Os crimes sexuais contra crianças e adolescentes no ambiente virtual

INTRODUÇÃO


O desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação, notadamente a Internet, proporcionou mudanças significativas na vida de muitos adolescentes que, crescendo imersos na sociedade informacional, exploram sem temor o ambiente virtual para consultar informações, ouvir música, acessar vídeos, produzir material para posterior publicação, manter contatos com pessoas conhecidas e com completos estranhos, navegando com naturalidade pelas infovias. Na condição de nativos digitais, usufruem todas as possibilidades, sem perceber que muitas vezes no afã de ver e ser visto acabam se colocando em situação de vulnerabilidade.


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Esse mesmo ambiente, que atualmente tem servido como ponto de encontro e para a exposição, também é útil para o anonimato e com isso favorece a conduta daqueles que, quer na condição de verdadeiros voyeurs buscam somente visitar as comunidades, blogs, fotologs e Orkut para observar; quer transfigurados em caçadores, desejam localizar e capturar suas vítimas, que se tornam presas fáceis das redes de criminalidade, especialmente aquela dirigida à prática de crimes sexuais, como a pedofilia.


É sobre essa problemática que versa o presente trabalho, que objetiva discutir algumas ações empreendidas no Brasil para o enfrentamento dos crimes sexuais praticados contra crianças e adolescentes no espaço virtual, notadamente no ambiente da rede social de relacionamento denominada Orkut. Para tanto, a abordagem está organizada em duas partes: 1) num primeiro momento o tema é contextualizado, evidenciando-se as facilidades que o ciberespaço oferece às redes de pedofilia, culminando em apresentar alguns esforços realizados pela ação articulada da SaferNet Brasil, organização não-governamental criada em 2005 e que se dirige ao combate de crimes contra os direitos humanos praticados na Internet e as autoridades públicas brasileiras, o que resultou na realização da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI – da Pedofilia Infantil; 2) na sequência são apresentadas algumas inovações propostas pela Lei nº 11.829/2008, legislação que representa, no campo normativo, o resultado concreto das ações realizadas sob os auspícios da CPI. As informações expostas suscitam algumas interrogantes cuja reflexão e tentativa de enfrentamento se mostra urgente frente à crescente vitimização de crianças e adolescentes no ambiente virtual, o que indica a importância de levar o tema ao debate público, pretensão deste trabalho.


1 NAS TRAMAS DA REDE: A AÇÃO DOS PEDÓFILOS NO AMBIENTE VIRTUAL.


O ciberespaço, caracterizado pela sua porosidade que permite fluxos informacionais e de comunicação além fronteiras, amplia a vulnerabilidade dos adolescentes, que tanto podem contribuir para sua própria vitimização, pela forma como deliberadamente se expõe, como podem ser enganados, mantendo contatos com adultos que se identificam como pessoas da mesma faixa-etária a partir de perfis falsos, criados com a finalidade deliberada de estabelecer comunicação com crianças e adolescentes e, a partir disso, ter acesso a imagens, informações e dados sobre sua intimidade.


Para muitos usuários das novas tecnologias informacionais, o ciberespaço proporciona acesso à informação e entretenimento, construção de coletivos inteligentes e oportunidade de estabelecimento de novos fluxos comunicacionais, facilitando o contato entre pessoas espalhadas por diversas regiões do planeta. Para outros, no entanto, este ambiente equivale a um território sem lei, o que justificaria todo o tipo de conduta, já que seria um espaço à parte, subtraído de qualquer ingerência ou censuras sociais, o que possibilitaria desde a prática de atos que não seriam realizados em contatos de face a face em razão das regras de boa convivência, até o estabelecimento de redes invisíveis de criminalidade. É esta compreensão do ciberespaço como território sem lei que tem preocupado os estudiosos do tema, pois a partir dela tem se proliferado os atos de violação aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, com destaque para os abusos de natureza sexual.


Segundo Lidchi (2008, p. 92), os abusos mais comuns contra a população infanto-juvenil perpetrados no ambiente virtual são: sedução (grooming), que é realizada quando se convence a criança ou adolescente a participar de situação traumática ou criminosa; mostrar cenas ou fotos pornográficas ou vídeos obscenos; produzir, distribuir ou usar materiais com cena de abuso sexual; realizar cyberbulliying, ou seja, intimidar ou ameaçar menores de idade pela Internet; estímulo ao turismo sexual; exploração comercial sexual e tráfico humano ou sexual e pedofilia.


