Retórica jurídica & ética argumentativa: A arte de escrever

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 “Que obra de arte é o homem, e quão nobre sua razão! Quão infinitas suas faculdades! Em forma de movimento, quão expressivo e admirável! Na ação, é como um anjo; na inteligência, assemelha-se a um Deus; a beleza do mundo, o paradigma dos animais.” Shakespeare, Hamlet, 1604


A primeira lição[1] que se aprende geralmente num curso de Direito é sobre a importância da escrita, da leitura e da oratória – características básicas para um futuro novel jurista. Especificamente, a retórica jurídica, no campo da escrita, aspecto essencial do Direito, é onde se imprime toda a eloqüência permitida pela razão àqueles que conseguem, artisticamente, mover as palavras na direção precisa do argumento embasado na mais alta qualidade discursiva, expressando, em aguda destreza, das mais tênues às mais complexas situações da vida que as construções sintáticas são capazes de retratar.  


Atingir o ponto culminante da retórica jurídica, que é o convencimento, não é tarefa fácil, pelo contrário, demanda profundo conhecimento do assunto tratado e, além disso, desenvoltura técnica quanto à aplicação da lei e percepção inequívoca da língua e sua conjectura gramatical, na medida em que a correta disposição dos termos é condição para existência de um texto conciso do ponto de vista morfossintático e coerente sob a ótica do devido encadeamento lógico dos fatos narrados e aspectos cardinais substantivos da problemática central apresentada.


No mundo jurídico as expressões contemporâneas à seara processual são as representações que indicam o sucesso ou não de uma argumentação. “Deferimento”, “indeferimento”, “conceder ou negar provimento” são talvez os termos pelos quais é feita a verificação se todo um esforço empreendido foi, enfim, frutífero. Nestes casos, a linha tênue que separa o prêmio da casual tutela jurisdicional conferida e o desprestígio de uma derrota inoportuna, perpassa pela simples consideração de que no due process ambas as partes têm idênticas condições de produzirem resultados, inobstante seja, para cada uma destas, satisfatório em certa medida.


Ainda, a questão de conseguir ou não aquilo que se busca é a proporção existente entre a racionalidade do pedido e sua concordância fática e normativa. Verdadeiramente, o que se escreve nos autos processuais é, de per si, prova mesma de uma intenção desejada, ao mesmo tempo em que deve ser a expressão adequada do Direito visado de acordo com o fato social que o gerou.


Assim sendo, a diferença observada mediante a aferição de fecundidade dos requerimentos apresentados ao magistrado, à turma ou ao pleno, trata-se muito mais daquilo que realmente é, por força da aplicação de um princípio de justiça, do que efetivamente aparenta ser.  Daí que, profissionalmente, diante da ética argumentativa e de uma postura moral e socialmente amadurecida, não é lícito requerer o que não se deve, tampouco contestar aquilo que é sabido ser incontestável, mas, por outro lado, garantir a concreta e eficaz perfeição do devido processo legal (due processo of law), formal e substantivo, ou seja, quanto às garantias procedimentais lógicas (prazos, possibilidade de participar e interagir nos atos processuais) e quanto à potência de produção de efeitos relacionadas à correta defesa cabível.


Inobstante, a ordem não é a da percepção ética do discurso jurídico. Não é, também, uma ordem natural que, pela história humana aconteceria em inevitável viciosidade. Quer dizer, num mundo onde é preciso angariar fundos para sobreviver não há que se falar – ou se fala muito pouco – numa ética plena no discurso processual o que transforma a crítica numa aliteração performática daqueles que persistem em sonhar com tal quimera. Todavia, a apreensão do conhecimento ético do discurso jurídico só pode ser conhecida do homem que provar da real virtude da justiça, nos moldes do adágio romano, onde a pregação do conceito máximo do Direito prevalecia no entendimento mesmo da arte do bom e do justo.


A inteligência que se mostra desprezível, sob a perspectiva filosófica mais estrita, perfeita numa subversão autêntica da função tópica da escrita forense, é, mormente, uma sabatina implícita do conflito presente na vida do jurista pós-moderno. Estudar o Direito não passa mais pela estética de sua essência, entretanto, pelo carma que lho foi imposto por uma ideologia mercadológica edificada ao longo dos séculos e que agora atinge seu ponto mais elevado, constituindo o início da derrocada do uso racional da linguagem como instrumento de busca e tentativa solidificadora da paz.


Diante deste panorama, a atitude do magistrado, da turma ou do pleno, ganha sumária importância. Entre a perquirição de uma verdade supostamente demonstrada nos autos e a aquela verdade que também se busca no campo da realidade, subsistem, por detrás de qualquer conduta processual ou atitude técnico-formal do Estado-juiz, seres humanos interrelacionados numa problemática social de consequencias jurídicas.


