Ainda sobre Humanismo e Direito: Humanismo e Anti-humanismo para Lévi-Strauss na leitura e interpretação de Tzvetan Todorov

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Resumo: O problema do humanismo se coordena nos mais diversos rumos. O contraponto “humanismo e anti-humanismo” não possibilita uma conclusão sem um detido percurso pelas intenções e compreensões do emissor destas expressões. A balança não se desequilibra apenas pelo sufixo. A atualização de um humanismo contemporâneo, de pleno interesse ao direito, depende, pois, desta investigação argumentativa de entendimentos. Neste artigo, aborda-se a faceta do problema identificada a partir da leitura de Tzvetan Todorov de algumas passagens de Lévi-Strauss, identificando-lhe um cerne crítico do humanismo, acompanhada de uma proposta anti-humanista que, contudo, está muito longe de significar uma abordagem teórica desvinculada da preocupação com o humano e, quanto menos, de um desapreço pela cultura e sua diversidade. O exemplo é válido para se perceber como, em termos de humanismo, há muito de surpresa, e como é imprescindível um alinhamento analítico de forma e conteúdo, conjuntamente a uma avaliação axiológica do teor disposto, bem como uma coordenação com a finalidade demonstrada ou depreensível, para que, então, se possa certificar dos sentidos do humanismo e do anti-humanismo.


Palavras-chave: humanismo; anti-humanismo; antropologia estrutural; universalismo; antropocentrismo.


Sumário: 1. Introdução. 2. Tzvetan Todorov e leituras de Levi-Strauss: crítica do humanismo. 3. Tzvetan Todorov e leituras de Levi-Strauss: efeitos do humanismo.  4. Considerações finais. Referências bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO


O termo “humanismo” consiste em uma expressão polissêmica que remete a um campo de discussão precipuamente filosófico. Esta primeira localização não define precisamente seu teor, apenas situa-lhe de modo a se poder desdobrar discussões que permitem identificar seus efeitos em contextos tais como o político e o jurídico.


O objetivo deste artigo é apreciar a abordagem de Tzvetan Todorov acerca da compreensão de Lévi-Strauss sobre o humanismo, em especial na forma européia moderna, verificando-se as críticas feitas naquele contexto.


O humanismo, no entendimento de Lévi-Strauss, consistiu em uma expressão européia de visão do mundo a partir de duas categorias centrais: o homem enquanto ser ocupante de um lugar excepcional na ordem das coisas naturais, e, ainda, uma possível unidade do gênero humano.


A partir destes dois pressupostos, os efeitos políticos teriam sido os mais nefastos, tais como as expressões de totalitarismos, fascismos e colonialismos. Ademais, um sistema de direitos humanos seria declinável a partir do pressuposto humanista, tendo sido prejudicado, em especial, no tocante ao apreço pela igualdade material, bem como em desatenção às relações homem e natureza, com déficit de apreço por esta, vetorizada em nome dos interesses egoísticos do homem e de suas sociedades.


O universalismo, na concepção de Lévi-Strauss, é redimensionado por Todorov em termos de um universalismo “de chegada” e outro “de processo”, sendo este último, ligado ao método de comunicação, um tipo de universalismo condicionante da comunicação entre culturas que em muito pode contribuir com o problema da universalização dos direitos humanos.


É este o contexto de ideias desenvolvidas no texto, partindo-se da crítica ao humanismo e proposta de anti-humanismo, assim como, depois, indo ao debate sobre efeitos do humanismo.


2. Tzvetan Todorov e leituras de Levi-Strauss: Crítica do Humanismo


Conforme Todorov (1993, p. 81), “o núcleo criticável da tradição ocidental poderia ser designado pelo termo ‘humanismo’”. Esta afirmação, sem contexto, coloca o humanismo em posição instável, eis que epíteto do centro de crítica de uma tradição cultural. No caso de Todorov, o mote serve para pontuar compreensões críticas de Lévi-Strauss acerca do mundo ocidental, tal como se constitui desde a Renascença.


Evidente que, em princípio, submeter uma categoria à crítica não confere ao campo de apreço necessariamente uma característica negativa, muito embora fique subjacente a ideia de “algo que merece reparo”. Tanto é assim que, como Todorov reconhece, Lévi-Strauss nem sempre se refere ao “humanismo” de modo pejorativo, ou seja, não toma a totalidade de sentidos do “humanismo” como objeto de reprovação.


