O Artigo 226, §3º da Constituição Federal e as uniões homoafetivas

Resumo: Análise sobre o artigo 226, §3º, da Constituição Federal do Brasil, que define os tipos de família legalmente reconhecidos, e sua aplicação para o reconhecimento das uniões homoafetivas como instituto do Direito de Família.


Palavras chave: união; família; homoafetividade; afeto; homossexual


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Abstract: Analysis of Article 226, § 3 from Brazilian Federal Constitution, which defines the kinds of legally recognized family, and its application for the recognition of homosexual relationships on Family Law.


Keywords: Family; afect; homosexual; common-law; marriage


Conforme o entendimento de parcela da doutrina, comoas Érika Harumi Fugie e Maria Berenice Dias, a omissão constitucional, em seu artigo 226, §3º, em relação às uniões entre pessoas do mesmo sexo afronta aos princípios da liberdade e da igualdade, bem como ao direito à uma existência digna.


Em razão das citadas normas serem todas de caráter constitucional, criadas pelo Poder Constituinte Originário sob as vestes da Assembléia Nacional Constituinte em um mesmo documento e de modo simultâneo, não é possível defender a inconstitucionalidade do artigo 226, §3º da Magna Carta, de modo a expurgá-lo do texto constitucional, em razão da aparente contradição aos princípios expostos.


A inconstitucionalidade só se opera quando uma norma de caráter legal ou um ato normativo, isto é, normas infraconstitucionais, demonstram-se contrárias à Constituição à época vigente, enquanto neste caso está-se diante de um conflito de normas de caráter constitucional.


“Por inconstitucionalidade a doutrina é fértil em conceituá-la de forma a abranger situações de contradição material ou formal entre um ato normativo e uma disposição da Constituição. Assim dispõe Marcelo Neves): “A definição de lei inconstitucional deve denotar não só a incompatibilidade resultante de contradição ou contrariedade entre conteúdos normativos (legal e constitucional), mas também a proveniente da desconformidade entre procedimento de produção normativa (legislativa) e conteúdo normativo (constitucional)”[1]


Ademais, o princípio da unidade constitucional, pelo qual se entende que a Lei Maior deve ser considerada enquanto um sistema, um conjunto coeso de normas, impede que seja declarada a insconstitucionalidade de uma norma presente na própria Constituição Federal.[2]


Observa-se, no entanto, que, a partir da lição de Maria Helena Diniz, estar-se defronte a uma hipótese de antinomia jurídica, como depreende-se do conceito elaborado por Tércio Sampaio Ferraz Jr. e transcrito pela autora. Assim, antinomia jurídica consiste na:


“(…) oposição entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado.”[3]


Em suma, antinomia é “a presença de duas normas conflitantes, sem que se possa saber qual delas deverá ser aplicada ao caso singular”.[4]


Para se verificar a incompatibilidade entre duas normas e, assim, estar diante de uma antinomia, deve-se preencher alguns requisitos. Primeiramente, ambas as normas devem ser jurídicas, isto é, não há conflito jurídico entre normas de ordenamentos diferentes, não podendo uma ser moral e outra jurídica. Ademais, devem as normas pertencer a um mesmo ordenamento jurídico, não existindo antinomia entre normas de direito comparado.[5]


Outro pressuposto para a configuração de uma antinomia jurídica é que as normas conflitantes emanem de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, destinadas a um mesmo sujeito. As normas devem se contradizer, possuindo em seus conteúdos a negação da outra ordem, ou seja, ao se cumprir uma norma, automaticamente descumpre-se a norma conflitante.[6] Por fim, para configurar-se o conflito, devem as normas deixar o sujeito a quem se dirigem em posição insustentável, de modo a faltar critérios para se livrar da antinomia, o que ocorre quando o conflito se dá entre normas cronológica, hierárquica e especialmente semelhantes.[7]


Ao se tratar das uniões homoafetivas, aplicando-se os pressupostos acima elencados, verifica-se um conflito entre o conceito de casamento e união estável trazido pelo artigo 226, §3º da Constituição Federal, que exige a diversidade de sexo para a configuração desses institutos e o conseqüente reconhecimento enquanto entidade familiar, e os direitos à igualdade, liberdade e a uma existência digna, conforme já explicitado anteriormente neste estudo.


