Aquisição de debêntures pela própria companhia

EMENTA: Não obstante expressamente autorizada por lei a hipótese de aquisição de debêntures pela própria companhia emissora, não sendo vedado que esta, concomitantemente como debenturista única, aprove alterações substanciais nas condições da emissão, somente o registro próprio (e não mera “atualização”) dessa outra emissão na CVM garante a efetiva e transparente divulgação de informações ao público investidor, preservando os interesses e a credibilidade do mercado de valores mobiliários.

Deparamo-nos certa feita, em nossa atuação profissional, com determinada consulta acerca da legalidade do procedimento adotado por uma sociedade anônima, ao adquirir no mercado secundário a totalidade das debêntures de sua emissão, promovendo imediatamente após, em Assembléia Geral Extraordinária – AGE que contou com a aquiescência do agente fiduciário, substanciais alterações nas condições da escritura de emissão, principalmente no tocante ao prazo de vencimento dos títulos.

Como é de geral sabença, nenhuma emissão de valores mobiliários pode prescindir de prévio registro na Comissão de Valores Mobiliários – CVM para ser regularmente distribuída no mercado (Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, art. 19).

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Nelson Eizirik, em seu lapidar ensaio “Emissão Pública de Valores Mobiliários”[1], ao qual não temos o constrangimento de recorrer sempre que necessário, dada à sua precisão, esclarece a razão de ser do registro:

 “As normas que impõem a necessidade de registro da emissão pública na CVM apresentam nítida feição instrumental.  Com efeito, o registro consiste basicamente no meio de proceder-se à prestação de informações à CVM com vistas à sua divulgação ao público investidor.  Assim, o registro da emissão está inserido no contexto mais amplo da política de disclosure, que consiste exatamente na divulgação de informações amplas e completas a respeito da companhia e dos valores mobiliários por ela publicamente ofertados.

Um dos objetivos essenciais da regulação do mercado de capitais consiste em promover a eficiência na determinação do valor dos títulos negociados.  Assim, o ideal é que a cotação dos valores publicamente transacionados reflita apenas as informações disponíveis.  Presume-se que, uma vez bem-informados e inexistindo insider trading, os investidores estarão convenientemente protegidos, posto que os preços dos papéis refletirão apenas as informações sobre as companhias, não sendo portanto o resultado de eventuais práticas de manipulação.

No contexto do mercado primário, ou seja, do mercado de novas emissões, o disclosure é utilizado como instrumento para eliminar ou pelo menos reduzir as fraudes que poderiam ser cometidas, na medida em que permite aos investidores avaliar a qualidade e o preço dos títulos ofertados.

(…)

Além de tornar o mercado mais eficiente, quanto à alocação de recursos, o disclosure, conforme vem sendo constatado em países europeus, constitui um mecanismo importante de proteção aos investidores, pois permite-lhes, a partir da análise das informações, exercer um verdadeiro ‘controle de qualidade’ com relação às companhias abertas e os valores mobiliários de sua emissão, colocando-os, ademais, em posição de relativo equilíbrio frente aos acionistas controladores e administradores da companhia.

Assim, o registro da emissão pública não é um fim em si mesmo, mas um meio de proceder-se a ampla divulgação das informações ao público.  As normas que condicionam a realização de emissão pública ao prévio registro na CVM, ainda que cogentes, apresentam inequívoca feição instrumental.”  (grifos nossos)

Como expressamente dispõe a lei, é facultado à companhia adquirir debêntures de sua emissão, desde que por valor igual ou inferior ao nominal, devendo o fato constar do relatório da administração e das demonstrações financeiras (Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976, art. 55, § 2º).

Assim, nada obsta que, no caso aqui cogitado, a companhia emissora, valendo-se da faculdade legal, adquira as debêntures de sua emissão no mercado secundário, e opte por mantê-las em tesouraria, para posterior recolocação, segundo sua conveniência econômico-financeira e consoante as oportunidades de mercado que surgirem.

Por outro lado, a questão da modificação das condições da emissão, inclusive com a alteração do prazo de vencimento dos títulos, é relevante, em função do princípio de disclosure que a Lei nº 6.385, de 1976, visa a preservar, porém não existe qualquer vedação legal ao procedimento adotado, já que, inclusive, houve aquiescência expressa do agente fiduciário.

Sendo o agente fiduciário o representante da comunhão dos debenturistas (Lei nº 6.404, de 1976, art. 68), o fato de, circunstancialmente, os detentores das debêntures e a companhia emissora confundirem-se em uma única pessoa (porque a lei assim expressamente o permite) em nada altera o quadro.  Presumidamente, como defensor dos interesses dos debenturistas e estando obrigado a agir com a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios bens, o agente fiduciário agiu em conformidade com as suas atribuições legais.

Entendemos, porém, que ao adquirir todas as debêntures e deliberar pela modificação das condições da emissão, alterando prazo de vencimento e outras disposições, tudo com o objetivo de, posteriormente, recolocar os valores mobiliários no mercado secundário em condições que entende mais convenientes, a companhia está, na prática, incorrendo em uma nova emissão pública, gerando, por conseqüência, a exigência do novo registro, à luz do art. 19 da Lei n° 6.385, de 1976, com vistas ao atendimento do caráter instrumental da atuação da CVM, preconizado por Eizirik.

De fato, se o escopo do registro de emissão pública previsto em lei é permitir a ampla divulgação de informações ao público investidor, e se essas informações (particularmente aquelas que envolvem o pagamento das debêntures, que, por certo, constitui a principal obrigação em jogo) alteraram-se substancialmente por deliberação unilateral da própria companhia emissora, é evidente que o mercado não estará sendo efetivamente tutelado pela CVM sem o registro dessa “nova” emissão, cujas condições diferem substancialmente daquelas estipuladas inicialmente, quando da colocação no mercado primário.

Não nos parece que o disclosure que a lei busca garantir esteja sendo observado, nem a tutela estatal cujo exercício foi atribuído à CVM esteja sendo efetivamente colocada em prática, quando a companhia emissora simplesmente subscreve correspondência àquela autarquia, anexando documentos para “atualização” do registro inicialmente outorgado, particularmente porque, como ressaltado, as condições da emissão inicial sofreram substancial modificação.

Devem ser levados em consideração, ainda, os potenciais riscos que a eventual banalização dessa prática por parte das companhias emissoras de debêntures poderá vir a acarretar, eis que se pretende com isso permitir que, ao exclusivo alvedrio da companhia, as condições da emissão sejam unilateralmente modificadas (em especial as obrigações que envolvam pagamentos, prazos de vencimento, etc. que são as mais relevantes em qualquer assunção de dívida, e cuja estrita observância assegura a credibilidade do mercado de valores mobiliários).

Por tais motivos, não obstante estar expressamente autorizada por lei a hipótese de aquisição de debêntures pela companhia emissora, não sendo vedado que esta, na concomitante condição de debenturista única, acabe promovendo alterações substanciais nas cláusulas e condições da emissão, somente através de registro próprio (e não mera “atualização”) dessa outra emissão estarão sendo preservados os interesses do mercado e do público investidor, cabendo à CVM, por expressa designação legal, exercer essa tutela.

 

[1]  ASPECTOS MODERNOS DO DIREITO SOCIETÁRIO, Renovar, 1992, pág. 3.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Eduardo Silveira Clemente

 

Procurador Federal lotado na Comissão de Valores Mobiliários

 


 

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