A validade, assim, da discussão, se centra justamente na análise destes sentidos que o pensador aprova ou condena, como modo mesmo de se balizar os sentidos válidos ou inválidos no contexto do pensamento das ciências humanas e sociais, o que se aproveita em peso ao direito, imbricado que é do problema do homem, igualmente.


No sentido específico, “humanismo” se referiria ao conjunto de disciplinas embarcadas nas humanidades, com destaque ao estudo do latim e do grego como manifestações da cultura clássica. Já neste sentido, haver-se-ia de destacar um elemento aproveitável à antropologia: o estudo das humanidades seria uma remissão ao estudo de uma outra cultura, diferente daquela na qual o indivíduo se desenvolveu. Como sintetiza Todorov, “o ‘humanismo’ é então uma primeira forma de estudo das culturas diferentes da nossa, e a etnologia nada mais é que a expansão universal, o resultado lógico desse antigo humanismo” (1993, p. 81).


Este princípio, contudo, é posto em questionamento por Lévi-Strauss em sua Antropologia Estrutural, conforme leitura de Todorov. O que Lévi-Strauss demarca com clareza é que o movimento etnológico se perfaz em sentido diverso do movimento do humanismo em seu sentido de estudo das humanidades, pois em seu cerne traria as forças da “renovação” e da “expiação” da Renascença; o humanismo fora então ampliado na medida da humanidade, e não mais do mundo greco-romano.


Perceba-se, pois, que já aí se operou certa ampliação (de um mundo cultural estrito a um amplo), contudo, manteve-se o mesmo projeto de conhecimento. Todorov especifica esta questão apontando no pensamento de Lévi-Strauss uma extensão além do “humanismo miúdo” clássico, o que não representa uma isenção de críticas também a respeito desta expansão.


Todorov (1993, p. 82) identifica que a reprovação de Lévi-Strauss acerca do humanismo renascentista recai justamente sobre suas especificidades que querem se generalizar. Para o pensador, o humanismo na Renascença é uma culminação do humanismo cristão, o que redunda na redução da amostragem do “humano” aos padrões perceptivos da cultura européia de então. Como afirma Todorov, “os humanistas da Renascença ou do século XVIII acreditavam-se universalistas, quando, na realidade, seu horizonte detinha-se nos confins da Europa; mas podem-se ampliar esses limites sem mudar o projeto fundamental” (1993, p. 82).


Pois bem, a ideia de projeto que se apresenta criticável é a de não apenas uma falha horizontal quanto vertical, conforme nomina Todorov. A horizontal seria mais facilmente sanável, eis que é a que diz respeito a extensão e quantidade de culturas tomadas para se formar uma universalização do humano. Nisto, uma correção qualitativa seria suficiente. O aspecto mais problematizado pelos autores é o do aspecto vertical, que diz respeito justamente ao projeto, à razão conhecedora, ao pressuposto de acesso ao real: “o humanismo — e nisto seu nome não é usurpado — quis organizar o mundo em torno do homem: eis seu pecado, ou, mais simplesmente, seu erro”. (TODOROV, 1993, p. 82).


Aqui já se pode perguntar se seria propriamente um humanismo renascentista ou, apenas, uma expressão do antropocentrismo da época, em contraponto a um intenso teocentrismo. Não se olvide que um dos epítetos gregos do humanismo grego é justamente Protágoras, quando afirmou que “o homem é medida de todas as coisas”. Isto é expressão um humanismo ou um antropocentrismo? (parece-me um distinto antropocentrismo). Em quais medidas humanismo e antropocentrismo se confundem e se distinguem é uma discussão que rende delimitações a parte, tamanho os frutos perceptivos que delas podem advir.


Retornando ao debate de Todorov acerca das críticas de Lévi-Strauss ao humanismo, este ponto de problematização do humanismo em sua face mais antropocêntrica também fora objeto de questionamentos de Heidegger e das alas ecologistas (enquanto críticos da modernidade), quando questionam a cisão homem e natureza e a submissão dela às atividades e interesses humanos. Nesta esteira, o que Lévi-Strauss convida a discutir é o enfoque excessivo da sociedade ocidental no desenvolvimento técnico e do domínio sobre as forças da natureza.


