se livre de modificações genéticas e apto a agregar os nutrientes necessários a uma vida saudável –; alcançando os cuidados com a sustentabilidade ambiental e com a diversidade cultural –; incluindo, assim, os que ora usufruem dos víveres, e as gerações vindouras, que haverão, também, de demandar uma alimentação apropriada .
Finalmente, esclarece-se que o direito à alimentação adequada é entendido como dotado de fundamentalidade, ou seja, como direito que goza de tamanha relevância para o Estado Democrático de Direito[75], que a sua efetivação torna-se imprescindível para a proteção da dignidade da pessoa humana[76], argumento que será desenvolvido infra.
3. Da fundamentalidade do direito à alimentação adequada
Direitos fundamentais, conforme Ana Maria D`Ávila Lopes, ”são princípios jurídica e positivamente vigentes em uma ordem constitucional que traduzem a concepção de dignidade humana de uma sociedade e legitimam o sistema jurídico estatal”. [77]
O direito à alimentação adequada, por seu turno, esteia sua fundamentalidade, dentre outros dispositivos, na cláusula de abertura firmada no art. 5o, § 2o, da CF, que permite a inclusão, no rol constitucional, de direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados, a saber:
“Art. 5° (…)
§ 2º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
A inclusão formal do direito à alimentação adequada no catálogo dos direitos fundamentais, graças à norma prevista no art. 5º §2°, não é o único, nem talvez o mais forte argumento para afirmar a sua natureza de direito fundamental. Pelo contrário, o mais sólido deles é sua correspondência substancial com a definição de direitos fundamentais, entendidos estes como princípios jurídicos positivos, de nível constitucional, que refletem os valores mais essenciais de uma sociedade, visando proteger diretamente a dignidade humana, na busca pela legitimação da atuação estatal e dos particulares. [78]
Desta definição infere-se que os direitos fundamentais são normas positivas do mais alto nível hierárquico, visto sua função de preservar a dignidade de todo ser humano, tarefa que deve ser o centro e fim de todo agir. Aliás, a proteção da dignidade humana é o elemento essencial para a caracterização de um direito como fundamental. É verdade que todo direito, toda norma jurídica, tem como objeto a salvaguarda e bem-estar do ser humano – ou pelo menos assim deveria sê-lo – mas, no caso dos direitos fundamentais, essa proteção é direta e sem mediações normativas. [79]
O caráter principiológico dos direitos fundamentais deriva, por sua vez, da estrutura abstrata do seu enunciado, conforme os ensinamentos do jurista alemão Robert Alexy[80]. Por outro lado, afirma-se, também, que os direitos fundamentais buscam legitimar o Estado à medida que o grau de proteção desses direitos permitirá definir o grau de democracia vigente. Contudo, não apenas o Estado está submetido aos limites impostos pelas normas dos direitos fundamentais: os particulares também devem obediência aos seus ditames. [81]
Verifica-se, portanto, que o direito à alimentação adequada tanto se faz presente na Constituição, como é merecedor do caráter de fundamentalidade que ora se vergasta, na medida em que anuncia norma de importância suprema, que delineia direito indispensável à concretização da dignidade e da própria vida humana, sendo ratificado por diversas leis nacionais e documentos internacionais, dos quais o Brasil é signatário.
Inconteste é, também, a identidade do direito em apreço para com o princípio da dignidade da pessoa humana. Uma vez que a concretização deste princípio pressupõe a realização do direito à alimentação adequada, que, embora não expresso no seio constitucional, encontra guarida no próprio senso de efetivação dos direitos mais básicos em prol da vida. Do contrário, ou seja, sem uma alimentação adequada e razoável, não se pode sustentar o devido respeito à dignidade, o que, em casos extremos, poderá ensejar o fenecimento da própria vida humana.
“O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana.” (grifo nosso)[82]
Nessas circunstâncias, aplicável é a idéia de mínimo existencial[83], entendida por Ana Paula de Barcellos como um “conjunto de situações materiais indispensáveis à existência humana digna; existência aí considerada não apenas como experiência física – a sobrevivência e a manutenção do corpo – mas também espiritual e intelectual, aspectos fundamentais em um Estado(…)”, o que ratifica a tese da promoção e da defesa da alimentação adequada como pressuposto para a realização da dignidade da pessoa humana.