Definir, acertadamente, um litígio é uma tarefa que não pode prescindir da análise, prima facie, dos princípios envolvidos e do Direito apropriado, de modo que lha traz a justeza da tutela jurisdicional. Pois, a tutela é devida para as partes como obrigação peremptória de um juiz com encargo conotativo de Estado, portanto, demandando funcionalmente, para si, o ato mesmo de manifestação de um pressuposto político ligado à noção do sufrágio, motivo pelo qual, é absoluta a tese de que a democracia como expressão universal deste direito é exercida e concedida pela instituição da magistratura como prerrogativa de tratamento razoável e equilibrado.


Olvidar do ato decisório, seja incidental ou terminativo, a situação das partes envolvidas, como humanos e não apenas como estereótipos formais colocados em posição de autor e réu no processo, permite que a tríplice relação formada encontre justificativa na idéia de que não há processo, como parte ou meio do Direito, sem antes haver no mundo titulares, par excellence, das diretrizes transcendentais[2] balizadores das normas e regras que lembram os limites do uso racional da liberdade, adquirida desde o vir-a-ser do óvulo fertilizado, como potência regular, contínua e crescente de vida[3], até mesmo após a morte, quando ainda perdurarem no mundo material as obrigações, os créditos, as idéias e os escritos, por honra, imortais no infinito oceano da personalidade humana.


Sendo, por conseguinte, o processo como uma relação entre pessoas, evidentemente, o modo pelo qual se firma o pedido deve vir acompanhado da mais alta objetividade, o que não exclui a inclusão do sentimento através das palavras. Mas, ao condensá-las em orações, é imperativo que o jurista se coloque como um personagem, cuja essência do discurso não atravesse um prolixo monólogo, todavia no estabelecimento de um diálogo de clareza apto a responder as questões formuladas pelo magistrado antes mesmo de sequer ganharem o plano da externalidade. Quer dizer, explicar os aspectos condicionantes daquela motivação, trazendo, impreterivelmente, os dados julgados como indispensáveis à razoável apreensão do problema que se impõe ao exame judicial. Por isso que a retórica não é instrumento, juridicamente falando, da estética vulgar, como é o marco fundamental do processamento dos elementos relevantes dispostos claramente no plano da formalidade, na verdade, os princípios da certeza e da pontualidade. A certeza é a dimensão consciente que resulta no ato próprio do pedido: nítido quando pontual, obscuro quando disperso. São, ainda, pressupostos da ética do discurso que impedem a banalização do processo e da atividade tutelar do Estado-juiz.


Destarte, quando se logra sustentar um calhamaço de palavras formuladas de forma displicente, está colocado o primeiro indício de que a parte, por seu representante, não é titular legítima daquilo que ora peticiona. Por outro lado, a clareza e a objetividade citadas conferem ao magistrado duas oportunidades: (i) de ver que realmente a parte atingiu o ponto importante do litígio, auspiciando, para si, o sucesso de sua busca; (ii) ou de perceber  que, mesmo não lhe sendo íntegro o direito pleiteado, sendo que, cabe a argumentação como ocasião de defesa enquanto proteção de sua dignidade, a sua intenção não está na subversão de um ordem que sabe estar certa, contudo, na resposta ao chamado da justiça que, para ser efetiva, contém, em sua égide, a presença do elemento ético, enquanto condição de prejudicialidade.  


Porém, elementar é o desenvolvimento de tais competências no lugar onde se formam os profissionais da área respectiva: a universidade. Se da prolixidade e da confusão sobreviverem os ensinamentos em sala de aula, a formação do futuro jurista restará abalada, bem como, se do mercado continuar o Direito a se submeter, jazerão no esquecimento a justiça e a ética, outorgando, à paz, o discurso de utopia e, à condição humana, o produto final pela morte da consciência perpetrada pelas suas próprias mãos ou pelos seus próprios desígnios subvertidos ao longo dos anos – na ideia de finitude e mortalidade certa, sem dúvida, catalisadores deste flagrante colapso.


Com efeito, não existem verdades jurídicas absolutas, ou seja, envoltas completamente na perpetuidade de suas proposições, mas versões bem ditas de verdades parciais ou interessantes a somente uma das partes. Isso, no entanto, é uma constatação que se afigura como típica no ambiente discursivo onde a ética não é respeitada, enquanto virtude da justiça e pensamento no outro litigante, como digno do direito pleiteado. Ainda, as infinitas e indeterminadas possibilidades argumentativas que são viáveis durante a escrita só podem encontrar um limitador num princípio eminentemente subjetivo que, por sua vez, garante que a discussão em sede judicial não extrapole os horizontes do absurdo, em relação ao que é ou não razoável e esperado diante daquele caso concreto. Quer dizer que, uma verdade que é falseada do ponto de vista da sociologia empírica pode ser percebida pelo magistrado mais atento. A fórmula de Protágoras ainda subsiste no mundo da retórica jurídica mais costumeira: “o homem é a medida de todas as coisas”. Vale ressaltar, o poder da subjetividade se transforma na capacidade de entrelaçar as palavras em torno das próprias finalidades, característica imutável do ideal erístico da sofística clássica, que é justamente o caráter modular do argumento que, no plano erístico, se traduz na perfeita adequação entre o argumento que se constrói e o objetivo do retor que lho dá existência.