Neste contexto de compreensão do humanismo, enquanto expressão de antropocentrismo centrado no desenvolvimento técnico que subjaz a natureza ao interesse humano, que Lévi-Strauss insere o seu entendimento “anti-humanista”. O que o pensador questiona, portanto, são os posicionamentos do humanismo decorrentes de parte da tradição judaico cristã, da Renascença e do cartesianismo que colocam o homem como senhor absoluto das coisas, força criadora, mestre do mundo.


Ressalta-se, novamente, que esta expressão do humanismo tal como identificada no contexto moderno não se coaduna com uma percepção atual do humanismo, soando muito mais como antropocentrismo do que como apreço pelo homem na atualidade.


Lévi-Strauss, identifica Todorov (1993, p. 83), atribui a Descartes o cerne desta revolução antropocêntrica na modernidade. A tradição contrária, por sua vez, de um “anti-humanismo”, poderia ser atribuída a Rousseau, recorrendo-se a uma ideia de universalidade da humanidade como fundamento do exercício da virtude, e não mais no homem, como o seria na tradição humanista. Todorov, contudo, avalia ser esta interpretação do Rousseau anti-humanista apenas uma parcela ínfima de seu pensamento, devendo-se, para assim ver, ignorar parte considerável da produção intelectual de Rousseau, em especial o “Emílio”, o “Contrato Social”, as “Confissões” e os “Diálogos” rousseaunianos.


Neste rumo de ideias, o que está em plano é “esse humanismo ocidental amesquinhado, amálgama infeliz do cristianismo (a unidade do gênero humano) e do cartesianismo (o homem no cume da natureza), que é culpado por todas as infelicidades que se abateram sobre o mundo há cento e cinqüenta anos” (TODOROV, 1993, p. 83).


Por mais paradoxal que pareça, o referido humanismo, na percepção de Lévi-Strauss, teria sido a fonte das maiores desumanidades, e daí a necessidade de declaradamente se ser um anti-humanista. Lévi-Strauss, na seleção de leituras feita por Todorov, atribui a este recorte do humanismo a fonte das tragédias históricas, desde o colonialismo até o fascismo, em todas as suas atrocidades. Não uma oposição ou contradição ao humanismo, mas uma extensão e decorrência esperada daquele padrão de pensamento.


O cerne do raciocínio do humanismo fonte do nefasto é destrinchado por Todorov na seguinte estrutura de raciocínio: primeiro estabelece-se uma fronteira clara e delimitada entre os seres humanos e as demais formas de vida; aí então o ser humano é soberano e apartado, e como é hierarquicamente colocado em patamar superior, nasce uma justificativa: a de subjugar e submeter aos seus interesses as demais formas de vida. Junte-se a esta premissa um novo movimento de raciocínio: a divisão interna, na própria espécie humana, de formas superiores e inferiores de vida humana. Concorre então a justificativa de que formas inferiores podem ser sacrificadas em nome das superiores.


Neste sentido específico, o fascismo e o colonialismo seriam os filhos lógicos do humanismo. Ademais, o totalitarismo comunista correria nas mesmas linhas, como todas as formas de ocidentalização acelerada. E todos produziriam efeitos muito similares em termos de destruição humana.


Este conjunto de ideais e contraposições permite visualizar o quão sensível às variações é o campo de discussão do humanismo. Ao compasso disso, evidencia a sua pertinência jurídica, na medida em que o ordenamento jurídico, igualmente, emite concepções de homem e sua vida e, ademais, interage sobre estes sistemas da vida concreta, produzindo efeitos conforme a adesão dos intérpretes aos princípios e a subseqüente vinculação de condutas tidas por legítimas se declinadas a partir de sucessivos sistemas de fundamentação de validade.


No cerne desta percepção Todorov faz uma relevantíssima interpretação: “ignorar a oposição entre totalitarismo e democracia, em nome dos efeitos comuns da industrialização ou da urbanização (como Heidegger também faz), é justificável em uma escala temporal geológica; mas não se a medida é uma vida humana” (TODOROV, 1993, p. 84). É nesse sentido que Todorov dá mais entalhes à percepção do humanismo em seus efeitos nefastos e, ainda, em seus possíveis efeitos positivos. Isto porque a forma estatal passa a ser a ambiência de vida das pessoas, de modo que estas suportam, por serem seres vocacionados à liberdade, diferente dos objetos inanimados.


