Direito, Educação, Política e Estado: Palmada na razão, regozijo na intenção

A nova lei que proíbe as palmadas[1] é o novo exemplo trazido pelo Estado de que o cidadão não é suficientemente livre para fazer uso racional de suas liberdades, especialmente, a liberdade dos pais de educar seus filhos com base nos desígnios próprios do costume que os têm albergado.


Quando se fala em educação, usando a força física, como castigo e, portanto, como parâmetro de disciplina, tem-se que atentar para o fato de que não se admite, segundo uma moralidade objetiva, que tal moléstia disciplinar ultrapasse os liames da razoabilidade, pois caso contrário, a ocorrência se adequaria materialmente nos ditames do crime de maus tratos. No entanto, o empreendimento legislativo além de demonstrar uma total intervenção na intimidade familiar da sociedade brasileira, demonstra uma grande preocupação em modificar os ideais de bom e mau, justamente, os vértices incontestáveis da noção moral. A tentativa de transformar tais padrões, socialmente aceitos (palmada disciplinar) acaba por atravessar, no usufruto das liberdades individuais, um ideal de controle e determinação de bem-comum.


Com efeito, o trajeto histórico percorrido por uma sociedade ao longo dos séculos permite que se construam as noções de bom e mau, conforme os modelos sociais vigentes, principalmente no modo como as famílias atuam na educação de seus educandos. Esta consolidação do que é moral ou imoral é algo cuja importância o Estado não pode alterar através da imposição legal, sob pena de completo abandono da legalidade. Diz-se tal abandono porque tendo em vista que se impõe algo impróprio de ser concretizado, a regra positiva que dá substância a esse dever de ação perderá seu valor social por falta de substrato moral. Quer dizer, o costume não revoga a regra, apenas uma norma moral poderia revogar uma regra, na medida em que seu fundamento de prevalência fosse mais denso do que aquele que sustenta a regra, por conseguinte, outorgando para si o dever normativo de afastar a regra, sob tal perspectiva, tirânica e injusta. Ainda, se somente uma norma moral socialmente validada pode revogar, tacitamente, uma regra posta, significa que o Direito é atrelado à moral e, assim, submete a sua eficácia ao seu império, ou seja, é lícito, nessa pós-modernidade, sobretudo, legitimar uma adequação do posto ao não posto, visto que, aquilo que se diz pressuposto, num contexto moral, independe de comprovação empírica, ao ponto em que, sua verificação para suficiência, baseia-se na égide do próprio costume, tão logo, a reiteração evidente de uma prática moral e socialmente aceita e validada através do tempo e das gerações.


Tais pontos constituem o corolário do conceito de justiça dinâmica e, mormente, à percepção transcendental da moral como aspecto a priori, e premissa prejudicial, para a incidência mesma do regramento jurídico-positivo. É, outrossim, o epíteto de um pós-positivismo jurídico que se mostra inconformado com as arbitrariedades do Direito Positivo, nomeadamente quando este insiste em disciplinar o que o costume e a moral já disciplinam, sendo que, disciplinam de modo muito mais válido e, consequentemente, justo, tocando à razoável medida entre o que é aceito como bom ou mau.


O Estado não pode disciplinar a liberdade de educar, pelo contrário, pode e deve punir os excessos. Mas isso já é feito pela legislação contida no Estatuto da Criança e do Adolescente, descabendo, pois, regras que vão além do socialmente necessário. A figura de um modelo político intervencionista nas liberdades individuais é insuficiente, posto que aloque para o esquecimento a condição cultural e moral da sociedade em que ajusta suas raízes de eficácia.


Por outro lado, carecemos de uma argumentação voltada para a política, de tal sorte que, pelo exposto, o Direito Positivo não é legítimo para intervir no campo cultural médio, mas deve ser uma prerrogativa formal apenas para a implantação de uma política social voltada à educação baseada unicamente no diálogo. Isso quer dizer que o caminho escolhido para a intervenção do Estado na cultura da palmada como método educativo não poderia acontecer através da criação de uma regra proibitiva, contudo na implantação de um sistema de vigilância, a cargo de órgãos como Ministério Público, Conselho Tutelar etc., para impedir que a educação continuasse a repousar na aflição corporal ao invés de ter sua base na tolerância dos pais em relação ao desenvolvimento biopsicossocial de seus filhos.


