Livre iniciativa e livre concorrência na obra “A riqueza das nações” de Adam Smith

Resumo: O artigo tem o objetivo de analisar o significado dos princípios da livre concorrência e da livre iniciativa na obra “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith. Por meio de um estudo essencialmente bibliográfico, buscou-se fazer a análise sob duas dimensões distintas, porém intrinsecamente ligadas. Buscou-se contextualizar, historicamente, as iniciativas jurídico-políticas concernentes à manutenção do equilíbrio econômico que balizaram a sedimentação de tais princípios, essenciais a um sistema capitalista. Em seguida, foi feito um resgate das principais idéias filosóficas que provavelmente influenciaram o autor na construção de sua doutrina econômica, a qual enfatiza o pleno funcionamento da lei da natureza na esfera das relações econômicas.


Palavras-chave: livre iniciativa, livre concorrência, liberalismo econômico, Adam Smith


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Abstract: This paper aims at analyzing the meaning of the free competition and free enterprise principles in Adam Smith’s work “Wealth of Nations”. By means of an essentially bibliographic study, an analysis in two distinct dimensions, but intrinsically linked, was done. An historic approach was framed concerning the legal political leading actions relating to economic balance maintenance which marked juridical sedimentation of those principles, absolutely necessary to a capitalist system. Right away, it was done a rescue work about the main philosophical ideas which, most probably, have influenced upon the writer’s economic doctrine construction, that stress the action of the law of nature in economic affairs field.


Keywords: free enterprise, free competition, economic liberalism, Adam Smith


Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. O delineamento conceitual de livre concorrência e livre iniciativa 3. Concorrência na Antiguidade Grega e Romana. 4. A concorrência na Idade Média e as corporações de ofício. 4. O mercantilismo. 5. O liberalismo econômico e os institutos da livre iniciativa e livre concorrência. 6. Concepções filosóficas que influenciaram as idéias de Adam Smith. 7. As concepções de Adam Smith atinentes à liberdade econômica e livre concorrência na obra “A Riqueza das Nações”. 8. Conclusão


1. Considerações iniciais


Nada obstante a existência de uma relação instrínseca entre economia de livre mercado, liberdade econômica e concorrência, um estudo sobre os institutos da livre concorrência e liberdade de iniciativa pressupõe o abandono da sua necessária vinculação ao Estado liberal burguês, vez que o início da disciplina jurídica da concorrência não ocorreu concomitantemente ao surgimento de tal modelo de Estado. É preciso distinguir, então, “as regras que disciplinam a conduta dos agentes econômicos”, existentes desde sempre no interior das sociedades e a “regulação da concorrência correlata a um discurso técnico econômico” (FORGIONI, 2008. p. 28), existente com o advento do Estado Liberal.  A partir disto, é possível, portanto, dividir a evolução do fenômeno da concorrência em três fases: a) a determinação de regras para o comportamento dos agentes econômicos no mercado, por razões absolutamente práticas, visando a resultados eficazes e imediatos e eliminando distorções tópicas; b) a regulamentação do comportamento dos agentes econômicos como contraponto a um sistema de produção entendido como ótimo, ou seja, correlata à estrutura do próprio sistema de concorrência; c) a regulamentação da concorrência como essencial à manutenção do sistema e como implementação de políticas públicas. (FORGIONI, 2008. p. 28).


O objetivo do trabalho será tão somente a análise da concorrência no contexto do Estado liberal a partir do estudo do tratamento dado à livre iniciativa e livre concorrência na obra “A Riqueza das Nações” de Adam Smith, considerado por muitos como o pai do liberalismo econômico. Assim, a exposição inicia-se pela delimitação conceitual dos institutos. Em seguida será feita breve análise do fenômeno da concorrência durante a Antiguidade – grega e romana – e Idade Média, passando-se ao estudo do mercantilismo, cujas práticas resultaram no questionamento acerca da licitude dos monopólios estatais e privados. A partir de então, analisar-se-á o liberalismo econômico, dentro de cuja abordagem o estudo da livre iniciativa e a liberdade de concorrência será essencial, ao menos inicialmente, para a consagração do modelo. Neste sentido primordial a análise do tratamento dado a estes institutos no pensamento de Adam Smith, mais particularmente na sua obra “A Riqueza das Nações”, sem deixar de analisar as concepções filosóficas que serviram de suporte para o desenvolvimento de sua teoria econômica.