Aqui, em certa medida, Todorov contraria a tese de Lévi-Strauss da do fascismo e colonialismo como decorrências lógicas do humanismo. Como afirma o autor, atribuir as atrocidades exclusivamente ao humanismo corresponde à negação de origens ideológicas envolvidas no pensamento fascista ou colonialista. Ou seja, é prescindir de considerar fundamentos utilizados em tais práticas e que transcendem o ponto de vista humanista de então, de modo que teorias se conjugaram a noção de supremacia do homem, dando-lhe encaminhamento distinto. Basta pensar nos fundamentos racistas, do racismo enquanto teoria, que corroboram esta distinção da mera crença do homem como centro de todas as coisas, de modo que, nesta interpretação, a decorrência de totalitarismo e colonialismo não seria tão diretamente atribuível ao humanismo.


Por isso, Todorov deixa claro em sua análise que, mais do que manejar rótulos, é preciso checar os seus conteúdos, de modo a lhes compatibilizar em termos mesmos de projeto e execução. Veja-se com detimento uma análise do autor que esclarece a ressalva que se faz.


“Enfim, atribuir a expansão colonial ou a ‘partilha da África’ ao programa humanista de exportação do Iluminismo é tomar por verdade o que não passava de propaganda: uma tentativa, a maior parte das vezes desajeitada, de reformar a fachada de um edifício construído com intenções muito diferentes. As razões da conquista colonial são políticas e econômicas, mais do que humanitárias; se fosse preciso atribuir-lhe um princípio geral único, seria o nacionalismo — que, como Rousseau tinha visto muito bem, é incompatível com o humanismo” (TODOROV, 1993, p. 84).


Pois bem, essencial tal consideração de Todorov. Perceba-se que considera um fenômeno complexo segundo variáveis complexas, buscando explicações que ultrapassem o mero embate de ideologias e, o principal, a conferência de um único motivo como conseqüência de um fato complexo. Sua análise deixa isto claro: mais do que uma obsessão humanista de dominação, a expansão colonial haveria de ser entendida: por razões políticas, ou seja, de deliberação por um corpo de condutas vinculadas a certos fins estatais; por razões econômicas, estas mais do que evidentes na catalogação histórica destes eventos; e a força pujante do nacionalismo enquanto força unidirecional de uma coletividade sobre quaisquer outras em que não veja uma associação egoística.  Com isso, ao invés de um “humanismo culpado” ter-se-ia então uma variante mínima de condições para a produção dos efeitos históricos observados. Contexto no qual, aliás, alguma forma de humanismo poderia obstar a ocorrência.


Retomando o debate sobre o “anti-humanismo”, Todorov estabelece que a sua relevância encontra-se justamente na medida em que é uma vertente crítica do humanismo e, ao compasso, um resgate de algum lugar do homem na ordem das coisas. Certamente, um lugar mais modesto do que o sonho renascentista e moderno. Com isso, o anti-humanismo de Lévi-Strauss representa um retorno ao naturalismo, de modo que o homem se veja em um cenário mais amplo de formas vivas e, ademais, se compatibilize com elas, não as subjugando desenfreadamente aos seus interesses. Nada mais compatível do que o atual pensamento ecológico em sua expressão biocêntrica.


O que está em jogo, pois, é o lugar do homem na relação homem e natureza. A decorrência lógica, depois do debate exposto por Todorov, é o de se perguntar, afinal, pela pertinência do humanismo. É aproveitável, necessário ou útil o termo? É com uma citação longa que podemos ver os argumentos decisivos neste sentido.


“Pode-se, no limite, manter o nome de ‘humanismo’, desde que o sentido seja mudado: é preciso aspirar, diz Lévi-Strauss, a um ‘humanismo sabiamente concebido que não comece por si mesmo, mas que dê ao homem um lugar razoável na natureza, e não se coloque como mestre e institua o saque’”. (Le regarde éloigné, p. 35). (TODOROV, 1993, p. 85).