Faltando o elemento ético no discurso jurídico exclui-se de sua essência a possibilidade de apreciação da verdadeira justiça, haja vista que este conceito não pode residir apenas na clássica lição de que deve ser prestada e garantida pelo Estado. A potência ética de um discurso é condição de prejudicialidade de uma sociedade amadurecida do ponto de vista da construção da consciência coletiva capaz de mover e motivar o desenvolvimento humano à perfeição dos ideais até então resumidos à teoria e restritos ao âmbito acadêmico. Apenas ensinando como se dá a justiça a partir dos pequenos exemplos é que se pode lograr êxito na busca por uma nova onda de juristas empenhados na convivência pacífica; porque proclamar a paz e a ética não se trata de uma fala vazia, ou destituída de sentido, pelo contrário, são elementos pressupostos em toda e qualquer atividade jurisdicional; e só deveria haver direito de postular àqueles que, eivados de sinceridade, pudessem reiterar, pelas palavras, atitudes de fundo moral, portanto, adstritos ao real núcleo do que seria um devido processo.


Na verdade, devido processo não é a possibilidade de ambas as partes falarem e produzirem resultados nos autos, mas a capacidade destas de discutirem assuntos mais importantes e mais substanciais do que os papéis aparentam. O exercício do devido processo, nessa ótica, perpassa pelo cultivo de profissionais preocupados com seres humanos e com as relações destes com o meio, na medida em que possam responder às perguntas de razão formuladas perante o órgão judiciário, dando-as solução satisfatória e moralmente suficiente. Todavia, demanda a conjugação oportuna de abstenção e tolerância, termos fundamentais para o campo da ética no discurso.


Restaurar a tradição estética, enquanto busca do que é bom e do que é correto, por dever e não por convenção ou adequabilidade, significa reconhecer a inquietude permanente no espírito do profissional do Direito ansioso pela justiça e pelo equilíbrio de suas ponderações, ao mesmo tempo em que certifica que a busca pelo objeto estético ainda não foi consignada e trancafiada na obscuridade incerta do intelecto humano.


Se por um sinistro sobrevier lesão a tal imperativo, não passará de mero infortúnio, característica irremediável do nosso lado falível, inquilino perpétuo da razão do homo sapiens sapiens pós-moderno. Mas, diante de fortuito dessa espécie e qualidade, restará sobre o gozo da justiça, a condescendência da outra parte que compõem o litígio, publicando por autêntica arte discursiva o erro obstativo do fim antes colimado a partir da provocação do Estado-juiz, dando, enfim, certeza de que a razoabilidade existe e, por isso, precisa ser observada.


Finalmente, a arte de escrever não será o instrumento pelo qual o artesão das palavras convence outrem a respeito de sua tese, mas que o constrange à percepção racional de que não há mão sozinha e suficientemente precisa que possa produzir o vaso em que se firma a justiça e em cujo interior reside a ética; todavia por duas mãos postadas simetricamente, agindo em movimentos inversos, porém cíclicos e proporcionais, presenteando ao espaço a confecção lógica de um processo devido, autenticado pela estética substantiva e rubricado pela justeza, formando o móvel que moverá sua matéria ao rígido e estático imóvel, consequencia não absurda e não utópica da práxis  pós-positivista do processo e do discurso jurídico alçados na virtude.  


 


Referências

ARISTÓTELES. Metafísica. Milano: Becca, 1943.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos; Alexandre Fradique Morujão. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

 

Notas:

[1] Artigo elaborado mediante a supervisão do Dr.º Paulo Sérgio Tavares, Procurador do Município de Taubaté-SP.

[2] No sentido atribuído por KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos; Alexandre Fradique Morujão. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

[3] Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. Milano: Becca, 1943.


Informações Sobre o Autor

Luiz Felipe Nobre Braga

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Advogado especialista em Direito Público. Autor dos livros: Direito Existencial das Famílias da dogmática à principiologia Ed. Lumen Juris 2014; Metapoesia Ed. Protexto 2013; Educar Viver e Sonhar dimensões jurídicas sociais e psicopedagógicas da educação pós-moderna Ed. Publit 2009. Professor da Pós-graduação em Direito da Faculdade Pitágoras em Poços de Caldas


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