2. O delineamento conceitual de livre concorrência e livre iniciativa


A livre concorrência é indispensável para o funcionamento do sistema capitalista. Ela consiste, essencialmente, na existência de diversos produtores ou prestadores de serviços. É através dela que se aperfeiçoam as condições de competitividade das empresas, forçando-as ao constante aprimoramento de seus métodos tecnológicos, dos seus custos, enfim, na procura constante de criação de condições mais favoráveis ao consumidor. Traduz-se, portanto, numa das vigas mestras do êxito da economia de mercado.


Como alicerce fundamental da economia liberal, a concorrência tem por finalidade assegurar o regime de economia de mercado, não tolerando o monopólio ou qualquer outra forma de distorção do mercado livre. Neste sentido, é correto afirmar que a concorrência significa o ato ou efeito de concorrer, ou seja, traz em si a idéia de competição entre pessoas na busca do mesmo objetivo ou vantagem, em condições de igualdade. Na área econômica, representa a disputa entre todas as empresas para obter maior e melhor espaço no mercado. Assim, livre concorrência significa a possibilidade de os agentes econômicos atuarem sem embaraços juridicamente plausíveis, em dado mercado, visando à produção, à circulação e ao consumo de bens e serviços, isto é, procura garantir que os agentes econômicos tenham oportunidade de competir de forma justa no mercado (BAGNOLI, 2005, p. 61.)


A livre iniciativa significa a possibilidade de os agentes econômicos entrarem no mercado sem que o Estado crie obstáculos. Grau (2005, p. 202-203.) acentua que


“a liberdade de iniciativa econômica não se identifica apenas com a liberdade de empresa. Pois é certo que ela abrange todas as formas de produção, individuais ou coletivas. […] Assim, entre as formas de iniciativa econômica encontramos, além da iniciativa privada, a iniciativa cooperativa, a iniciativa autogestionária e a iniciativa pública”.


Desta feita, observa-se que tanto a livre concorrência como a livre iniciativa apresentam-se como fundamentos da economia numa relação quase que simbiótica, funcionando a primeira como instrumento da segunda.


Livre iniciativa e livre concorrência são, portanto, conceitos complementares, porém, distintos. A livre iniciativa caracteriza-se por ser a projeção da liberdade individual no plano da economia, ou seja, plano da produção, circulação e distribuição das riquezas, assegurando a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, bem como a utilização dos meios mais apropriados à consecução dos fins desejados. Já a livre concorrência tem caráter instrumental, na medida em que se apresenta como o “princípio econômico” pelo qual o livre jogo das forças determine os preços praticados.


Neste sentido, entende Bastos (2004, p. 144) que


“A livre concorrência é um dos alicerces da estrutura liberal da economia e tem muito que ver com a livre iniciativa. É dizer, só pode existir a livre concorrência onde há livre iniciativa. […] Assim, a livre concorrência é algo que se agrega à livre iniciativa, e que consiste na situação em que se encontram os diversos agentes produtores de estarem dispostos à concorrência de seus rivais”.


2. Liberdade econômica e concorrência na Antiguidade Grega e Romana


Já nas primeiras civilizações, a legislação escrita fazia referência a práticas monopolísticas[1]. A palavra monopólio foi utilizada pela primeira vez por Aristóteles na “Política” em discussão sobre as pessoas que instituíram monopólios de lagares e ferro, para posteriormente revendê-los com lucro em tempo de alta procura. Aristóteles (2000, p. 163) relata na referida obra a estratégia comercial travada por Tales de Mileto,


“corre uma lenda com o filósofo Tales de Mileto, o qual usou um esquema financeiro que lhe acabou sendo imputado por sua capacidade como filósofo, mas que é de aplicação universal. A história é a seguinte: as pessoas diziam a Tales que a filosofia era inútil, pois o tornara pobre. Mas ele, deduzindo, a partir do conhecimento que tinha sobre as estrelas, que haveria uma boa safra de azeitonas, juntou, durante o inverno, um pequeno capital, e alugou a baixo preço todas as prensas de olivas de Mileto e de Quio, pois ninguém estava interessado nelas. Quando chegou a época da colheita e todas as prensas se fizeram necessárias, ele de imediato as alugou por quanto quis”.


A prática dos monopólios também existia em Roma, onde o monopólio do sal assegurava ao governo grande parte de suas rendas, o que foi estendido no final do Império a toda a distribuição de alimentos. Mas esta política de monopólios veio a ser regulada pelo Edito de Zenão[2], denotando, já na Antiguidade romana, a preocupação de se impedir a apropriação de mercadorias ou abuso de preços, a fim de assegurar que os preços praticados fossem de mercado e de concorrência. Neste mesmo sentido, também, posicionou-se o Código de Justiniano, que proibiu determinadas práticas de monopólio.