A escolha de adolescentes como vítimas se dá em razão de vários fatores, dentre eles: excessiva confiança demonstrada nesta faixa-etária, momento em que os adolescentes acreditam que nada acontecerá com eles, ao que se soma a necessidade de desafiar a autoridade parental, praticando atos que lhes pareçam transgressões; os adolescentes, apesar de tentarem aparentar esperteza, na realidade são ingênuos, o que os leva a ser facilmente influenciados por adultos e desconhecidos; têm necessidade de atenção e afeto; gostam de aventuras, e entrar em contato com pessoas estranhas pode lhes parecer desafiador; são impactados por processo de adultização precoce, o que os conduz à maior exposição na web, erotizando mensagens e revelando a sua imagem; muitos são provenientes de famílias desestruturadas, onde não encontram apoio familiar, o que impulsiona a sua busca por atenção no ciberespaço, os tornando mais vulneráveis aos contatos do abusador. A essas características, ofertadas por Lidchi (2008, p. 92), ainda podem ser acrescentadas as situações de dúvida e insegurança com relação à opção sexual, que leva muitos meninos e meninas a procurarem apoio nas comunidades sexuais e acabam se constituindo em presa fácil dos abusadores.


Os crimes contra crianças e adolescentes praticados por meio da Internet apresentam várias peculiaridades, dispensando contato físico entre a vítima e o abusador, o que faz com que muitas vezes sequer se perceba a prática do ato, pois basta capturar imagens do adolescente e transformá-las digitalmente, dando-lhe caráter pornográfico para que se configure o crime. Outras vezes, ocorre o contato on line entre o abusador e a vítima e esta lhe cede as imagens, mas o faz sob a crença de se tratar de outra pessoa e desconhece as finalidades para as quais será usada. Neste segundo caso, quando o adolescente desconfia ou se nega a praticar novos atos solicitados pelo abusador, normalmente é ameaçado de que a situação será divulgada, e o medo e a vergonha o mantém refém do seu algoz.


Todas essas ações configuram violência infanto-juvenil, pois atingem zonas intocáveis, que merecem a máxima proteção em razão de prejudicarem o normal desenvolvimento da criança, afetando a sua dignidade. Conforme as lições de Rodrigues (2005, p. 168), a agressão contra crianças e adolescentes ocorre quando se violam os direitos de intimidade, liberdade e dignidade, o que pode acontecer tanto pela violência física, psíquica e sexual, quanto pela desatenção e negligência dos cuidadores, que não orientam devidamente seus filhos.


No caso dos cibercrimes, a violência física só se efetivará no momento em que houver contato físico entre a vítima e o abusador cuja ocorrência é mais comum nos casos em que o internauta menor de idade aceita se encontrar com a pessoa com quem troca mensagens. A violência psicológica e a sexual, todavia, são bem frequentes, pois, conforme ensinado por Rodrigues (2005, p. 169), a influência negativa produzida por pessoa de mais idade (adulto) sobre a criança e o adolescente, de forma a interferir no seu normal desenvolvimento, configura-se como violência psicológica; enquanto a violência sexual, por sua vez, se configura com a prática de jogos sexuais, mensagens de duplo sentido, convites, incitação e pelo envolvimento produzido pelo agressor (pessoa de mais idade e mais experiente que a vítima) induzindo-a a satisfazer o seu prazer sexual, ambos comportamentos largamente presentes no ciberespaço.


A violência sexual pode se manifestar de muitas maneiras, como abusos verbais que se concretizam por meio de discussões e conversas sobre conteúdo sexual que não se mostra apropriado para a idade daquele adolescente; telefonemas (e troca de mensagens – MSN) com conteúdo obsceno, por vezes utilizando mensagens com duplo sentido; exibicionismo, que ocorre quando o abusador exibe seus órgãos genitais para o adolescente ver, chegando a masturbar-se diante do menor de idade; voyeurismo, que é a prática de espionagem do corpo da criança ou adolescente que, induzido pelo outro internauta, acaba expondo partes íntimas de seu corpo (RODRIGUES, 2005, p. 171).