O conflito se opera entre normas jurídicas do ordenamento jurídico brasileiro, todas prescritas pela Constituição Federal e, desse modo, destinada a todos os indivíduos que estejam no território brasileiro. Ademais, o art. 226, §3º, o art. 1º, inciso III, o art. 3º, incisos I e IV, e o art. 5º, “caput”, todos da Constituição Federal de 1988, são semelhantes tanto cronologicamente, hierarquicamente e especialmente, o que impede a solução do conflito mediante critérios objetivos.[8]


Por fim, verifica-se que, ao aplicar-se o artigo 226, §3º, que exige a diversidade de sexos para a configuração do casamento e da união estável descumpre-se os direitos à igualdade, à liberdade e a uma existência digna, restando patente a contradição entre essas normas constitucionais. Assim, uma vez presentes os requisitos, resta configurada a antinomia jurídica entre as citadas normas.


A partir da lição de Norberto Bobbio, ao buscar a resolução de um conflito entre normas constitucionais, não se deve suprimir ou optar por uma das normas conflitantes, mas buscar adaptar o direito[9], através do encontro de uma proporcionalidade entre as normas conflitantes, buscando valorá-las mediante uma interpretação hermenêutica da unidade constitucional[10] e [11].


Para a solução da antinomia, “a Constituição deve ser interpretada na sua globalidade, procurando o intérprete harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais”[12]. Dessa forma, as normas constitucionais devem ser interpretadas como partes integrantes de um sistema unitário, composto de normas e princípios[13].


Nesse sentido o magistério de André Ramos Tavares:


“(…) não se pode tomar uma norma como suficiente em si mesma. Não obstante todas as normas constitucionais sejam dotadas da mesma natureza e do mesmo grau hierárquico, algumas, em virtude de sua generalidade e abstratividade intensas, acabam por servir como vetores, princípios que guiam a compreensão e a aplicação das demais normas, devendo-se buscar sua compatibilização.”[14]


Na situação específica da união homoafetiva, a fim de solucionar o conflito entre o artigo 226, §3º da Constituição Federal e os direitos fundamentais violados e, em especial, o princípio da dignidade da pessoa humana, necessário se faz uma valoração dessas normas dentro da Carta Constitucional e, conseqüentemente, dentro do ordenamento pátrio. Na lição de Estrella, essa valoração consiste em verificar qual das normas apresenta mais relevância, maior importância para a ordem social.[15]


Para tanto, necessário verificar, no interior do sistema constitucional, quais normas foram prestigiadas pelo legislador, de modo a elegê-las princípios, que são mais do que normas, mas sim o direcionamento para todo o ordenamento jurídico pátrio.[16] Assim, ao interpretar-se o texto constitucional em sua unidade, deve-se dar maior ênfase às normas de caráter principiológico.[17]


Em relação ao conflito demonstrado neste estudo, Maria Berenice Dias defende que a regra maior da Constituição Federal e pedra fundamental de todo o ordenamento jurídico pátrio é a do respeito à dignidade humana[18]. Este princípio vem reconhecido logo no primeiro artigo da Constituição Federal de 1988, como fundamento da República Federativa do Brasil, tamanha a importância garantida pelo legislador ao direito a uma existência digna.


Na opinião de Maria Berenice Dias, dentre outros juristas, restringir às uniões constitucionalmente reconhecidas apenas às de caráter heteroafetivo é retirar dos indivíduos que optaram por outra orientação sexual o direito a uma existência digna, o direito de buscar a sua felicidade, de acordo com a sua intimidade.