A decorrência deste humanismo mudado, sábio, seria o de respeito maior por todas as formas de vida, e o ponto de partida seria outro: o homem, ao invés de ter por pressuposto o “ser moral”, teria o de “ser vivo”. Contudo, este diferencial aproximar-lhe-ia demasiado de qualquer outra forma de vida. Isto coloca diretamente em pauta os limites dos direitos das formas de vida, ao compasso de se poder ali enxergar um argumento que inverte a situação, facilitando, em verdade, as formas de dominação: tomar o ser humano por ser vivo representaria então mais um modo de se expandir a subjugação humana por meio de diferenciações sucessivas, hierarquizando formas umas a serviço das outras.


Sob o ponto de vista jurídico, interessante perceber como, no final das contas, está em julgamento o critério de definição do homem como pressuposto do feixe de direitos que podem ou não lhe ser atribuídos. O problema do homem fundamenta a emergência do problema jurídico. E assim entende Todorov:


“Mas é apenas durante esses poucos séculos, e pelo Ocidente, que a questão dos direitos do homem, no senso estrito, pôde ser levantada; e não é à toa: ela é solidária com a ideologia humanista. A nova ‘base’ para os direitos do homem, imaginada por Lévi-Strauss, consiste em negar sua pertinência, em diluí-la num direito geral dos seres vivos — mas que teria de singular o fato de ser instituído por uma ínfima parte deles, a saber, os que falam (não se espera que as formigas participem das deliberações que deverão conduzir ao estabelecimento de seus direitos)” (TODOROV, 1993, p. 85).


Assim, evidencia-se que o pensamento de Lévi-Strauss, ao refletir sobre o problema do humanismo, e na propositura de um anti-humanismo — que, aliás, em nada revela um desapreço pelo problema humano, muito pelo contrário, significa um elogia das infinitas manifestações culturais humanas — resultou, em últimos efeitos, na própria problemática de uma definição de carta de direitos humanos.


É interessante notar como, a partir de diferentes pontos de partida, podem-se declinar distintos sistemas de direito e nominação de titulares e de modos de exercício.


Pode-se a visualizar, ademais, que o debate atual sobre os problemas de ordem ambiental e da bioética renovam estas bases de entendimento do ser humano como ser vivo na base de fundamentação dos direitos.


3. Tzvetan Todorov e leituras de Levi-Strauss: Efeitos do Humanismo


Abordado o primeiro corpo de problemas, de definição do humanismo e anti-humanismo, Todorov passa a abordar as situações declináveis dos efeitos destas formas de humanismo criticáveis. É dizer: fala sobre os efeitos do humanismo, o que se declina a partir do apego aos seus pressupostos.


Assim, as conseqüências políticas mais evidentes seriam a das concepções modernas de liberdade e de igualdade. Isto porque a noção de liberdade e de pluralismo não poderiam se compatibilizar com a de universalidade, porque uma doutrina universalista converge necessariamente para um modelo de partido único. A igualdade, também, ver-se-ia instável pela questão da igualdade natural dos homens, que resultaria em uma igualdade diante da lei, do tipo formal, contudo, cega a questão das igualdades ou desigualdades materiais, ou, como chama o autor, naturais. Aliás, neste ponto vale a ressalva de que Lévi-Strauss, nas linhas de Todorov, reconhece que haja um certo critério de manutenção do funcionamento das coisas quando se estiver diante de “ínfimos privilégios” e “desigualdades talvez derrisórias”, em um claro critério pragmático que ainda hoje anima o menor apego às conjunturas individuais em nome de procedimentos de atenção à igualdade formal, mas que deturpam toda a adequação se pensados em um critério de contraposição à igualdade material.


Este problema é remetido, igualmente, ao campo das interrelações culturais. Lévi-Strauss, sob certos pressupostos, condenaria o cruzamento de culturas se encaradas pelo prisma humanista, e, pensando-se no que já se viu nos parágrafos anteriores, a cautela antidestruidora parece evidente. A “coalizão de culturas”, ou seja, uma comunicação demarcada de culturas, até seria vantajoso a ambas; contudo, em se acelerando tal comunicação, o resultado seria a universalização cultural, em um processo de perdas irreparáveis. Conforme explica Todorov:


“Ultrapassado um certo limite, a comunicação é, assim, nefasta, pois conduz à homogeneização, que, por sua vez, equivale a uma condenação à morte para a humanidade; e viu-se que toda universalização evoca em Lévi-Strauss a ideia de um regime de partido único. O sonho utópico de Auguste Comte é para Lévi-Strauss um pesadelo.” (TODOROV, 1993, p. 87).