Os abusos dessa natureza produzem uma vitimização difusa e repetida, que se projeta no tempo, pois além de atingir um número incalculável de vítimas, a circulação da imagem ou o seu armazenamento na web perpetuam a prática do crime, que não se limita às fronteiras territoriais dos Estados, envolvendo vítimas de diferentes comunidades. A todas essas características, soma-se a facilidade de articulação de verdadeiras redes de criminosos, o que conduz ao significativo crescimento dos abusos.


Esse quadro impulsionou a criação da SaferNet Brasil, associação civil sem fins lucrativos e com alcance nacional, que desde 20 de dezembro de 2005 atua no combate aos crimes contra os direitos humanos, dentre eles os de natureza sexual contra crianças e adolescentes praticados na Internet[1], especialmente a pedofilia[2] no ambiente do Orkut.


Com efeito, essa espécie de crimes tem registrado índices de ocorrência progressivos[3], já que as estratégias dos pedófilos são bastante facilitadas pela utilização da Internet, não só pelo fato de a tecnologia permitir a comunicação entre aqueles que apresentam o mesmo distúrbio, favorecendo a formação de verdadeiras comunidades de pedófilos que atuam livremente, mas também porque o ambiente virtual e, sobretudo as comunidades do Orkut, oferecem, dia após dia, um novo arsenal de informações, constituindo-se num grande observatório para quem deseja praticar crimes sexuais contra a população infanto-juvenil.


Assim, se até bem pouco tempo, os abusadores precisavam se deslocar para praças, parques, ou arrumar trabalhos em creches e escolas para se manter em contato com crianças e adolescentes, hoje alguns minutos de navegação pelo ciberespaço oferecem informações, dados e fotos que permitem ao pedófilo escolher exatamente o perfil da sua vítima. As informações fornecidas pelos usuários indicam os momentos de maior vulnerabilidade, facilitando a escolha da vítima e da ocasião em que se fará o contato.


Além do processo de aproximação ficar favorecido pelo uso da Internet, o tempo para ganhar a confiança da criança e do adolescente se encurtou sobremaneira, pois basta forjar um perfil falso, passar-se por alguém da mesma idade e com gostos similares, ou apresentar-se como representante de agências de modelos[4] ou clubes de futebol que, de forma rápida, é possível obter fotos e imagens. Outro expediente que facilita a interação é integrar comunidades de adolescentes, como as observadas e discutidas no capítulo 3, pois como visto usualmente os internautas divulgam entre os demais membros os seus dados e o MSN, o que facilita a posterior comunicação privada entre o pedófilo e sua vítima.


O volume de denúncias de crimes de natureza sexual contra crianças e adolescentes recebidas pela SaferNet Brasil no ano de 2008 (mais de cinqüenta mil registros) praticados no ambiente virtual revelou um cenário tão alarmante que mobilizou as autoridades públicas brasileiras. Esse esforço resultou na instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI da pedofilia infantil – criada pelo Requerimento nº 200, de 04 de março de 2008, com o objetivo de investigar e apurar a utilização da Internet para a prática de crime de pedofilia, bem como sua relação com o crime organizado. Os trabalhos realizados por esta Comissão (ainda em curso), presidida pelo Senador Magno Malta (PR – ES), iniciaram-se no dia 25 de março de 2008 e já produziram inúmeros resultados, especialmente no que tange à sensibilização da opinião pública, dos integrantes do Ministério Público e da Magistratura, bem como pela articulação entre os representantes do Poder Legislativo e da organização civil, notadamente a SaferNet Brasil e alguns pesquisadores vinculados às universidades que participaram das audiências públicas realizadas (BRASIL, 2009).


Com base no apoio logístico prestado pela SaferNet Brasil (2008 b), constatou-se a presença de pessoas de outros países que praticam crimes de pedofilia na rede, notadamente nas comunidades brasileiras do Orkut[5], bem como foram constatadas inúmeras comunidades cujo nome flagrantemente indicam a presença de pedófilos[6].


Os trabalhos da CPI criaram um canal de comunicação entre o Poder Público (notadamente com os representantes do Senado Federal), profissionais que atuam na Segurança Pública, sendo que o Departamento de Polícia Federal e a Secretaria Nacional de Segurança Pública nomearam assessores para auxiliar nos trabalhos, bem como participaram Delegados de Polícia, Procuradores Gerais e representantes da Unidade de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal (PF), Promotores de Justiça, Juízes que atuam na Justiça da Infância e Juventude, dentre outros, todos convidados a expor a forma de trabalho desenvolvido.