No entanto, não é possível concluir que se possa atribuir aos antigos idéias próprias ao liberalismo econômico, pois, naquela época, os princípios inspiradores da economia buscavam, tão somente, resultados imediatos no sentido de coibir determinados comportamentos nocivos à população. (FORGIONI, 2008, p. 38)


3. A concorrência na Idade Média e as corporações de ofício.


Na passagem da Idade Antiga para a Idade Média, os institutos relativos à concorrência evoluíram; passam a apresentar maiores semelhanças com seu estágio atual, principalmente, com o aparecimento das chamadas corporações de ofício.


Nada obstante o legado deixado pelos teóricos gregos e romanos, foi a Idade Média o momento histórico determinante no desenvolvimento na história da concorrência. É neste período que nascem muitas regras de concorrência positivando princípios que inspiram o legislador até os dias atuais. As corporações de ofício surgem num contexto de florescimento do comércio e artesanato nas cidades e eram reguladas, basicamente, por dois tipos de normas, os estatutos das corporações, ordenamentos jurídicos “privados” completos, que disciplinavam as atividades dos comerciantes ou artesãos, e o sistema normativo da Comuna Medieval, que procurava regular a atividade das corporações; fazia-o, na maioria das vezes, pelo controle dos estatutos e imposição de condutas obrigatórias para os seus membros, que, ao que tudo indica, eram diretrizes postas em favor do consumidor.[3]    


Nos estatutos das corporações, estavam previstas normas que estabeleciam o monopólio por parte da corporação; normas que fixavam regras de conduta para os membros da corporação e que acabavam por neutralizar qualquer concorrência que se pudesse estabelecer, seja entre os agentes econômicos, seja potencial; normas que estabeleciam a jurisdição e o poder de fiscalização econômica da corporação sobre seus membros.[4] (FORGIONI, 2008, p. 46)


Na época, houve, no entanto, reações contra os cartéis e monopólios estabelecidos pelas corporações, com base, principalmente, a partir dos comentários ao Édito de Zenão. Desenvolveu-se, a partir de então, a distinção entre monopólios lícitos e ilícitos, sendo aqueles os outorgados pelo soberano tendo em vista o bem comum.


4. O mercantilismo


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Na Idade Moderna, com a crise do feudalismo e a formação das monarquias nacionais, passa a haver progressiva concentração do poder político nas mãos do Rei, que funda o Estado nacional e constrói uma espécie de mercado nacional, de forma a facilitar o comércio.


A criação dos mercados nacionais traz grande benefício à classe burguesa, eis que, em função da unificação de todo o sistema, as mercadorias poderiam circular com maior facilidade e, por conseguinte, o comércio se desenvolveria muito mais. Além disto, com a criação dos exércitos por parte do Rei, havia paz e segurança para que os burgueses realizassem suas transações comerciais com mais tranqüilidade.


Juntamente com o regime absolutista, teve início o Mercantilismo, que se caracterizava por uma política econômica de constante intervenção governamental na economia. As políticas mercantilistas, aplicadas aos estágios iniciais do capitalismo, ocasionaram ampla intervenção governamental nos processos de mercado, por meio múltiplas restrições e regulamentos, que resultaram em obstáculo ao desenvolvimento de suas atividades e à obtenção de lucros. Dentre as medidas adotadas estava a instituição dos monopólios. Os monopólios legais, fossem eles exercidos pelo Estado, fossem pelos particulares, foram largamente utilizados, sobretudo no comércio colonial.    


Na primeira metade do século XVI, a política mercantilista das grandes metrópoles era embasada em um sistema de exclusividade no relacionamento com as colônias, apto a proporcionar o aumento do estoque metálico das nações européias. Impunha-se, assim, o monopólio da compra e venda dos produtos das colônias, bem como o monopólio do transporte. Recorreu-se, ainda, ao sistema das companhias privilegiadas que detinham a concessão do comércio com as colônias. Para a eficiência do sistema era necessário que a colônia não oferecesse qualquer tipo de concorrência à metrópole. O poder de conceder monopólios com exclusividade de exploração de determinado setor da economia constituía poderoso instrumento nas mãos do soberano europeu. Iniciou-se, então, forte movimento de contestação da legalidade da concessão real desses monopólios.