O problema limite desta questão são as perdas e ganhos: é necessário se comunicar, enquanto cultura, para poder ganhar, contudo, cada contato representa uma perda. A solução seria, pois, comunicar-se, a despeito deste risco, porém, adverte Todorov, deve se ter em mente que o apreço pela diversidade de culturas não pode implicar em um concorrente desejo de familiaridade, pois o primeiro indício da perda de diversidade seria o desenvolvimento desta familiaridade. A conclusão é derradeira: “mais vale ficar em casa e ignorar os outros do que conhecê-los bem demais; mais vale empurrar os estrangeiros para fora de nossas fronteiras do que vê-los submergir-nos e privar-nos de nossa identidade cultural.” (TODOROV, 1993, p. 87). No contexto brasileiro, pode-se pensar que tal ameaça não é tão concreta, dada a identidade cultural já coordenar em suas bases uma série de coalizões.


A partir destes fundamentos de Lévi-Strauss, Todorov novamente submete o pensador às suas interrogações sobre verdade e coerência (“justeza moral”), principalmente tendo em mente o cenário europeu de seu período, com toda a problemática de xenofobia e demais resultados negativos em termos de proteção humana, pode-se dizer, dadas as violências advindas de tais processos.


Portanto, Todorov questiona o fatalismo cultural pela comunicação, o que, reconhece, não seria empiricamente comprovável, dada a distância entre os fatos e as teorias efetivamente exauridas. Todorov entende o problema da homogeneização não como um fim das diferenças, muito embora vá se reconhecer a padronização de certos procedimentos. Contudo, há de se ponderar se não é ínsito à existência humana e cultural o pontuamento por diferenças; “as diferenças se deslocam e se transformam; elas não desaparecem” (TODOROV, 1993, p. 88) é o que entende o autor.


Pondera ainda Todorov o critério da familiaridade, alegando que mudanças em um mesmo país, sob certas condições, podem ser muito mais violentas e sentidas do que mudanças mais remotas. Ou seja, processos de urbanização podem ser muito mais fortes do que o contato entre culturas estrangeiras, pois no contato estrangeiro muitas vezes o efeito é o contrário da dissolução cultural, valendo uma afirmação desejada das diferenças pela presença do contraste.


Ainda, o critério criticado de uma cultura universal resvala na própria inevitabilidade de um contato internacional que acordasse por procedimentos de menor comunicação, o que resultaria, em última instância, na instituição de um Estado universal que garantisse a separação das esferas de comunicação, de modo que o resultado seria justamente o inverso do pretendido: afirmar-se-ia, então, uma ordem universal fechada, tolhendo a liberdade de comunicação auto-ajustável entre as partes.


Ademais, Todorov se questiona se pode-se ver como resultado uma doutrina universalista interna ao conceito imputado de humanismo, que resulta na ideia de um partido único. Para o autor:


“Encontramos com Lévi-Strauss traços de dois tipos diferentes de humanismos. Um, que ele aceita sem hesitar, é o da identidade biopsicológica da espécie: é, de qualquer forma, um humanismo ‘de saída’ incontestável, mas que não comporta escolha alguma. ‘O que a hereditariedade determina no homem é a aptidão geral para adquirir uma cultura qualquer, mas qual será a sua vai depender dos acasos de seu nascimento e da sociedade em que receberá sua educação’ (Le regarde éloigné, p. 40). É o que Lévi-Strauss também chama — pelo menos em certos textos — de inconsciente: leis estruturais intemporais e universais; ou, ainda, a função simbólica ‘que, em todos os homens, se exerce segundo as mesmas leis’ — mas são puras formas sem conteúdos. ‘O inconsciente é sempre vazio, ou, mais exatamente, é tão estranho às imagens quanto o estômago aos alimentos que o atravessam’ (Anthropologie structurale, p. 224). De outro lado, encontra-se o mau universalismo, ou melhor, o falso, o que não quer reconhecer as diferenças, o que consiste em um projeto voluntarista — e, inevitavelmente, unificador.” (TODOROV, 1993, p. 89).