Outras providências adotadas já nas primeiras reuniões da CPI da Pedofilia Infantil foram referentes a convidar várias pessoas a participar de reuniões para prestar esclarecimentos, dentre elas: Chefe da Coordenação Criminal Internacional (Interpol), psicólogos, pesquisadores, Membros do Comitê Gestor da Internet no Brasil; membros do Ministério de Ciência e Tecnologia e representantes das empresas que atuam no setor[7], como o Diretor Executivo da Google Brasil Internet Limitada, entre outros (BRASIL, 2009).


Importante medida decorrente da atuação articulada entre a associação civil – SaferNet Brasil, os órgãos públicos e os integrantes da CPI da Pedofilia Infantil foi a proposição do Projeto de Lei nº 250, apresentado pela CPI  em 17 de junho de 2008, com vistas a alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente para aprimorar o combate à produção, venda, distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e posse de materiais desta natureza. Tal projeto, que previa a alteração dos artigos 240 e 241 do Estatuto teve rápida tramitação, com votação unânime nas duas Casas do Congresso Nacional, resultando na Lei nº 11.829, promulgada pelo Poder Executivo, em 25 de novembro de 2008. Dado ao seu interesse para a discussão do tema, seus principais aspectos serão apresentados na sequência.


2 A Lei nº 11.829/08 como tentativa de enfrentamento da criminalidade contra crianças e adolescentes.


A análise do texto da Lei 11.829/2008 revela que sua produção foi fortemente influenciada pelos trabalhos da CPI da Pedofilia Infantil[8], vez que muitas das lacunas existentes na legislação que dificultavam o trabalho das autoridades policiais brasileiras foram contornadas. Uma das soluções foi a ampliação dos tipos descritos no artigo 240, pois antes, as condutas consideradas típicas eram produzir ou dirigir representação utilizando-se de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou vexatória. Com a nova redação, incorre no crime de pornografia infantil quem produz, reproduz, dirige, fotografa, filma ou registra por qualquer modo cena de sexo explícito envolvendo menores de idade. Além disso, incorre nas mesmas penas a pessoa que contracena, agencia, facilita, recruta, coage ou de qualquer modo intermedeia a participação de crianças e adolescentes em tais cenas. Como se nota, a nova redação abrange situações bastante comuns no ambiente virtual, como intermediar a participação de crianças e adolescentes em cenas dessa natureza.


As mudanças mais significativas, no entanto, relacionam-se ao artigo 241, que trata da venda ou exposição à venda de fotografia, vídeo ou qualquer registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfico envolvendo criança ou adolescente. No caso deste dispositivo, além de responsabilizar penalmente quem pratica a conduta ou intermedeia a participação de menores de idade, ainda alcança quem assegura os meios ou serviços para que as fotos e imagens sejam armazenadas e quem assegura o acesso na rede mundial de computadores, do material abrangido pelo artigo.


A constatação das práticas recorrentes no ambiente virtual, envolvendo a troca, transmissão e divulgação de imagens de crianças e adolescentes em cenas de sexo explícito, realizadas por internautas determinaram a inclusão do artigo 241-A, que tipifica condutas como oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar tais cenas. Além de alcançar quem pratica diretamente a conduta, ainda há importante inovação nos incisos I e II, responsabilizando quem assegura os meios ou serviços de armazenamento das fotografias, cenas ou imagens e quem assegura o acesso a estes conteúdos, atividades desenvolvidas pelos provedores de hospedagem e de acesso, respectivamente. Para que o responsável legal pela prestação de serviços não seja responsabilizado penalmente, é necessário que, uma vez oficialmente notificado, tenha diligenciado para desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito. Caso o responsável não tenha adotado estas providências, incorre nas condutas tipificadas no artigo 241 –A.


Outra novidade prevista pela referida Lei diz respeito à tipificação da posse e do armazenamento de conteúdos de natureza sexual, envolvendo crianças e adolescentes, independentemente da ação de distribuição ou venda (artigo 241 –B). A inclusão deste tipo integra uma lacuna antes existente, posto que muitas vezes as autoridades policiais conseguiam identificar as redes de pedófilos, mas alguns integrantes não eram punidos, pois tinham apenas o material armazenado, não sendo possível comprovar que realizavam a distribuição. Como o Direito Penal atende ao princípio da legalidade e não permite aplicação de analogia, quem apenas tinha a posse do material não era responsabilizado, por não configurar a conduta descrita pela lei vigente à época.