Consoante Forgioni (2008, p. 52), o chamado “caso dos monopólios”, de 1603, foi o primeiro pronunciamento judicial sobres os princípios gerais da common law acerca dos monopólios (e também sobre o poder real de concedê-los).


Convém ressaltar, no entanto, que não havia, à época, a concepção de livre iniciativa ou liberdade de comércio como forma de se atingir os ideais de liberdade econômica ou eficiência. Porém, a fim de justificar a posição que tomavam, os julgadores apontavam alguns dos efeitos danosos do monopólio para a economia e, conseqüentemente, para o bem comum. Após este primeiro caso, outros surgiram e geraram grande repercussão até que, em 1624, o Parlamento Inglês aprovou o Statute of Monopolies, que impedia a concessão de monopólios por parte do Rei e limitava, por conseguinte, o poder soberano do Rei.


Ressalte-se, no entanto, que a “normas reguladoras da concorrência não a protegiam como um bem em si mesmo” e eram, menos ainda, correlatas a um tipo de “estrutura de produção tida como ótima” (FORGIONI, 2008, p. 55).


5. O liberalismo econômico e os institutos da livre iniciativa e livre concorrência.


O liberalismo foi o substrato ideológico das Revoluções Burguesas que objetivavam acabar com o Antigo Regime das monarquias absolutistas, carregando como elemento mais representativo a defesa da mais ampla liberdade individual nos planos político e econômico. No campo econômico o liberalismo determinava a livre iniciativa e a concorrência como princípios básicos capazes de harmonizar os interesses individuais e coletivos e gerar o progresso social; a não-intervenção econômica do Estado, que deve apenas garantir a livre-concorrência entre as empresas e o direito à propriedade privada, agindo apenas quando esta for ameaçada por convulsões sociais. Os teóricos do liberalismo econômico consideravam que a economia, tal como a natureza física, é regida por leis universais e imutáveis, cabendo ao indivíduo apenas descobri-las para melhor atuar segundo os mecanismos dessa ordem natural. Só assim poderia o homo oeconomicus, livre do Estado e da pressão de grupos sociais, realizar sua tendência natural de alcançar o máximo de lucro com o mínimo de esforço.


O liberalismo econômico teve em Adam Smith seu principal representante, a partir da publicação da obra “Riqueza das Nações”. Suas idéias de ampla liberdade de iniciativa abriram espaço para que a concorrência passasse a ser tratada como elemento essencial da luta contra os monopólios.


Assim, no ano de 1791 foram editados dois instrumentos normativos de suma importância para a concorrência. Tais instrumentos são: a) Decreto de Allarde, que preconizava a liberdade de comércio e indústria, independentemente de ligação com corporação de ofício; b) Lei Chapelier que acabava com as corporações de ofício, garantindo, com isso, ampla liberdade de comércio.


Grau (2005, p. 203) ressalta que,


“o princípio da liberdade de iniciativa econômica inscreve-se plenamente no decreto d’Allarde, de 2-17 de março de 1791, cujo art. 7º determinava que, a partir de 1º de abril daquele ano, seria livre a qualquer pessoa a realização de qualquer negócio ou exercício de qualquer profissão, arte ou ofício que lhe aprouvesse, sendo contundo ela obrigada a se munir previamente de uma ‘patente’ (imposto direto), a pagar as taxas exigíveis e a se sujeitar aos regulamentos de polícia aplicáveis. Meses após, na chamada Lei Chapelier – decreto de 14-17 de junho de 1791 – que proíbe todas as espécies de corporações, o princípio é reiterado”.


O coroamento da regulação da concorrência deu-se com a promulgação dos seguintes documentos: o Sherman Act (1890), que protegia os negócios e o comércio contra restrições ilegais e monopólios e do Clayton Act (1914), cujo principal papel foi o de aperfeiçoar a Lei Sherman, tipificando condutas potencialmente anticompetitivas, em resposta às evidentes distorções do sistema capitalista com o advento da Revolução Industrial.


6. Concepções filosóficas que influenciaram as idéias de Adam Smith.


Muito embora Adam Smith seja conhecido como o pai do liberalismo econômico e, por esta razão, estudado de forma mais profunda no campo da Economia Política, não se podem negligenciar as influências filosóficas que moldaram todo o seu pensamento.  A obra econômica de Adam Smith “Riqueza das Nações” foi profundamente impregnada pelas concepções filosóficas correntes na Inglaterra do período das luzes e pelo cenário econômico da época em que foi concebida.