Certamente, a regra que trouxe esta proibição indica uma grave crise, cujo colapso está marcado justamente pela publicação da nova lei. Se o Estado chegar a intervir desta maneira, precisamos perceber teleologicamente sua intenção que, em grande verdade, está em retirar a grande parcela de culpa que historicamente se atribui à escola pelo insucesso na educação de crianças e adolescentes, restaurando o dever moral da família de preservar a formação primeira destes, em contrapartida a todo discurso que procura explicar os déficits de consciência cívica e ética na estrutura escolar pública ou privada.


A família é a escola par excellence que ensina os preceitos éticos da vida em sociedade e é onde se encontra o sistema moral capaz de fazer com que a criança e o adolescente cresçam embebidos na utilização racional de suas liberdades. Ou seja, o fato do Estado intervir de modo tão incisivo na cultura da palmada, por um lado revela que o planejamento político-educacional é falho, porque não é pela regra que se muda um costume até então tido como válido, mas na formação de consciências a partir das políticas de massas, àquelas perpetradas ao longo do tempo e não instantâneas e imperativas como ocorre com a imposição de uma lei. Do ponto de vista político seria muito mais viável que o Estado demonstrasse os benefícios da educação pelo diálogo, pela tolerância e pela benevolência e não reprimir, de plano, uma determinada conduta. Isto, no entanto, se dá por meio de professores capazes de se tornarem educadores e de gestores escolares empenhados com a necessidade fundamental de entrelaçar a família no processo de aprendizagem do educando, provando as vantagens racionais e éticas de uma educação edificada na troca de experiências e no desenvolvimento da capacidade reflexiva do educando.


Por isso, reprimimos a palmada como método educativo, mas também reprimimos o Estado por atribuir eficácia a uma lei impensada que surtirá efeitos contrários à sua ideia inicial. Hoje, portanto, é ilícito dar palmadas e castigos vexatórios nos filhos, uma regra contrária à razão, todavia, a regra que é contrária à razão, e é da razão prática que nos referimos, e não a intenção que é irracional, apenas optou-se por um caminho errado para resolver um problema flagrante da sociedade brasileira. Este é um exemplo do fenômeno de total inaplicabilidade do princípio da legalidade, posto que, neste caso, a regra coage pais e mães ainda não sabedores dos benefícios da educação benevolente, resultando, inequivocamente, no desprestígio do Estado que sequer aparenta saber a respeito do que é necessário para a formação de uma sociedade melhor e, ainda, como agir de forma interventiva, pensando na busca pelo bem-comum em detrimento da possibilidade dos pais utilizarem racionalmente da liberdade de educar seus filhos.


Agora, temos pais irracionais por não saberem os prejuízos da violência disciplinar e o que é pior, um Estado incapaz de fornecer esta educação primeira antes de tentar lograr qualquer sucesso na tipificação de uma conduta.


Tanto é inconstitucional a nova lei que proíbe a palmada como é inconstitucional dar palmada para educar.


A solução não está no imperativo, mas no diálogo travado entre Estado e família, algo até agora negligenciado, tornando incoerente a política de repressão à violência. Afinal, se não podemos, pelo ideal da educação benevolente, aplicar palmada para educar nossos filhos, pois agora protegidos por lei especialíssima, quem é que então nos protegerá da violência do Estado, em cujos ombros abstratos residem as premissas da democracia e, por conseguinte, da participação popular nas decisões, em publicar regras completamente destoadas do sentido mesmo que pregam, ou seja, não bata, não agrida, mas prefira o diálogo? É mais uma prova de que uma reforma política e institucional figura como urgente. Tomara que não demore.


 


Nota:

[1] Artigo produzido mediante a orientação do Dr.º Paulo Sérgio Tavares, Procurador do Município de Taubaté-SP.


Informações Sobre o Autor

Luiz Felipe Nobre Braga

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Advogado especialista em Direito Público. Autor dos livros: Direito Existencial das Famílias da dogmática à principiologia Ed. Lumen Juris 2014; Metapoesia Ed. Protexto 2013; Educar Viver e Sonhar dimensões jurídicas sociais e psicopedagógicas da educação pós-moderna Ed. Publit 2009. Professor da Pós-graduação em Direito da Faculdade Pitágoras em Poços de Caldas


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