Discurso e Sabedoria: Observações Sobre a Narrativa e a “Verdade” no Processo Penal

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Resumo: O artigo faz um breve levantamento comparativo entre o discurso narrativo presente na obra de Walter Benjamim “O Narrador: observações sobre a obra de Nicolai Leskov” e a pretensão de verdade no processo penal que Aury Lopes Jr. leciona em sua obra “Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional”, para chegar a conclusão de que tal pretensão nada mais é do que consequência do esvaziamento da sabedoria dos discursos como um todo ao longo do tempo.[1]


Os dias atuais revelam uma realidade que a cada dia se firma como sendo a grande característica desse período: a velocidade do passar do tempo. Os acontecimentos do cotidiano já não têm mais espaço na memória nem tampouco na experiência daqueles que as vivenciam, o que demonstra um verdadeiro desperdício de sabedoria. Mais. Verificamos nos dias atuais uma verdadeira morte da transmissão dessa sabedoria, que os antigos tanto se valiam para procurar minimizar o sofrimento de uma escolha errada de seus descendentes. Ainda, pode-se dizer que o discurso narrativo, enquanto processo de transmissão de saber, está hoje substituído pela velocidade da transmissão de informações, onde pessoas conectadas – e com totais possibilidades de efetuarem trocas de experiência – procuram saber o mais rápido possível o que se passa do outro lado do mundo, sem se darem conta do que ocorre bem abaixo de seus narizes, ou mesmo dentro de si mesmo.


O tempo não perdoa aqueles que erram: uma escolha pode mudar completamente a vida de uma pessoa, haja vista a tal velocidade. Mas errar é da natureza do Homem. O que lamentamos é a perda do valor da sabedoria transmitida artesanalmente no dia-dia, através dos conselhos, das histórias e das experiências.


A “morte” da sabedoria – o lado épico da verdade, segundo BENJAMIN [2], se dá fundamentalmente pela difusão da informação através da evolução da imprensa. A sapiente tradição oral perde o seu valor frente à tecnologia, veloz e perspicaz. O discurso romântico se dissemina facilmente pelo jornalismo, onde pessoas desprovidas de experiência de vida buscam, solitariamente, um “final feliz” para suas pobres vidas. A arrogância da burguesia também contribui para um rechaço da experiência daqueles “pobres” velhos contadores de histórias repetidas.


Nesse contexto, a judicialização de questões mundanas enfrenta dificuldade de encontrar um sentido finalístico. Mais precisamente no Direito Processual Penal – onde o que está em jogo é o inquestionável valor da liberdade – vislumbra-se uma problemática ainda mais intrigante, no tangente à utilização da sabedoria adquirida pela experiência prática: a pretensão de alcance da verdade que o mesmo se propõe.


Embora exista o debate sobre a pretensão de verdade do processo penal – sobretudo na obra de LOPES JR.[3] encontramos substancial levantamento sobre este tema – nos parece claro que a pretensão de verdade seria, num primeiro momento, apenas a de verdade “processual”, já que a verdade real só existe no presente, e o crime (enquanto fato histórico que é) não tem respaldo de realidade enquanto tal.


Ademais, a verdade, seja a real ou a processual, segundo LOPES JR. seria excessivamente valorizada na seara processualista, de forma que sua relativização para uma dimensão contingencial – e não estruturante – do processo se faz urgente[4], na medida em que não podemos admitir as provas processuais como sendo pontes que levam à verdade, como se a mesma fosse algo suscetível de transmissão objetiva, tal e qual a veloz informação alimenta as mentes dos homens de hoje em dia com dados inúteis, em detrimento do saber dos mais antigos.


O referido autor relata que a verdade foi historicamente utilizada como artifício inquisitório de busca de revelação dos fatos investigados e de justificativa para os abusos do Estado Totalitário, tais como a tortura para obtenção da confissão de crimes, por exemplo. [5]


Atualmente, não vislumbramos a possibilidade da atribuição de um absolutismo a qualquer tipo de prova, mesmo a testemunhal ou confessional, haja vista o quadro de romantismo informativo que tomou conta dos discursos humanos nos últimos tempos. As partes ou testemunhas de um processo acusatório se comportam como informantes: suas declarações aspiram a uma verificação imediata, que antes de tudo sejam compreensíveis em si mesmas e plausíveis.[6] E assim o sendo, sua amplitude fica restrita, face às inúmeras possibilidades que um fato real pode proporcionar, tais como interpretações, pontos de vista, preferências pessoais, etc. Seus discursos são meramente transmissores de informação, jamais podendo ter um caráter de verdade, qualquer que seja.