Neste sentido, a influência de filósofos tais como Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu e David Hume foram patentes. Breve panorama sobre tais influências foi feito por Ângela Ganem em artigo intitulado “Adam Smith e a explicação do mercado como ordem social: uma abordagem histórico-filosófica”. Ela ressalta que Adam Smith faz um reenquadramento do pensamento de Thomas Hobbes, considerado por muitos como o ponto de partida teórico-antropológico para a compreensão das bases da sociedade liberal em razão de seu estudo acerca da natureza do homem na obra “O Leviatã”. Ela afirma que Adam Smith faz correções no desejo básico do homem, transmudando-o do desejo de glória fratricida de Thomas Hobbes para o desejo do homem de melhorar sua própria condição, através do desejo de ganho.


Para ela, em John Locke, na obra “Dois tratados sobre o governo”, na qual o autor desenvolve a doutrina da propriedade, Smith visualiza o ponto de partida jurídico-institucional, pré-condição pelo direito para que pudesse pensar a possibilidade de emergência da ordem na sociedade liberal. (GANEM, 2000, p. 6-8)


Assevera Ganem (2000, p. 7-8) que,


“Locke parte do conceito de um estado de natureza anterior à sociedade. Assim, seu estado de natureza pressupõe ‘que todo homem é depositário do resto da humanidade e deve fazer respeitar as leis da natureza’. Nestas leis, ele inclui a propriedade e a herança (seu corolário), como partes dos direitos de natureza, somando-as ao direito à vida, à liberdade e à saúde. No estado de natureza, sendo o homem ‘o senhor de sua própria pessoa e de suas posses’, o exercício do direito particular deveria conduzir naturalmente à conservação e à felicidade de todos, definida esta última como a possibilidade de salvaguardar a propriedade, condição obtida apenas na sociedade. A propriedade, se salvaguardada e protegida pelo direito, é condição de viabilidade da sociedade e também, a um só tempo, seu fim (thelos) e felicidade. Assentando a fonte da propriedade (que se traduz numa acumulação de bens) no trabalho, ele diferencia os homens nas suas qualidades laboriosas, o que definiria uma distribuição desigual dos bens e do seu bem maior, a terra. Locke lança as bases do direito da sociedade capitalista e liberal, estendendo e completando o Estado protetor dos direitos à vida de Hobbes. Na sua concepção, os homens entram em sociedade para proteger os bens que adquiriram no estado de natureza, razão pela qual seu estado de natureza não é nem de guerra, como o hobbesiano, nem idílico, como o de Rousseau, mas sim instável, porque se apóia no ponto sensível de uma sociedade hierarquizada e dividida. Adam Smith toma para si a pré-condição da garantia dos direitos de propriedade definidos por Locke como elemento indispensável para pensar sua solução harmoniosa, mas não descarta a tensão e o conflito latentes na sociedade, produzidos pela hierarquização dos homens”.


Já para Montesquieu, autor de o “Espírito das leis”, o comércio figura como fator de integração social entre nações, elemento de harmonia como veículo civilizatório polindo costumes das nações bárbaras. Ganem (2000, p. 9) assevera que enquanto Montesquieu influencia indiretamente Adam Smith na idéia de ordem social mediada pela mão invisível, David Hume o influencia na busca do fundamento do homem, a partir da publicação da obra “O tratado da natureza humana”. Por meio desta obra, David Hume oferece solução para algumas questões pendentes no campo da fundamentação do homem, para a explicação da ordem social, retirando o homem do estado de natureza e concebendo-o nos marcos da sociedade civil.


Continua Ganem (2000, p. 10-11) em sua análise:


“Entre outros pontos importantes de sua obra, podemos afirmar que Hume: (i) substitui definitivamente a razão pela paixão na compreensão do comportamento humano: ‘a razão’, diz o autor, ‘é e deve ser escrava das paixões’; (ii) elabora um novo tratamento ao dualismo da ética anglo-saxônia e ao princípio das paixões compensadoras, substituindo o altruísmo pela simpatia, elemento este que se torna central na sua obra: ‘Nenhuma qualidade é mais interessante na natureza humana que a nossa propensão em simpatizar com os outros e se comunicar com os seus sentimentos’; (iii) funda a sociabilidade no desejo de ganho comum a todos os homens. ‘A avareza ou o amor ao ganho é uma paixão universal que age em todos os homens (…)’ Esse desejo de ganho não é apenas um aspecto da natureza, mas uma exigência lógica necessária, a coerência de um mundo no qual a sociabilidade procede dos indivíduos. O desejo de melhorar de condição, expresso anteriormente em desejo de poder, passa para o desejo de ganho ou de melhorar sua própria condição; (iv) articula, como Locke, o desejo do homem ao trabalho, sendo este ‘a única maneira do homem obter coisas’. O homem, além de um ser do desejo, é também um ser de necessidade, e a sociedade aparece para Hume com um meio útil de obter certos fins, realizando desejos e resolvendo necessidades; (v) explora uma questão importante da filosofia moral, que é o sentimento e o julgamento de aprovação, estabelecendo a necessidade de uma análise comportamental que leve em conta as relações intersubjetivas. Sua idéia de que ‘os espíritos dos homens são espelhos uns para os outros’ enriquecerá a noção de sujeito smithiano exigindo tratamento mais sofisticado do que a míope identificação desse agente ao homem econômico racional, erro que muitos autores de História do Pensamento Econômico cometeram, influenciados pela apropriação indevida de Adam Smith feita pelos neoclássicos”.


