Proteção constitucional e internacional da livre concorrência

Resumo: O presente artigo visa fazer uma análise tanto da proteção constitucional quanto internacional da livre concorrência.


Em função da globalização do mercado e da incessante busca pelo lucro, muitas vezes por meios ilícitos, faz-se necessária a ampliação dos meios protetivos da livre concorrência, não só com o objetivo de preservar a competição mas também como forma de proteção dos consumidores, haja vista que a concorrência implica uma constante busca pela melhora do produto, assim como uma redução do preço.


Essa proteção também se justifica em razão do advento do Estado Regulador, no qual as atividades até então desempenhadas pelo Estado passam a ser desempenhadas por particulares em regime de competição, em regra. Dessa forma, o Estado se afasta de atividades econômicas para priorizar sua competência regulatória quando necessária (princípio da subsidiariedade). Tal competência se destina tanto ao campo econômico, para afastar as falhas de mercado, quanto à promoção de políticas públicas.


Nesse sentido, no modelo regulador, a atuação estatal sobre a ordem econômica se dá de maneira indireta, através de órgãos reguladores, com a imposição de normas para coibir e reprimir abusos e distorções no mercado e também para promover medidas de cunho social[1].


Conforme leciona Fábio Konder Comparato a regulamentação (proteção) da concorrência surgiu da necessidade de que a liberdade de acesso ao mercado, decorrente do liberalismo econômico, não se transformasse em uma licença em prejuízo do próprio mercado e da concorrência[2].


Dessa forma, segundo Marcos Juruena Villela Souto, a defesa da concorrência “objetiva viabilizar o princípio da livre iniciativa e da defesa do consumidor, instituindo e preservando a competição onde ela seja viável e minimizando os efeitos do monopólio, onde ele se faça indispensável”[3].


Desta feita, é necessário que haja um regime jurídico, o qual compõe-se em um conjunto de normas e instituições que regulam as formas de aquisição do poder econômico e seu exercício, segundo os valores adotados pela ordem jurídica[4].


A proteção constitucional da livre concorrência decorre do entendimento dela consistir em uma decorrência necessária do princípio da livre iniciativa. Eros Roberto Grau leciona que a Constituição Federal estatui como fundamentos da República o valor social do trabalho e o valor social da livre iniciativa (art. 1°, IV). De outra forma, a livre iniciativa – um dos pilares do capitalismo – deve observar a sua função social, não podendo operar ao seu bel prazer[5].


Ou seja, na Constituição Federal brasileira em vigor, o princípio da livre concorrência é um dos balizadores necessários para que a livre iniciativa possa corretamente atender à sua função social. Esse princípio impõe obrigações positivas e negativas aos agentes econômicos. Se de um lado permite a adoção de quaisquer técnicas lícitas de conquista de mercado – para o que conta com a neutralidade do Estado –, de outro proíbe (e pune, se for o caso) a utilização de meios que falseiem a livre competição.


Ademais, apesar de a Constituição Federal de 1988 adotar o regime capitalista na ordem econômica, ele não impera em sua forma individualista. A atividade econômica só será legítima na medida em que observar os princípios constantes do art. 170, CF/88, dentre eles o da livre concorrência (inc. IV) e da defesa do consumidor (inc. V)[6]. Nesse desiderato, A livre concorrência é erigida na Constituição Federal de 1988 à condição de princípio da ordem econômica. Trata-se de princípio constitucional impositivo (Canotilho).


Nesse sentido, Eros Grau afirma que a livre iniciativa deve ser entendida em sua dupla face[7]: enquanto liberdade de comércio e industria (art. 170, parágrafo único) e enquanto liberdade de concorrência (art. 170, IV). O primeiro consistindo nas liberdades públicas de não sujeitar-se a qualquer restrição estatal senão em virtude de lei e na faculdade de criar e explorar uma atividade econômica a título privado.


Quanto à liberdade de concorrência, pode ser entendido nos seguintes sentidos: faculdade de conquistar a clientela; proibição de formas de atuação que deteriam a concorrência (liberdade privada); e neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, em igualdade de condições dos concorrentes (liberdade pública).


Este princípio, no sentido que lhe é atribuído – “livre jogo das forças de mercado, na disputa de clientela” -, supõe desigualdade ao final da competição, a partir, porém, de um quadro de igualdade jurídico-formal[8].


Nesse sentido, tem-se que a análise da livre iniciativa encontra necessária “complementação na ponderação do princípio da livre concorrência.”[9]


Ademais, José Afonso da Silva ensina que ela é uma manifestação da liberdade de iniciativa, e, para garanti-la, a Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (art. 173, parágrafo 4°, CF/88)[10]. E, assim, foi positivado a Lei n. 8.884/94, que transforma o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE – em autarquia e dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica.