Assim, a duas dimensões do entendimento de Lévi-Strauss acerca do humanismo em sua expressão européia moderna encontram especificação por Todorov: tanto um certo espaço formal, em que o humanismo representa uma condição biopsicológica humana em que são processados os dados culturais, quanto em uma expressão externa e material da ordem do universalismo, bom ou mau.


No ponto específico dos universalismos — o bom: receptivo às diferenças; o mau: unificador — Todorov insere novos entendimentos. Haveria um universalismo “de chegada”, no qual um projeto de Estado universal como população homogênea seria implantado. Ainda, um universalismo “de percurso”, ou “de método”, que representaria o ponto de possibilidade de um diálogo com o outro, uma vez que a comunicação necessita de um quadro de referência em que os universos entrem em contato, tal como uma ponte. A expansão de categorias universais permitiria horizontes universais necessários para a comunicação inevitável em termos de preservação das identidades.


Assim, tal distinção de Todorov é deveras válida para se pensar questões do universalismo — em especial, no sensível ponto da universalização dos direitos humanos, e mesmo, dos direitos fundamentais em extensão de um país com extensão geográfica tal como o Brasil — de modo que a separação de um universalismo de chegada e universalismo de percurso são esclarecedores do potencial dos direitos para firmarem diálogos (e não para imporem padrões culturais).


Assim, Todorov entende que Lévi-Strauss toma por idênticos ambos os universalismos, o que seria, em certa medida, contrário às próprias percepções teoréticas de Lévi-Strauss em muito de sua produção. Todorov vale-se de uma metáfora para esclarecer sua distinção:


“A imagem dos trens cada um numa direção diferente, que os passageiros não podem modificar, descreve mal a condição humana: o homem não é uma ilha, diz o poeta, mas um fragmento do continente; as culturas não são trens lançados no caos por um maquinista louco; as interações, as próprias confluências, são possíveis, o ou mesmo inevitáveis.” (TODOROV, 1993, p. 89).


Evidente: não há de ser no desenho dos trilhos um determinismo fatal. A remissão ao poeta inglês John Donne, em sua memorável antropologia filosófico-poética, reforça o sentido de uma humanidade unida por laços de identidade que transcendem a mera prática da dominação.


O debate de Todorov prossegue, contudo, neste breve artigo se encerra por aqui o apreço a sua interpretação, na parte de maior gravitação ao humanismo. Muito ainda se desdobra a partir da relação do humanismo com a subjetividade (“o humanismo glorifica o homem e, no homem, o que o torna tal: sua subjetividade” (TODOROV, 1993, p. 90)), com a eliminação do sujeito nos quadrantes da antropologia estrutural (o homem deixa de ser centro das coisas e retorna a ser incorporado na natureza) e com os horizontes de universalidade.


4. Considerações finais


Hoje, talvez mais do que nunca, o desejo em ver as pessoas bem, aos moldes da inspiração do bem-estar social e individual, com qualidade de vida, atendidas em sua complexidade existencial, com os seus direitos mais íntimos respeitados e prestados, apresenta-se não apenas como um ato de fé religiosa pela união dos homens como irmãos ou sob quaisquer outras metáforas.


Além disso, a vontade do bem-estar é uma expressão da vida cívica e civilizacional, enraizada nas culturas, e expressa (também positivada) por meio dos documentos jurídicos internos e internacionais.


A vedação da guerra é uma das maiores evidências de que o direito caminha para a paz, já visto no contexto kantiano, evitando os embates violentos e privilegiando o diálogo e a compreensão mútuas como meios de solução de controvérsias.


Se, historicamente, o “humanismo” apresentara faces um tanto tendentes a um certo totalitarismo de compreensão, há de se atualizar o seu sentido no núcleo contemporâneo de aspirações jurídicas. O apreço pelo ser humano prevalece, e é condição para o reconhecimento constante da dignidade das pessoas e entendimento da emergência dos direitos e, sobretudo, de seu pronto atendimento.