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A redação do artigo 241 –C também se mostra oportuna e visa a atingir uma prática bastante recorrente no espaço virtual, que é a adulteração de imagens, montagem ou modificação de fotografias, vídeos ou qualquer outra forma de representação visual, a partir das quais se retratam cenas de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente


Numa leitura rápida e descontextualizada (tanto das práticas levadas a efeito no ambiente virtual, quanto dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil para combater a exploração sexual infanto-juvenil), as novas regras introduzidas pela Lei 11.829/2008 podem parecer excessivamente severas, já que preveem a punição de quem altera imagens, configurando, pela manipulação tecnológica, o envolvimento de criança ou adolescente em cena de sexo que, na realidade, não chegou a praticar. No entanto, tal postura encontra-se alinhada com a posição adotada pelos Estados Europeus que firmaram a Convenção sobre o Cibercrime, a qual inclusive o Brasil pretende assinar. Conforme constatado pelo exame das atas de trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI da Pedofilia Infantil, desde 2006 o Brasil diligenciava internamente para aderir ao Compromisso, sendo que em 23 de novembro de 2006 foi expedido o Requerimento nº 1.178, no qual a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal, nos termos do art. 50, § 2º da Constituição Federal, combinado com o disposto no art. 216 do Regimento Interno do Senado Federal, requeria que fossem solicitadas ao “Ministro de Estado das Relações Exteriores informações sobre as providências adotadas para que o Brasil se torne um dos signatários da Convenção do Conselho da Europa sobre o Cibercrime, celebrada em 23 de novembro de 2001, na cidade de Budapeste, Hungria” (BRASIL, 2006 d).


Este rigor deve ser exigido por que, ao praticar as condutas descritas como pornografia infantil e pedofilia infantil não são violados os direitos fundamentais de criança ou adolescente determinado, tratando-se de ação que produz vitimização difusa, já que o desejo do adulto se volta contra o próprio sentimento de infância e adolescência, apresentando alcance transindividual.


Com base em Veronese e Ferrazza (2005, p. 27-32), pode-se afirmar que esta espécie de violência e exploração sexual infanto-juvenil constitui crime contra a humanidade, encontrando-se tipificado nos artigos 19 e 34, da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989 e no Protocolo Facultativo para a Convenção sobre os Direitos da Criança, firmada pelas Nações Unidas no ano 2000 e vigente no Brasil desde 2004. Com base nesta afirmativa, pode-se sustentar que a conduta do infrator ultrapassa a pessoa cuja imagem foi manipulada para atingir toda e qualquer menor de idade que, dessa forma, é reduzido a mero objeto do prazer sexual do adulto.


Assim, as configurações do ambiente virtual, especialmente sua porosidade, um novo perfil de infratores, que dominam as tecnologias e constroem redes quase invisíveis de criminalidade e a  vitimização difusa de crianças e adolescentes apontam para a necessidade de estratégias articuladas entre as instituições encarregadas da proteção integral, ao que devem se somar os esforços de cooperação internacional, pois como visto, trata-se de um crime que fere o sentimento de infância, o que justifica dizer que atinge indistintamente todas as crianças e adolescentes, independente de sua nacionalidade ou localização geográfica.


CONSIDERAÇOES FINAIS:


Diante do quadro apresentado, algumas questões se oferecem à reflexão: qual deve ser a forma de atuação das instituições responsáveis pela proteção integral de crianças e adolescentes, especialmente considerando o cenário de intensas transformações que se descortina com a sociedade informacional?


A família será só mais um ator social que também povoará álbuns virtuais e trocará mensagens no Orkut; continuará como muitos pais, ignorando o que os filhos fazem nesse ambiente e, por conseguinte, sequer imaginando os riscos que podem se esconder por trás de cada nova conexão ou, ao revés, assumirão postura ativa e responsável, incluindo o tema na pauta de discussões familiares, orientando os filhos para o uso responsável e seguro da Internet?


E a sociedade civil? Continuará atuando como mera utilitária dos serviços, como se não fosse igualmente responsável pela proteção integral de crianças e adolescentes internautas ou mais pessoas seguirão o exemplo da SaferNet Brasil, assumindo postura de comprometimento social e político no combate da criminalidade virtual que vitima a população infanto-juvenil?