Ademais, importante destacar a figura do juiz enquanto observador da produção de provas no processo penal. Segundo o militado por LOPES JR., a gestão das provas no processo penal está inteiramente a cargo das partes, sendo o juiz um mero expectador[7]. Isso impede que o mesmo tenha uma postura positiva no sentido de produzir alguma prova, mesmo que com o intuito de alcançar a bendita verdade. Ele deve abster-se quanto à produção de provas, ficando seu mister restrito apenas à seleção e eleição de hipóteses plausíveis, calcado no material probatório apresentado. A captura psíquica do convencimento do juiz se dá por esta função persuasiva das provas, que habilita o mesmo a legitimar o poder contido em sua sentença. [8]


Visto isso, é fundamental para a justiça e legitimidade da sentença, sob o ponto de vista ético-jurídico, que o juiz não tenha um discurso romântico. Ou seja: que não procure uma realização pessoal, um sentido de vida, ou ainda um “final feliz” para a história contada pelas partes no processo. O romance contém um perigoso alento ao próprio destino de seus leitores, e que não tem espaço no processo-história da vida real de pessoas humanas. Ele é a esperança de aquecimento de suas vidas geladas com a “morte” descrita na história.[9]


Destarte, a mencionada sabedoria presente no discurso narrativo deveria compor aquilo que, concordando com LOPES JR., entendemos ser o ideal para processo penal moderno: o abandono da ânsia pela verdade e o reconhecimento da existência de meras hipóteses para a solução dos casos penais. Pois é esta a sabedoria transmitida no discurso de tantos outros autores de fora da área jurídica que tem dado grande contribuição para a abertura de dogmas tão fechados que encontramos no mundo do Direito, tais como O Olho e o espírito, de MERLEAU-PONTY [10] e As estruturas o Imaginário, de DURAN[11], utilizados por LOPES JR. na maioria de suas obras.


Pois o grande mérito da narrativa está no seu senso prático. Sua dimensão utilitária visa a evitar explicações, fazendo uma sóbria concisão despida de análise psicológica, o que facilita a sua memorização. Esta renúncia a sutilezas psíquicas é o ponto-chave para a assimilação da própria experiência: o sujeito certamente cederá a inclinação de repassar esta experiência adiante um dia. [12]


A narrativa não se preocupa em transmitir uma informação detalhada e precisa. Ela mergulha na vida de quem narra a história e extrai aquilo que realmente interessa: a sabedoria.[13] E o lado épico da verdade trata-se justamente desse extrato, ou seja, daquele saber adquirido que permite ao sujeito passivo da narrativa a possibilidade (e não certeza ou verdade) de acerto na sua decisão.


Entendemos que aqui se insere a grande questão levantada neste artigo: até que podemos aceitar a imposição de uma verdade no processo, se o mundo exterior a ele se prende em informações fúteis e desprovidas de sapiência. Se os valores da sociedade atual não permitem atribuir uma adequada valoração a um saber consolidado, por que é que se está a ir atrás de uma “verdade” no processo, seja ela qual for? O Estado não tem o direito de errar como os humanos. Portanto, não deveria desperdiçar sabedoria ao buscar tal verdade. Ao invés disso, necessita-se de uma revalorização do discurso narrativo e da transmissão da sabedoria, sobretudo no processo penal. Afinal, a “verdade” que tanto se busca, e que transcende o tempo, está contida apenas na sabedoria.


A verdade, portanto, é um dado real. No entanto, a sua transmissão subjetiva e concisa só é possível através da sabedoria. E esta por sua vez só se transmite pelo discurso narrativo.


 


Notas:

[1] Textos-base: O Narrador: observações sobre a obra de Nicolai Leskov, de Walter Benjamim; Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, de Aury Lopes Jr.

[2] BENJAMIN, Walter. O Narrador: observações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, pág. 200.

[3] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 4ª Edição, Volume I. Ed. Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2009, pág. 549.

[4] LOPES JR., pág 561.

[5] LOPES JR., pág 550.

[6] BENJAMIN, pág. 205.

[7] Não adentraremos no mérito da questão da distribuição de cargas e assunção de risco no processo penal, já que não é o foco central do artigo. O autor refere que nesta espécie de processo o que se deve proceder é uma entrega de carga probatória totalmente nas mãos da acusação, tendo a defesa uma mera assunção de riscos ao não apresentar provas, haja vista o postulado da Presunção de Inocência consagrado pela Constituição Federal Brasileira (LOPES JR., pág. 530)

[8] LOPES JR., pag. 519.

[9] BENJAMIN, pág. 219.

[10] LOPES JR. comparou em sua obra a testemunha do processo penal com o pintor que MERLEAU-PONTY afirmou não ser hábil a totalizar uma pintura inteiramente realizada, “por faltar ao olho condições de ver o mundo e faltam ao quadro condições de representar o mundo”. (apud LOPES JR., pág. 556).

[11] O mesmo autor traz na já referida obra jurídica o acréscimo que DURAN traz ao afirmar que “a fantasia/criação faz com que o narrador preencha os espaços em branco deixados na memória com as experiências verdadeiras, mas decorrentes de outros acontecimentos. A imaginação colore a memória com outros resíduos. É o clássico exemplo do cubo: podemos ver duas, no máximo três faces. O cubo só é real no imaginário, pois somente assim se conhece as seis faces. Não há duvida de que a imaginação não forma imagens, mas deforma as cópias pragmáticas fornecidas pela percepção. Isso, sem considerar a intenção de deturpar, pois parte da premissa da “boa testemunha”, o que é uma ilusão.” (apud LOPES JR., pág. 556).

[12] BENJAMIN, pág. 207.

[13] BENJAMIN, pág. 208.


Informações Sobre o Autor

Andrei Röehrs Portinho

Perito Criminal Oficial. Bacharel em Direito. Pós-Graduado em Administração Pública e em Processo Penal. Mestre em Ciências Criminais


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