A análise do pensamento de Lévi-Strauss avulta a cautela de que o mais declarado anti-humanismo é mais humanista do que o próprio humanismo!


Sem uma visão de estima pelo humano, que pode ser compreendida no humanismo (ou em um anti-humanismo que reatualizou o humanismo), e ciente de suas instabilidades históricas, há de se antever ações possíveis com base em tais pressupostos.


O humanismo é necessário, indispensável, como elemento de compreensão do mundo e de valoração dos objetos do conhecimento. Prescindir de sua presença é se afastar do núcleo de ação pautado pela condição e natureza humana, muito embora se possam problematizar tais conceitos.


A busca pela renovação e mesmo reinvenção dos sentidos, e pelo afastamento e superação das armadilhas, é uma medida humanista indeclinável, sob pena de, por sua negação, incidir-se em compreensões altamente lesivas e restritivas da compreensão do problema do homem, reduzindo-lhe a objeto de sistemas jurídicos e de relações sociais. Este aviltamento não é raro e expressa negação do humanismo.


Queira-se ou não o humanismo está posto no tabuleiro do jogo da vida humana. Cabe a cada um, enquanto ser pensante, localizar ou não sua pertinência e sua força para orientar entendimentos.


O humanismo, assim entendido, é um desafio existencial posto pela condição humana. É um esforço de vislumbrar os lugares e as destinações humanas, não tanto em uma força dirigista ou ditante de condutas, mas sem dúvidas como um espectro protetor de vedação de atos lesivos.


O direito é campo especialíssimo neste sentido, e como ciência humana e social é farto de pré-compreensões do humano. Os argumentos da história da antropologia filosófica, acompanhado paralelamente dos debates sobre o humanismo podem servir de parâmetros de correção histórica do entendimento que se formula, identificando anacronismos, antropocentrismos e etnocentrismos, de modo que se possa avaliar os sistemas que se está operando e os resultados produzidos.


A constante tensão entre humanismos e anti-humanismo nada mais expressa do que o aberto, eterno e fascinante problema da autocompreensão humana, que se intensifica na convivência e se exalta na necessidade de se produzir respostas intelectuais, compreensivas e, ademais, jurídicas para os problemas e os destinos humanos.


Se podemos ser muito liberais em nossos argumentos dinâmicos e espontâneos sobre a vida e os destinos humanos, não nos olvidemos de que a força jurídica está à espreita, demandando aos seus profissionais respostas coerentes para problemas complexos. Podemos insistir em respostas simplórias, ou, em procedimentos de problematização e pensamento simplificados em demasia? Para uma realidade de mil ou mais faces, três cortes abarcam o problema? Deve-se negar o desafio e emular as coisas ou de alguma maneira buscar novas soluções?


Nossa condição humana de algum modo nos confere a característica da parcialidade: parcialidade de existência, de percepção, de convicção, de realidade. Contudo, ao mesmo tempo, por alguns desenvolvimentos intelectuais, o horizonte da amplitude das possibilidades humanas se manifesta disponível às considerações. Por isso, ou tomamos nossa parcialidade como dado insuperável, ou, por outro lado, aceitamos o convite de vôos mais altos por, ao menos, a tentativa de visualizar horizontes culturais e individuais distintos.


O humanismo é um profundo convite ao debate, que sempre se apresenta transdisciplinar e, o mais sensível, sem respostas prontas, demandando uma disposição do intérprete ao enfrentamento. O jogo está aberto diante dos nossos olhos, requerendo uma visão.


 


Referências bibliográficas:


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PONDE, Luiz Felipe. Do humanismo ridículo: a crítica da prefectibilidade humana em Pascal e Lutero. Kriterion [online]. 2006, v. 47, n. 114, p. 347-366.

TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros. A reflexão francesa sobre a diversidade humana I. Tradução de Sergio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

VENTURI, Eliseu Raphael. Dois “humanismos” em suma: O juridicamente indefensável (anti-humanismo) e o juridicamente desejável (humanismo). In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 86, 01/03/2011 [Internet].
Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9183>.Acesso em 16 maio 2011.


Informações Sobre o Autor

Eliseu Raphael Venturi

advogado em Curitiba, especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná e mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR


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