Assim, Ganem (2000, p. 11) conlui que, para Smith, tendo como pré-condicão o direito liberal que garante o direito à vida, à liberdade e à propriedade, apropriado de Hobbes e Locke, a ordem social estaria assentada no seu fundamento último, qual seja, o indivíduo e suas paixões mobilizadoras, as quais não estariam mais associadas ao desejo de poder e glória como pensavam Hobbes e Montesquieu, mas transmudadas na paixão de ganhar dinheiro, de acumular infinitamente, de comprar toda sorte de mercadorias, e sedimentaria o interesse privado da busca constante de melhorar sua própria condicão, concepcão oriunda de Hume.  Esta última, calma, estável e universal estaria livre das idéias de vício e de pecado. No segundo plano, existiria um operador, a “mão invisível”, que, substituindo o legislador, permitiria que a busca desses interesses não resultasse na guerra  de todos contra todos, como queria Hobbes, mas na paz, expressão do interessse coletivo realizado. Segue dizendo que o mercado, como fator de integração social, ao atingir todos os planos, superando o comércio entre nações (Montesquieu), traduzir-se-ia no próprio mecanismo de organização da sociedade liberal. A mão invisível, em substituicão ao legislador, tornar-se-ia, portanto, o operador último dessa nova ordem social que adquiriria autonomia explicativa nos fundamentos do indivíduo e descartaria, para a explicação de sua emergência, o contrato social.


7. As concepções de Adam Smith atinentes à liberdade econômica e livre concorrência na obra “A Riqueza das Nações”


O pensamento de Adam Smith estrutura-se, basicamente em torno da preocupação com o processo de crescimento econômico, ou seja, as causas do aumento do poder produtivo do trabalho e sua distribuição por diferentes classes da sociedade. O que de mais importante ajuda a explicar esse crescimento econômico é a divisão de trabalho, sendo que a pré-condição da divisão do trabalho é a acumulação de capital.


Para tanto, como típico representante do liberalismo econômico, ele defendia a mais ampla liberdade individual no campo da economia, o direito inalienável à propriedade, a livre iniciativa e a concorrência como princípios básicos capazes de harmonizar os interesses individuais e coletivos e gerar o progresso social.


Smith desenvolve uma concepção acerca da “liberdade natural”, cuja principal característica é a liberdade individual de cada um de competir com outro, com a mínima intervenção do Estado.


Para Smith (1996, v. II, p. 169),


“[…] uma vez eliminados inteiramente todos os sistemas, sejam eles preferenciais ou de restrições, impõe-se por si mesmo o sistema óbvio e simples da liberdade natural. Deixa-se a cada qual, enquanto não violar as leis da justiça, perfeita liberdade de ir em busca de seu próprio interesse, a seu próprio modo, e faça com que tanto seu trabalho como seu capital concorram com os de qualquer outra pessoa ou categoria de pessoas”.


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Assim, o Estado não poderia intervir na Economia; ele deveria, apenas, garantir a livre concorrência entre os agentes econômicos e o direito à propriedade privada, quando esta fosse ameaçada por convulsões sociais. Assim, ao condenar toda e qualquer intervenção do Estado na vida econômica, o faz porque, na sua perspectiva, a vida econômica e a ordem social são consideradas partes integrantes de uma ordem natural, regulada por leis que exprimem princípios eternos e universais da natureza humana. A vida econômica, assim entendida, figura como fundamento da sociedade civil, o principio da própria existência do Estado, cujas funções devem se restringir ao mínimo compatível com a sua capacidade para garantir, a cada um e a todos, em condições de plena liberdade, o direito de lutar pelos seus interesses como melhor entender.