Qual a forma mais eficaz de enfrentar a crescente prática de crimes sexuais levada a efeito na rede mundial de computadores? A solução pela via da regulação conduzirá o Estado a efetivamente identificar e punir os integrantes das redes de pedófilos, ou desempenhará apenas um papel simbólico, já que a criminalidade, além de recriar constantemente suas práticas, ainda ultrapassa as fronteiras territoriais, o que se constitui em limite à atuação estatal?


Com isso, resta claro que as instituições são desacomodadas diante dos crescentes conflitos advindos das interações de adolescentes no ambiente virtual, que lhes desafia com inúmeras questões, para as quais ainda não têm soluções.


Fica o convite para que todos pensem em respostas ao enfrentamento do tema. O desafio está lançado!


 


Referências:

AJURIAGUERRA, J. de. Manual de psiquiatria infantil. 2. ed. Brasil : Masson , 1999.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Audiência pública crimes cibernéticos realizada em 23 de novembro de 2008 a. Disponível em:

< http://www2.camara.gov.br/comissoes/cctci/Eventos/notas-taquigraficas/NT-AP-Crimes-ciberneticos-13.11.08/?searchterm=crimes%20informáticos>. Acesso em: 18 maio 2009.

______. Lei 11.829, de 25 de novembro de 2008 b. Altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, para aprimorar o combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na Internet. In: Diário Oficial da União, Brasília, v. CXLV n. 230, p. 1, 26 de novembro de 2008. 

______. Senado Federal. Comissão Parlamentar de Inquérito: CPI Pedofilia Infantil, 2009. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/sicon/ExecutaPesquisaBasica.action>. Acesso em: 18 maio 2009.

______. Senado Federal. Projetos e matérias legislativas, Requerimento nº 1178 de 2006. Disponível em:

< http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/Detalhes.asp?p_cod_mate=79476>. Acesso em: 10 jun. 2009.

KAPLAN, Harold I.; SADOCK, Benjamin J; GREBB, Jack A. compêndio de Psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria clínica. 7. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.

LIDCHI, Victória. Riscos ligados à sexualidade. In: ESTEFENON, Susana Graciela Bruno; EISENSTEIN, Evelyn (orgs.). Geração digital: riscos e benefícios das novas tecnologias para as crianças e os adolescentes. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2008, p. 88-93.

PRESO acusado de enganar meninas e pedir fotos de nudez na web. Portal Terra 14 de maio de 2009. Disponível em:< http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI3765485-EI4802,00-Homem+enganava+meninas+na+web+e+pedia+fotos+de+nudez.html>. Acesso em: 14 maio 2009.

RODRIGUES, Walkíria Machado. Abuso sexual infanto-juvenil: uma análise à luz da jurisprudência brasileira. In: VERONESE, Josiane Rose Petry (Org.). Violência e exploração sexual infanto-juvenil: crimes contra a humanidade. Florianópolis. OAB editora, 2005, p. 165-220.

SAFERNET BRASIL. Associação civil de direito privado de proteção dos direitos humanos na sociedade da informação. Disponível em: <http://www.safernet.org.br>. Acesso em: 21 jan. 2008 a .

______. Crimes no Orkut: entenda a evolução cronológica do caso que desafia as instituições do Estado Democrático.

Disponível em: <http://www.denuncia.org.br/twiki/bin/view/SaferNet/ReleasesEnotas>. Acesso em: 10 jun. 2008 b.

______. Indicadores Central Nacional de Denúncias.

Disponível em: http://www.safernet.org.br/site/indicadores. Acesso em: 5 maio 2009 a.

______. Safernet recebeu 91 mil denúncias em 2008. Disponível em:

 < https://www.safernet.org.br/site/noticias/safernet-encerra-2008-com-mais-91-mil-den%C3%BAncias>. Acesso em: 07 maio 2009 b.

VERONESE, Josiane Rose Petry; FERRAZZA, Cristina Barcaro. Violência e exploração infanto-juvenil na legislação brasileira. In: VERONESE, Josiane Rose Petry (Org.). Violência e exploração sexual infanto-juvenil: crimes contra a humanidade. Florianópolis. OAB editora, 2005, p. 23-94.