A mesma autora, ao discorrer especificamente sobre a assistência aos desamparados, torna indubitável seu entendimento sobre a vinculação da dignidade da pessoa humana e da alimentação:
“A assistência aos desamparados representa o último recurso na preservação da dignidade humana. Afora as formas já institucionalizadas pela Constituição Federal, (…) seu conteúdo é dado pelas condições mais elementares que se exige para a subsistência humana: alimentação, vestuário e abrigo (grifo nosso)”[84].
Corroborando com o dissertado, Jussara Maria Moreno Jacintho, afirmou:
“(…) a dignidade humana como direito material apresenta um núcleo essencial cujos elementos integradores são – sem exclusão de outros que possam ser assim apresentados – a liberdade de crença, e os direitos à saúde, educação, moradia e alimentação. O primeiro vazado como princípio, o restante como regras” (grifo nosso)[85].
Merecem também ser compartilhados os ensinamentos de Sarlet, que sobre o tema assevera:
“Uma outra dimensão intimamente associada ao valor da dignidade da pessoa humana consiste na garantia de condições justas e adequadas de vida para o indivíduo e sua família, contexto no qual assumem relevo (…) em última análise, à proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e à asseguração de uma existência com dignidade”[86](grifo nosso).
De igual modo, a fundamentalidade decorre da consonância da alimentação adequada para com o regime democrático de direito aqui professado, que se ampara no seu preceito basilar, qual seja, “do povo, pelo povo, para o povo”. Sem este, ou melhor, sem a garantia de sua subsistência mínima através de uma alimentação adequada, não há que se falar em democracia genuína, pois que estaria corrompida em sua principal finalidade.
Acerca do regime democrático, o contrário também é verdadeiro, ou seja, é por meio dele, segundo Amartya Sen, que se concebe a possibilidade de desenvolvimento e engajamento para as lutas políticas e sociais, inclusive, para o enfrentamento da insegurança alimentar. [87]
Esse posicionamento é compartilhado por José Graziano da Silva, que alerta sobre os males provocados pelo modelo de desenvolvimento aplicado no Brasil, inclusive, incidente sobre a privação da cidadania:
“A pobreza, portanto, não é apenas um fenômeno estatístico ou biológico. Mas também político. Não é só atraso no acesso aos bens de consumo, mas privação de cidadania. Vale dizer, é conseqüência estrutural de um modelo de desenvolvimento que gera privilégios e privações à medida que se expande, ou se retrai, sem regulação social. Por isso, em muitos lugares deste país, a luta contra a fome tem como requisito fundador, literalmente, dar a luz à sociedade civil organizada. Sem ela a desigualdade não será vencida – nem mesmo com a retomada do crescimento”[88].
Para fins exemplificativos do todo asseverado, expõem-se alguns dispositivos constitucionais que reiteram a plausibilidade do direito fundamental à alimentação adequada para o ordenamento jurídico vigente:
“Art. 6o. – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (grifo nosso)
Art. 7o – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
IV – Salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação (…) (grifo nosso)
Art. 23 – É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
X – combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.
Art. 200 – Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:
VI – fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano.
Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação” (…) (grifo nosso)
Em relação ao artigo 6o, especificamente sobre a saúde e a assistência aos desamparados, entende-se serem estes os cabedais para a alimentação adequada, na medida em que a promoção de ambos é imprescindível para a consecução desta. Sem alimentação adequada jamais se poderá afirmar a efetividade dos direitos sociais fundamentais da saúde e da assistência aos desamparados, em especial, deste último, haja vista seu objetivo de “garantir às pessoas, sem meios de sustento, condições básicas de vida digna e cidadania, cumprindo também o objetivo constitucional de erradicação da pobreza (…)”. [89]
Ainda sobre o art. 6º da Constituição Federal, deve ser ressaltado que, atualmente, tramitam no Congresso Nacional duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC), sob os nºs. 47/2003 e 64/2007, de autoria, respectivamente, do Senador Antônio Carlos Valadares (PSB/SE) e do Deputado Federal Nazareno Fontenele (PT/PI), para fins de inclusão do direito à alimentação no rol os direitos sociais ali constantes.[90]
No que tange ao art. 7o, inciso IV, merece ser dito que a idéia de salário mínimo capaz de atender as necessidades básicas, inclusive, as vinculadas à alimentação, advém das lutas de Josué de Castro nos idos anos 40, que, com seu primeiro projeto sobre a matéria, assim já pleiteava.