Assim, a principal razão para a qual o governo necessitaria agir seria apenas no sentido de garantir um sistema de justiça.


“Segundo o sistema da liberdade natural, ao soberano cabem apenas três deveres; três deveres, por certo, de grande relevância, mas simples e inteligíveis ao entendimento comum: primeiro, o dever de proteger a sociedade contra a violência e a invasão de outros países independentes; segundo, o dever de proteger, na medida do possível, cada membro da sociedade contra a injustiça e a opressão de qualquer outro membro da mesma, ou seja, o dever de implantar uma administração judicial exata; e, terceiro, o dever de criar e manter certas obras e instituições públicas que jamais algum indivíduo ou um pequeno contingente de indivíduos poderão ter interesse em criar e manter, já que o lucro jamais poderia compensar o gasto de um indivíduo ou de um pequeno contingente de indivíduos, embora muitas vezes ele possa até compensar em maior grau o gasto de uma grande sociedade.” (SMITH, 1996, v.. II, p. 170)


Assim, segundo Smith, todo o homem, desde que não viole as leis da justiça, tem direito de lutar pelos seus interesses como melhor entender e entrar em concorrência, com a sua indústria e capital, com os de qualquer outro homem, bem como ter a liberdade de escolher sua atividade profissional, tal como se percebe logo no início do volume II de sua obra (1996, v. II, p. 32 e 35):


A liberdade ilimitada e irrestrita de comercializar cereais não só constitui a única medida eficazmente preventiva das agruras da fome, como também representa o melhor paliativo para os inconvenientes de uma carestia; com efeito, os inconvenientes de uma real escassez não podem ser remediados; para eles só existem medidas paliativas”.


“A lei que proibiu ao manufator exercer a profissão de lojista procurou obrigar essa divisão no emprego do capital a efetuar-se mais rapidamente do que isso poderia ter ocorrido sem ela. A lei que obrigou o produtor agrícola a exercer a profissão de comerciante de trigo procurou impedir que essa divisão no emprego do capital se operasse com muita rapidez. Ambas as leis constituíam violações manifestas da liberdade natural e, portanto, eram injustas; e ambas eram, também, tão impolíticas quanto injustas”.


Para Smith, cada indivíduo, ao tentar satisfazer o seu próprio interesse, promove o interesse da sociedade de um modo mais eficaz do que quando realmente o pretende fazer. Apesar de cada indivíduo ter na mente o seu próprio interesse e, não, o interesse da sociedade, o juízo da sua própria vantagem leva-o, naturalmente, ao melhor para sociedade. O egoísmo surge aqui, como elemento positivo, desde que a busca de cada um não impeça a outro de perseguir igualmente o seu interesse. Assim, na esfera econômica, a utilidade dos particulares concilia-se com a utilidade da sociedade na medida em que cada um, desde que não viole as leis da justiça, persiga o seu próprio objetivo de obter o máximo lucro e o máximo de segurança em concorrência com a sua indústria e capital, com os de qualquer outro homem. Esta concepção pode ser vista em ambos os volumes da obra


Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país e não de outros países ele tem em vista apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas a seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções. Aliás, nem sempre é pior para a sociedade que esse objetivo não faça parte das intenções do indivíduo. Ao perseguir seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quando tenciona realmente promovê-lo. Nunca ouvi dizer que tenham realizado grandes coisas para o país aqueles que simulam exercer o comércio visando ao bem público”. (SMITH, 1996, v. I, p.438)


“O esforço natural de cada indivíduo para melhorar sua própria condição, quando se permite que ele atue com liberdade e segurança, constitui um princípio tão poderoso que, por si só, e sem qualquer outra ajuda, não somente é capaz de levar a sociedade à riqueza e à prosperidade, como também de superar uma centena de obstáculos impertinentes com os quais a insensatez das leis humanas com excessiva freqüência obstrui seu exercício, embora não se possa negar que o efeito desses obstáculos seja sempre interferir, em grau maior ou menor, na sua liberdade ou diminuir sua segurança.” (SMITH, 1996, v. II, p. 44)


No que se refere à distribuição, embora recorra a determinadas leis naturais segundo as quais o produto se distribui entre diferentes classes de cidadão, admite a existência de interesses conflitantes e de desigualdades na sociedade.