 

Notas

[1] O trabalho desta associação integra-se a um projeto maior, que abrange 22 países que formam a International Association of Internet Hotlines (INHOPE), fundação criada no ano de 1999 e que se empenha em combater o uso indevido da Internet (SAFERNET, 2008 a).

[2] Para que uma pessoa possa ser classificada como pedófilo é necessário que preencha determinados requisitos exigidos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV), dentre os quais se destacam: ter idade de no mínimo 16 anos e ser, pelo menos, 5 anos mais velhos que a vítima, não se aplicando este critério quando se tratar de pessoa “no final da adolescência envolvido em um relacionamento sexual contínuo com alguém de 12 ou 13 anos” (KAPLAN et al, 2002, p. 637). As características clínicas do portador do distúrbio apontam para alguém que predominantemente se satisfaz com carícias nos genitais e prática de sexo oral com crianças e adolescentes em tenra idade. Enquanto o exibicionismo e a vitimização de crianças sem toque é maciça entre as meninas (99% dos casos), os casos de real penetração normalmente atingem meninos, perfazendo 60% dos casos (KAPLAN et al, 2002, p. 637). Para Ajuriaguerra (1999, p. 926), os pedófilos podem ter idade que varia da adolescência à velhice, sendo que os atos atentatórios as suas vítimas modificam-se de acordo com a faixa-etária do agressor. Segundo ele, os que têm idade mais avançada normalmente preferem as carícias, o exibicionismo. As tentativas de penetração vaginal são mais raras entre os adultos, que preferem a felação, a sodomia ou as carícias no corpo da criança ou adolescente.

[3] Conforme os dados da SaferNet Brasil, em janeiro de 2009 foram recebidas 3.913 denúncias de pornografia infantil, contra 1692 denúncias recebidas em janeiro de 2007, o que mostra um crescimento considerável. Os números são mais impressionantes quando o período de análise é ampliado: no primeiro trimestre deste ano, foram recebidas 27.876 denúncias de crimes de pornografia infantil, contra 14.465 recebidos no primeiro trimestre de 2007, mostrando que o percentual de ocorrência quase duplicou apesar de todos os esforços para inibir os crimes desta natureza (SAFERNET BRASIL, 2009 a).

[4] A exemplo da notícia veiculada no Portal do Terra, em 14 de maio de 2009: “Um homem que se passava por uma agente de modelos no MySpace para enganar garotas e convencê-las a enviar fotos nuas foi preso esta semana na Califórnia, nos Estados Unidos. Joshua Threlkeld, 32 anos, criou um perfil fake com o nome de Sara Miller. Ele enganou cerca de cem meninas e enviava as imagens delas para uma agência de fotos pornográficas. Threlkeld foi desmascarado após a mãe de uma adolescente ter acionado a polícia ao descobrir que a filha havia encontrado pessoalmente o maníaco na cidade de Orange Country, onde ela posou para fotos e manteve relações sexuais com ele. Rastreado no próprio MySpace pelas autoridades policiais, ele foi  reconhecido pelas tatuagens que tem em torno do pescoço. O falsário atraía garotas com idades de 13 a 17 anos e dizia que selecionava modelos para uma agência. (PRESO, 2009).

[5] A listagem entregue pela SaferNet à CPI da pedofilia contém 805 registros de pedofilia em território nacional e indica 42 contas do site de relacionamento Orkut suspeitas de conter e distribuir pornografia infantil na Índia, distribuídos em grandes cidades como Nova Délhi, Mumbai, Calcutá, Calicute e Madras; um caso de conta aberta em Dallas, no Texas, nos Estados Unidos, mas sistematicamente acessada em cidades brasileiras; um registro em Portugal (Sintra); um na Alemanha (Colônia); dois no Reino Unido (Londres e Rotherham); um no Paraguai (Assunção); um no Chile (Santiago); um na Rússia (Moscou); um no Japão (Toyokawa) e diversos espalhados pelo norte da Itália (SAFERNET BRASIL, 2008 b).