A partir desse entendimento, a restrição trazida pela redação do artigo 226, §3º da Constituição Federal afronta os direitos fundamentais da igualdade e da liberdade, reconhecidos expressamente pelo legislador constitucional. Conforme entende Maria Berenice Dias, dar efeito jurídico às uniões heteroafetivas, em detrimento daquela formadas por indivíduos do mesmo gênero, é um claro desrespeito à igualdade.[19]


Esses princípios, em tese, afrontados pelo artigo 226, §3º da Constituição Federal, aplicam-se a todo o ordenamento jurídico brasileiro, são valores que não podem ser ignorados pelo legislador constitucional ou infraconstitucional, nem pelos aplicadores do direito, pois são estes princípios que, historicamente e constitucionalmente, garantem a existência de um Estado Democrático de Direito.


O legislador deu grande importância aos princípios e direitos fundamentais, que as normas que o artigo 226, §3º da Constituição Federal contraria foram inclusas nas cláusulas pétreas pelo legislador constitucional, não podendo ser suprimidas, sequer, por meio de Emenda Constitucional (artigo 60, §4º da Constituição Federal), o que não ocorre com as normas de Direito de Família trazidas pela Magna Carta.


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Assim, interpretando a Constituição Federal enquanto unidade de normas, mediante um juízo de valor, não moral, mas jurídico, dos preceitos e princípios trazidos pela Carta Constitucional Brasileira, quando se operar a contradição, o conflito entre o artigo 226, §3º da Constituição Federal e os princípios da igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana, devem prevalecer estes três últimos, valores maiores do Estado Democrático Brasileiro, objeto de especial proteção pelo legislador constitucional.


Todavia, em oposição aos estudos de Maria Berenice Dias[20], ainda que devam prevalecer esses princípios quando em conflito ao artigo 226, §3º da Constituição Federal, não seria oportuno operar a inconstitucionalidade deste, muito menos o seu banimento do ordenamento pátrio[21], haja vista tratar-se de norma constitucional, criada da mesma forma que aquelas de caráter principiológico. Não há que se falar em hierarquia entre normas constitucionais, de modo a se reconhecer a inconstitucionalidade de uma norma quando conflitante com outra, haja vista que a formalidade para sua criação é idêntica às demais normas presentes na Constituição Federal.[22]


Dessa forma, verificado o conflito entre o artigo 226, §3º da Constituição Federal e a dignidade humana, a igualdade e a liberdade, não pode a primeira norma ser expurgada do texto constitucional, mas sim, a partir de um processo valorativo das normas constitucionais, quando se estiver diante de uma união homoafetiva, deve ser ampliada a eficácia dos princípios fundamentais do Estado brasileiro, em detrimento da norma contida no Capítulo VII da Lei Maior.[23]


 

Notas:

[1] ESTRELLA, A. L. C. Normas constitucionais inconstitucionais. Jus Navigandi, Teresina, jan. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5021>. Acesso em 17 out. 2009.

[2] TAVARES, A. R. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

[3] FERRAZ JÚNIOR in DINIZ, M. H. Conflito de normas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. 107 p. 19.

[4] DINIZ, M. H. Conflito de normas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 19.

[5] DINIZ, 2001. p. 22-23.

[6] Ibid., p. 23.

[7] FERRAZ JÚNIOR, p. 13 apud DINIZ, 2001. p. 23.

[8] DINIZ, 2001. p. 34-41.

[9] BOBBIO, p. 256 apud Ibid., p. 23-24.

[10] FUGIE, E. H. A união homossexual e a Constituição Federal. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, out./dez. 2002. n. 15, p. 142.

[11] ESTRELLA, 2004.

[12] FUGIE, op. cit., p. 141.

[13] Ibid., p. 141.

[14] TAVARES, 2008. p. 85.

[15] ESTRELLA, 2004.

[16] TEMER, M. Elementos de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p.  22-23.

[17] Ibid., p. 23.

[18] DIAS, M. B. União homossexual: O preconceito e a justiça. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 79.

[19] DIAS, 2006. p. 80.

[20] DIAS, 2006. p. 82.

[21] BACHOF, 1994. p. 32 apud Ibid.

[22] TEMER, 1996. p. 22.

[23] FUGIE, 2002. p.142.


Informações Sobre o Autor

Matheus Antonio da Cunha

Advogado criminal de Piracicaba/SP; graduado em Direito pela UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba; associado ao escritório Pedroso Advogados Associados


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