Direito ao absurdo


A tradição legalista, deveras extrema, do sistema jurídico e político brasileiro, ao mesmo tempo em que nos estampa o árduo trabalho do legislador[1] (em sentido amplo) em submeter a profunda atividade doutrinária e jurisprudencial de esquerda à três ou quatro linhas postas, nos contempla com uma nova onda de direitos emergidos dos já consagrados princípios fundamentais.


O labor do jurista se concentra na subsunção do fato à norma, porém com a devida e merecida carga axiológica, no desvelar de novos horizontes da ciência jurídica aplicada (apreciamos entender a ciência jurídica como voltada a um fim), na quem sabe perspectiva de resolução dos conflitos, e das enfermidades, surgidas do convívio intersubjetivo em sociedade, com base num juízo mais claro de justiça; e a jurisprudência de esquerda (não utópica, mas sócio-realista) se inclina a consolidar a formação de direitos não postos, todavia não pressupostos, por meio da modulação formal da norma positiva, clara na intenção de melhor resolver os litígios.


Enquanto tudo isso acontece, nosso querido legislador, figura metafísica, eminentemente política e, por vezes, avessa à razoável ética jurídica e social, insiste em se contrapor a todo o esforço empreendido para o conserto de suas próprias tolices e negligências, engendrando construções legislativas cada vez mais distorcidas da realidade, e do mínimo de aceitabilidade jurídica em termos de direitos humanos.


São verdadeiras obras feitas com areia de praia, onde basta tênue vendaval ou uma relapsa onda marítima para desmoronarem os frágeis pilares da edificação legislativa positivista.  O resultado é um amontoado de areia remoída e destroçada pela força do pensamento que pauta a resolução dos conflitos, não apenas na construção de castelos inseguros para acomodar o ideal válido da justiça, como principalmente na pressuposição de ações constantes que somente podem ser aperfeiçoadas pela difusão da educação e da informação, indiscriminada, incondicionada e essencial.


Deve-se observar que o respeito às leis não se encontra no matiz formal da codificação legislativa, ou do esparso conglomerado normativo reformador ou complementador, mas no respeito à moralidade subjetiva, que deriva, justamente, de largo processo de aprendizagem histórico-cultural adquirido, deglutido e posto à mesa das gerações que se sobrevém com o passar dos anos.


Interessante nisso tudo é o que o legislador, curiosamente, atira constantemente no próprio pé. Como não percebem toda a movimentação científica, de índole progressiva, pelos diversos setores do saber? Sim, é claro, em alguns casos, ou na maioria deles, não se exige sequer nível superior para ocupar alguns cargos de tanta importância. Quer dizer, eleger ou idolatrar seres humanos desconhecedores dos saberes políticos, sociais, econômicos e jurídicos, na formação de uma sabedoria, rasa, porém necessária, à compreensão da práxis legislativa (conciliação entre a teoria adquirida na formação acadêmica com a percepção prática da realidade e de suas necessidades) é tão costumeiro que submetemos o desejo social de prosperidade à ignobilidade político-partidária. Ou, a exemplo, eleger os representantes do povo, sem que tantos deles tenham mínimo de qualificação, é dizer, e reconhecer, que o próprio povo é ignorante. Existe aí democracia, então? Só nos sonhos.


O tiro no pé é o vaivém da norma posta, que apesar de posta, não é absoluta. Críticas e mais críticas são feitas para que exista maior consciência legislativa, e executiva, no tratamento das questões gerais que cuidam da regulamentação do convívio entre pessoas e da relação dessas com seus bens apropriáveis (materiais) ou não apropriáveis (imateriais) e de suas relações com o Estado. Talvez não entendam porque sequer compreendem. Precisamos desenhar? De repente facilita.


Tudo isso faz crescer e emergir um sentimento de repúdio cada vez maior ao labor legislativo e executivo, típico e atípico respectivamente. Uma hora cansa, digam-lhes, contudo, não é mentira que a esperança é a última que morre tampouco que os felinos têm sete vidas e juristas e estudiosos são, por excelência, imortais.


O posto não deve, nem pode, ser o por do sol, mas o seu nascer, donde o raiar incumbe à capacidade iluminadora da doutrina e da jurisprudência progressista, pois, caso contrário, adormeceremos no movimento cíclico da crítica e do erro, do erro e da crítica, da reiteração da mediocridade e da medíocre reiteração do erro antes criticado (e como).


Aí, como uma facada nos rins, sentiremos a dor de que nada mais basta o que outrora deveria ter bastado, e nos contentaremos com a dimensão última da crítica científica no reconhecimento inevitável do privilegiado direito que restará em nosso pleno gozo: o absurdo.






Notas:
[1]
Para os devidos fins terminológicos abstratos, favor considerar “legislador” não apenas à idéia de quem cria as leis comuns, mas todo o gênero que, por competência, edita decretos,  atos normativos, e tudo o mais que se entender cabível no sentido global de gênese de regras, seja em âmbito tipicamente legislativo, executivo ou judiciário.




Informações Sobre o Autor

Luiz Felipe Nobre Braga

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Advogado especialista em Direito Público. Autor dos livros: Direito Existencial das Famílias da dogmática à principiologia Ed. Lumen Juris 2014; Metapoesia Ed. Protexto 2013; Educar Viver e Sonhar dimensões jurídicas sociais e psicopedagógicas da educação pós-moderna Ed. Publit 2009. Professor da Pós-graduação em Direito da Faculdade Pitágoras em Poços de Caldas


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