Pertinente ao art. 23, inciso X, deve ser esclarecido que este, como poucos, demonstra o reconhecimento pelo Estado brasileiro da pobreza em seu território, bem como impõe a urgente formação de uma rede federativa para o seu enfrentamento, que deve ser propulsora de mudanças sociais, combatendo as causas da pobreza e promovendo a integração social, o que torna imprescindível o planejamento e a atenção básica à alimentação adequada.
O estabelecido pelo art. 200, inciso VI, da Constituição Federal, deve ser analisado sob a perspectiva da responsabilidade do Estado em resguardar a qualidade da alimentação a ser adquirida ou a inocuidade dos alimentos (food safety), matéria também relacionada à segurança alimentar.[91]
Em referência ao art. 227, nele tem-se a proteção prioritária dos direitos de crianças e adolescentes, forjada, dentre outros, pela alimentação adequada, que deve ser realizada pelo Estado, pela família e pela sociedade. O destaque para a responsabilidade compartilhada propicia o fortalecimento da exequibilidade do direito à alimentação adequada, na medida em que esclarece quem são os sujeitos passivos e os seus destinatários e, ao mesmo tempo, delineia a amplitude da obrigação constitucional.[92]
Com fundamento nos dispositivos supracitados e nos aspectos doutrinários cunhados sobre a matéria, Paulo Cogo Leivas bem conclui, ao dizer que:
“Há, portanto, um direito fundamental à alimentação que deve ser realizado pelo Estado por meio de medidas adequadas e necessárias. Em caso de ausência ou ineficácia destas medidas, surgem direitos subjetivos públicos à alimentação a serem veiculados, preferencialmente, por meio de ações judiciais coletivas com vista a resguardar a universalidade e uma proteção igualitária a todas as pessoas” (…). [93]
Não pode ser olvidado que a fundamentalidade do direito à alimentação adequada pode ser justificada por dimanar de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, bastando, para tanto, que o Brasil seja signatário do documento e obedeça ao regramento do art. 5o, § 3, da Constituição Federal.
Assim, no caso específico do direito à alimentação adequada, não restam dúvidas quanto à sua fundamentalidade, mesmo que esta dependa apenas dos pronunciamentos internacionais, haja vista que tanto o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, como, e principalmente, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que evidenciam o direito em apreço, foram recepcionados pelo ordenamento jurídico brasileiro desde 1992, colaborando, inclusive, com a feitura de documentos nacionais sobre a matéria.[94]
CONCLUSÃO
O contexto histórico do qual emergiu o direito fundamental à alimentação adequada se caracteriza por dois fatos comuns: as lutas pela sobrevivência e pela hegemonia mundial e a propriedade como autora e propulsora das desigualdades. São esses fatores somados que propiciaram a tônica da discussão e, posteriormente, do acolhimento da alimentação adequada enquanto direito – e não como benesse do Estado – digno, pois, de respeito, promoção e exercício por todos e para todos.
De especial relevo, também, foi compreender que a alimentação adequada não se traduz em mero quantitativo calórico, mas prescinde de qualidade efetiva para aqueles que dela se utilizarão. Ademais, observou-se a conjugação entre a alimentação adequada e segurança alimentar e nutricional, pautada em uma alimentação livre de modificações genéticas, fruto da soberania nacional e da progressiva emancipação e cidadania, inclusive dos historicamente excluídos, firmada, ainda, na sustentabilidade ambiental e cultural.
Por fim, restou-se evidenciada a caracterização da alimentação adequada como efetivo direito fundamental, na medida em que, nos termos do art. 5º., §2º., da Constituição Federal, se coaduna com o ditames do regime democrático de direito e com o princípio da dignidade da pessoa humana, faz-se presente, direta ou indiretamente, em diversos outros dispositivos constitucionais e em tratados atinentes à temáticas em que o Brasil é parte, além da sua relevância como instrumento indispensável na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Informações Sobre o Autor
Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab
Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Especialista em Direito Previdenciário. Professora da Faculdade Integrada do Ceará (FIC) e Faculdade Católica de Quixadá (FCRS).