Adam Smith contempla, assim, os diversos aspectos atinentes às relações econômicas travadas no seio de uma sociedade, pois reflete, de um lado, sobre a condição dos economicamente desprotegidos a partir do reconhecimento explícito das contradições de classe, e, de outro, enfatiza os limites impostos à liberdade econômica por princípios naturais de justiça apontando o rol de serviços úteis, mas não atraentes para a iniciativa privada, que caberia ao Estado prover. No entanto, como bem lembra Winston Fritsch (Apud SMITH, v. I – Introdução -, p. 15-16), há que se notar que


“ao contrário do que sugerem tanto a lógica obscura da crítica radical vulgar quanto a exegese ideológica liberal-conservadora contemporânea, a defesa qualificada que Smith faz ao laissez-faire não o classifica nem como apóstolo do interesse burguês e pregador da harmonia de interesses entre as classes sociais […], nem como defensor empedernido da iniciativa privada e inimigo à outrance da interferência do Estado […]”.


Não se pode olvidar, portanto, que a doutrina da liberdade natural de Adam Smith dirige-se contra as interferências da legislação e contra as práticas exclusivistas características do mercantilismo que, sob sua ótica restringiriam a operação benéfica da lei natural na esfera das relações econômicas.


8. Conclusão


Muito embora tenha havido, desde a Antiguidade, uma preocupação com a dinâmica das relações econômicas travadas no seio da sociedade, há de se notar que os princípios inspiradores da chamada “economia de mercado” vieram a ser cunhados apenas com o advento do liberalismo. Deve-se a Adam Smith, precursor do liberalismo econômico, a idéia de livre iniciativa e a liberdade de concorrência, princípios distintos que, no entanto, se complementam num sistema capitalista.


Resgatando idéias já concebidas por outros filósofos (Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu e David Hume) acerca da natureza humana e da dinâmica social, e as modificando em certa medida, é que constrói sua doutrina econômica. Na visão de Smith, o homem tem um desejo inato de melhorar sua própria condição, através do desejo de ganho. Visualiza, portanto, a propriedade como pré-condição para se pensar a possibilidade de emergência da ordem na sociedade liberal, que tem a capacidade de se auto-regular por uma “mão invisível”. Smith desenvolve a idéia de “liberdade natural”, cuja principal característica é a liberdade individual de cada um de competir com outro, com a mínima intervenção do Estado. Ao Estado seria lícito intervir na Economia apenas para garantir a livre concorrência entre os agentes econômicos e o direito à propriedade privada, quando esta fosse ameaçada por distúrbios sociais, pois para ele, a vida econômica e a ordem social são consideradas partes integrantes de uma ordem natural, regida por leis que exprimem princípios eternos e universais da natureza humana. 


Uma leitura superficial da obra de Adam Smith permite concluir, portanto, que pela ênfase dada aos limites impostos à liberdade econômica por princípios naturais de justiça, sua doutrina liberal, calcada nos princípios da livre iniciativa e livre concorrência, contempla de forma direta o pleno funcionamento da lei da natureza na esfera das relações econômicas.


  


Referências bibliográficas

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SMITH, Adam. A Riqueza Das Nações – Investigação Sobre Sua Natureza e Suas Causas. v. I e II. São Paulo: Abril Cultural, 1996 (Coleção Os Economistas).

 

Notas:

[1] A historiografia aponta que por volta de 2100 a.C. o Código de Hamurabi já fazia referências a práticas monopolísticas vez que estabelecia normas a serem observadas entre comerciantes e comissionários.

[2]  Em 483 d. C., Zenão proíbe todos os monopólios, públicos ou privados, combinações e acordos de preços.     

[3] A exemplo disto, verifica-se o mecanismos das feiras, que era utilizado para que se evitasse o abuso dos preços por parte dos comerciantes. Exigia-se que os agricultores levassem suas mercadorias a um determinado lugar (praça do mercado), em horas preestabelecidas, viabilizando a concorrência. Impunha-se, ainda, a obrigação dos vendedores de liquidarem sua mercadoria antes do final da feira. Por outro lado, proibia-se a aquisição de mercadorias acima da necessidade (acaparramento), bem como a compra para revenda. (FORGIONI, 2008, p. 45).  

[4] As regras estabelecidas pelo ordenamento jurídico “privado” estabeleciam que: a) ninguém deveria intrometer-se em negocio iniciado por outro; b) não se poderiam abrir lojas e oficinas concorrentes senão a certa distância daquelas existentes; c) não era lícito vender coisas estranhas àquelas próprias da categoria artesanal ou profissional a que pertencia. (FORGIONI, 2008, p. 46).


Informações Sobre o Autor

Roberta Alessandra Pantoni

Professora do curso de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS – Unidade Universitária de Paranaíba


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