Para Tércio Sampaio Ferraz Júnior[11], o princípio da livre concorrência (art. 170, IV, CF) trata-se de um processo comportamental competitivo que admite gradações tanto na pluralidade quanto na fluidez. Esse processo é definido pela concorrência, que, por sua vez, exige descentralização de coordenação como base de formação dos preços, o que supõe livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido, a livre concorrência é forma de tutela do consumidor (direito fundamental de 3° dimensão), na medida em que competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço. De um ponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é forma de desconcentração do poder. Por fim, de um ângulo social, a competitividade deve gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada.


Acrescente-se ainda que a concorrência há de ser tratada não só nos limites de cada Estado, mas também na esfera da internacionalização dos mercados, inserida no processo de globalização econômica. Isso porque a evolução tecnológica e a globalização dos mercados acarretaram mudanças profundas nos padrões de produção, provocando a intensificação da formação de blocos de integração e aumento do comércio internacional.


No entanto, os conceitos modernos de direito da concorrência ligam à noção de mercado relevante à noção de jurisdição. Isso não acarreta problemas nos mercados nacionais e pode acarretar ou não em um bloco, dependendo do seu sistema de controvérsias. Esse problema tem sido hodiernamente resolvido pela teoria dos efeitos ou da territorialidade objetiva. No entanto, essa construção teórica não tem sido suficiente para sua resolução, já que esta teoria sofre de dois graves males: da concorrência de jurisdições e da ausência de harmonização de conceitos.


No âmbito do MERCOSUL, o direito da concorrência deriva do art. 4° do Tratado de Assunção, materializado através do Protocolo de Fortaleza, que afirma que “os Estados-partes coordenarão suas respectivas políticas nacionais com o objetivo de elaborar normas comuns sobre concorrência desleal”.


O referido protocolo, no primeiro capítulo, trata do seu âmbito de aplicação, adotando regra semelhante à utilizada pela União Européia no art. 85, caput, do Tratado de Roma, ao restringi-lo às medidas que tenham efeito regionais, ou seja, sobre mais de um Estado. Assim, a aplicação do protocolo se restringe às práticas que tenham como mercado relevante mais de um Estado e que afetem o comércio entre Estados-partes.


No seu Capítulo II o protocolo trata dos atos que restringem a concorrência, adotando nesse particular noção semelhante à brasileira, que elenca condutas de maneira exemplificativa e as pune apenas quando têm como efeito a distorção à concorrência. Essa disposição decorre do reconhecimento da licitude do poder econômico, punido apenas o seu abuso.


Em suma, não obstante a globalização dos mercados e do atual papel do particular na atividade econômica, tanto em um âmbito local quanto internacional, tem-se que é necessária garantir a proteção da livre concorrência, crucial para o crescimento econômico sustentável, assim como para a preservação da competição e da defesa do consumidor.


 


Referência

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21ª. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

COMPARATO, Fabio Konder. Concorrência Desleal. Revista dos Tribunais, n. 375.

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 13ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos). São Paulo: Malheiros, 2001.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório. 2ª Ed, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

 

Notas:

[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. p. 653.

[2] Concorrência Desleal. p. 30

[3] SOUTO, Marcos Juruena Villela Souto. Direito Administrativo Regulatório. p. 112.

[4] SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos). p. 111.

[5] A ordem econômica na Constituição Federal de 1988. p. 201.

[6] Ibid. Idem.

[7] Op. Cit. p. 203/206

[8] GRAU. Op. cit. p. 210. Para exemplificar tal situação o autor cita os artigos 170, IX, 179 e o 171, parágrafo 1° e 2°, da CF/88.

[9] GRAU. Op. Cit. p. 202.

[10] Curso de Direito Constitucional positivo. p. 795.

[11] Apud GRAU. Op. Cit. p. 207


Informações Sobre o Autor

Ricardo Duarte Jr

Doutorando em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL); Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Especialista em Direito Administrativo pela UFRN; Especialista em Direito Constitucional e Tributário pela Universidade Potiguar (UnP); Vice-Presidente do Instituto de Direito Administrativo Seabra Fagundes (IDASF), Coordenador da Pós-graduação em Direito Administrativo no Centro Universitário Facex (UniFacex), Procurador Geral do Município de São Bento do Norte, Advogado, Consultor Jurídico e sócio do escritório Duarte & Almeida advogados associados


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