[6] A relação de comunidades divulgadas pela SaferNet Brasil é bastante elucidativa, como se percebe a partir de alguns exemplos: Coroas & boys – 3.169 membros – (Nº 508365); Suruba Teen – 2.770 membros – (Nº 530774); Paizão_ativo Filhão_passivo – 2.155 membros – (Nº 795976); Sou novinha, mas já sou safada – 1.834 membros – (Nº 760661); Adoro porra teen – 1.416 membros – (Nº 1346820); Quanto mais nova, mais gostosa – 690 membros – (Nº 1023534); Amamos ninfetas e lolitas – 570 membros – (Nº 1523450); Garotas precoces – 536 – (Nº 862387); Menininhas pervertidas – 469 membros – (Nº 495258); Ninfetas adoram homens maduros – 468 membros – (Nº 1425725); Clube dos amantes de ninfetas – 377 membros – (Nº 1484769); Jovens gays (11 a 19 anos) PR – 318 membros – (Nº 2999833); Amo menino de cueca – 130 membros – (Nº 3855105); As novinhas são as melhores – 123 membros – (Nº 1009783, dentre outras tantas (SAFERNET BRASIL, 2008 b).

[7] A CPI convidou vários representantes de empresas a prestarem informações: em 15 de maio de 2008, foram convidados a prestar esclarecimentos o responsável pelo site de relacionamento FaceBook, os representante do site Bebbo e MySpace Brasil; em 04 de junho de 2008, foi solicitado à Rede Internet Universo OnLine (UOL) que transferisse os diálogos e registros de acesso dos usuários que utilizaram a sala de bate-papo “Incesto”; em 09 de julho de 2008, foi convidado a prestar depoimento o Diretor Geral da MSN/Hotmail no Brasil; em 12 de agosto de 2008, foram convocados os representantes legais das empresas OI, BRASIL TELECOM, TELEFÔNICA, NET, GVT e EMBRATEL, todos ouvidos pela CPI (BRASIL, 2009) .

[8] Observa-se também que a redação de alguns dispositivos, sobretudo os que versam sobre pornografia infantil guardam bastante semelhança com o que está disposto na Convenção sobre Cibercrime proposta pelos Estados europeus no ano de 2001.


Informações Sobre os Autores

Rosane Leal da Silva

Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com pesquisa sobre a proteção integral dos adolescentes internautas na sociedade informacional. Professora Adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria e do Centro Universitário Franciscano, ambos em Santa Maria (RS) e pesquisadora líder do Grupo de Pesquisa Teoria Jurídica no Novo Milênio, da UNIFRA e integrante do Núcleo de Estudos Sociais e Jurídicos da Criança e do Adolescente (NEJUSCA), na UFSC.

Josiane Rose Petry Veronese

Professora Titular da disciplina Direito da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de Santa Catarina, na graduação e nos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito. Doutora em Direito. Vice-diretora do Centro de Ciências Jurídicas da UFSC e Coordenadora do NEJUSCA – Núcleo de Estudos Jurídicos e sociais da Criança e do Adolescente. Autora de vários livros entre os quais destacam-se: Interesses difusos e direitos da criança e do adolescente. Minas Gerais: Del Rey, 1997; Temas de direito da criança e do adolescente. São Paulo: LTr, 1997; Entre violentados e violentadores. São Paulo: Cidade Nova, 1998; Os direitos da criança e do adolescente.São Paulo: LTr, 1999; A tutela jurisdicional dos direitos da criança e do adolescente (em co-autoria com Moacyr Motta da Silva). São Paulo: LTr, 1998; Adoção internacional e Mercosul (em co-autoria com João Felipe Corrêa Petry). Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004; Poder familiar e tutela (em co-autoria com Lúcia Ferreira de Bem Gouvêa e Marcelo Francisco da Silva). Florianópolis: OAB/SC editora, 2005; Violência e exploração sexual infanto-juvenil: crimes contra a humanidade (org.). Florianópolis: OAB/SC editora, 2005; Violência doméstica: quando a vítima é criança ou adolescente (em co-autoria com Marli Marlene M. da Costa). Florianópolis: OAB/SC editora, 2005; Limites na educação: sob a perspectiva da Doutrina da Proteção Integral, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Florianópolis: OAB/SC editora, 2006 (em co-autoria com Cleverton Elias Vieira). Trabalho infantil: a negação do ser criança e adolescente no Brasil. (em co-autoria com André Viana Custódio). Florianópolis: OAB editora, 2007; Educação versus punição: a educação e o direito no universo da criança e do adolescente (em co-autoria com Luciene de Cássia Policarpo Oliveira) Blumenau: Nova Letra, 2008


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