É regra expressa no ordenamento jurídico brasileiro a noção de que quando a infração penal deixar vestígios será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo nem mesmo a confissão do acusado (Art. 158 do CPP).
O secular exame de corpo de delito é realizado por um perito oficial, portador de diploma de curso superior, estando sujeito à disciplina judiciária. Na sua falta, o exame é realizado por duas pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame.
Logo que tem conhecimento da prática da infração penal, a Autoridade Policial deve, sem demora, determinar que se proceda ao exame de corpo de delito (Art. 6º, VII, do CPP). Igualmente, em caso de lesões corporais, se o primeiro exame pericial tiver sido incompleto, proceder-se-á a exame complementar por determinação da Autoridade Policial, do Juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública.
A par dessas vetustas disposições codificadas imperativas, agora vem a Lei nº 11.340, de 2006 – a chamada Lei Maria da Penha – , e diz o seguinte:
“Art. 12. (…)
§3º Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde”.
Uma leitura apressada deste §3º poderia sugerir ao intérprete a idéia de que nos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher a sentença penal condenatória poderia arrimar-se em laudo ou prontuário médico fornecido por hospital ou posto de saúde, em detrimento do exame de corpo de delito, a ser realizado por perito oficial.
Para alguns, a admissão de laudos e prontuários fornecidos por hospitais e postos de saúde, para embasar o veredicto penal condenatório, estaria amparada na regra clássica de hermenêutica que determina o abandono da norma geral em prestígio da norma especial (Princípio da Especialidade: lex specialis derogat generali). Interpretação de vanguarda, para essa corrente, que estaria em sintonia com os anseios dos dias atuais de se erradicar a violência contra a mulher, que atinge índices alarmantes no País.
Ainda, para sustentar essa posição, malgrado a disposição contida no Art. 41 da Lei Maria da Penha, a pioneira Lei nº 9.099/95 já teria rompido a exigência clássica de nosso direito probatório brasileiro – da necessidade do exame de corpo de delito – , ao tolerar a demonstração da materialidade do delito por boletim médico ou prova equivalente nas infrações penais de menor potencial ofensivo (Art. 77, §1º).
Entretanto, mister se faz para a compreensão do sentido e alcance do §3º, do Art. 12, da Lei Maria da Penha, que a interpretação deste dispositivo seja feita à luz do que preconizado pela Lei Complementar nº 95, de 1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o § Único, do Art. 59, da Constituição Federal de 1988.
Preconiza esse Diploma Complementar Federal, no que interessa aqui:
“Seção II
Da Articulação e da Redação das Leis
Art. 10. Os textos legais serão articulados com observância dos seguintes princípios:
I – a unidade básica de articulação será o artigo, indicado pela abreviatura ‘Art.’, seguida de numeração ordinal até o nono e cardinal a partir deste;
II – os artigos desdobrar-se-ão em parágrafos ou em incisos; os parágrafos em incisos, os incisos em alíneas e as alíneas em itens;
III – os parágrafos serão representados pelo sinal gráfico ‘§’, seguido de numeração ordinal até o nono e cardinal a partir deste, utilizando-se, quando existente apenas um, a expressão ‘parágrafo único’ por extenso”.
Ainda:
“Art. 11. (…)
III – para a obtenção de ordem lógica: (…)
b) restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio;
c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida”.
Destarte, podemos dizer, então, que o Parágrafo nada mais é do que o desdobramento do Artigo, expressando aspectos complementares ao mesmo. Noutras palavras, o Parágrafo jamais será a unidade básica de articulação do texto legal.
Daí se indaga onde estaria materialmente inserido o §3º, do Art. 12, da Lei Maria da Penha, que diz serem “admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde”?
Dispersando conjecturas, vejamos a literalidade do Art. 12 da Lei da Mulher:
“Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;
II – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;
III – remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência;
IV – determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários;
V – ouvir o agressor e as testemunhas;
VI – ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele;
VII – remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público.
§1º O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e deverá conter:
I – qualificação da ofendida e do agressor;
II – nome e idade dos dependentes;
III – descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida.
§2º A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no §1º o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da ofendida.
§3º Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde”.
Relendo atentamente o Art. 12, da Lei Maria da Penha, chega-se às seguintes conclusões: a) todos os procedimentos previstos pelo CPP que devem ser adotados pela Autoridade Policial não foram descartados pela nova legislação; b) este Artigo não afasta a aplicação do Art. 11, II, da LMP, que determina que a Autoridade Policial encaminhe a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; c) a Autoridade Policial deve formar expediente apartado com o pedido da ofendida de medidas protetivas de urgência; d) deve a Autoridade Policial determinar que se proceda ao exame de corpo de delito na ofendida e re quisitar outros exames periciais necessários (Inciso IV); e) o §1º diz respeito ao pedido da ofendida de medidas protetivas de urgência e seus requisitos; f) o §2º diz que deverão ser anexados ao pedido da ofendida o boletim de ocorrência e todos os documentos que se encontrarem na posse da ofendida; e, g) o §3º diz respeito aos meios de prova para o fim de instruir o pedido da ofendida de medidas protetivas de urgência a ser encaminhado ao Poder Judiciário.
Assim, os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde revestem-se como prova hábil unicamente para o juízo acautelatório cível no que diz respeito ao pedido da ofendida de medidas protetivas de urgência, para a formação do fumus boni iuris. Devendo quanto à denúncia ser observada a regra da necessidade do exame de corpo de delito, direto ou indireto, para as infrações penais que deixam vestígios.
Esse foi o escopo do Art. 35, III, da Lei Maria da Penha, ao estatuir que a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios deverão criar e promover, no limite das respectivas competências, serviços de saúde e “centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar”. Devendo tais Entes promover os ajustes nas respectivas leis de diretrizes orçamentárias, estabelecendo dotações orçamentárias específicas, em cada exercício financeiro, para a implementação desses centros de perícia oficial (Art. 39).
Finalmente, cabe lembrar que nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher aonde efetiva e integralmente implementado o disposto no salvífico Art. 14 da Lei Maria da Penha, que prevê competência cível para o processo, o julgamento e a execução das causas extra-penais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, certamente que laudos e prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde, corroborados pelas demais provas dos autos, constituem-se em prova firme e segura da materialidade do ilícito civil, que poderá dar azo à obrigação de indenizar a vítima, de acordo com a extensão dos danos.
Informações Sobre o Autor
Carlos Eduardo Rios do Amaral
Defensor Público do Estado do Espírito Santo