A cultura de consumo de massas: um desafio ao novo modelo de estado democrático de direito

Sumário: Introdução. 1. Precedentes do estado democrático de direito. 1.1 Estado Democrático de Direito e sociedade contemporânea. 2.liberdade e consumo. 2.1consumidor, estado e poder econômico. 2.2. Consumidor e sociedade. 2.3 O consumo como “paraíso artificial”. 2.4 A Realidade brasileira.2.4.1 A influência publicitária. 3. Legitimação estatal para a tutela do consumo de massas. 3.1 O Poder Judiciário. 3.2 O Ministério Público. 3.2.1 Direitos Difusos. 3.2.2 Direitos Coletivos. 3.2.3 Interesses ou direitos individuais homogêneos. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução


A massificação do consumo tem demonstrado ser um dos grandes problemas a ser enfrentado pela sociedade contemporânea. Inúmeros debates são promovidos em diversas reuniões de cúpula ao redor do mundo, salientando a importância da defesa do consumidor contra os abusos cometidos pelos fornecedores nas relações de consumo, dada a vulnerabilidade que àqueles atinge.


Todavia, a maioria esmagadora do repertório jurídico quase nunca aborda os aspectos éticos do consumo no que se refere à relação entre o consumidor e a sociedade, sendo raras as obras jurídicas explanando sobre o tema, talvez por se tratar de aspectos sociológicos, reservados à disciplina própria, mas não menos importantes, porém escassos na bibliografia consumerista.


Verdade seja dita, muito embora venham sendo cobrados programas de responsabilidade social das empresas, que a sociedade civil venha se organizando crescentemente, e que o Judiciário esteja se colocando a favor do consumidor, a preocupação com a ética nas relações de consumo ainda se encontra em fase embrionária, carente no que se refere a medidas eficazes para conter o consumo desenfreado e imprimir-lhe sustentabilidade.


Inicialmente, procurar-se-á analisar os aspectos subjetivos do comportamento do consumidor sob os vários prismas possíveis e suas conseqüências sociais de forma geral, analisando o consumo sob uma perspectiva global.


Em seguida, passaremos ao estudo do consumo dentro da realidade brasileira.


Dissertaremos acerca do que tem sido efetivamente feito no sentido de conter a onda consumista que se instalou no seio social, bem como sobre que ações têm sido desenvolvidas e os possíveis projetos em pauta para contê-la.


O presente trabalho, entretanto, parafraseando a autora britânica Joan Robinson (1970), tem o objetivo de deixar mais perguntas do que oferecer respostas.


Urge uma profunda reflexão acerca do comportamento do consumidor perante o mundo, e é exatamente este um dos desafios do novo modelo de Estado Democrático de Direito. 


1. Precedentes do estado democrático de direito


O consumo de massa afigura-se fenômeno relativamente recente. Joan Robinson (1970: 61) observa que alguns historiadores chegam a dividir a história humana apenas em dois períodos: do neolítico ao século XVIII, e da Revolução Industrial até o presente. Isso porque o industrialismo foi determinante para que a humanidade adotasse o comportamento consumista hodiernamente observado.


É imperioso destacar que o modo de ser do Estado é, antes de tudo, a consagração dos valores almejados por seu povo, ou seja, exprime-se no que é cultuado por seus súditos. Reale (1977) exemplifica o fenômeno com maestria:


“A sociedade em que vivemos é, em suma, também realidade cultural e não mero fato natural. A sociedade das abelhas e dos castores pode ser vista como um simples dado da natureza, porquanto esses animais vivem hoje, como viveram no passado e hão de viver no futuro. A convivência dos homens, ao contrário, é algo que se modifica através do tempo, sofrendo influências várias, alterando-se de lugar para lugar e de época para época. É a razão pela qual a Sociologia é entendida, pela grande maioria de seus cultores, como uma ciência cultural.”


Assim sendo, o Estado operou significantes mudanças em sua estrutura política nos períodos pré e pós-revolução.


No período pré-revolução, a sociedade foi marcada pelo liberalismo que se instalou após a Revolução Francesa, uma vez que a liberdade era o valor, o bem maior perseguido pelo povo, dando origem ao Estado Liberal. Tal modelo teve como expressão máxima a intervenção mínima do Estado na vida privada, o que lhe rendeu também a denominação de Estado Mínimo. Nessa fase, por exemplo, as regras do direito contratual permitiam que o pacta sunt servanda fosse admitido como princípio supremo a ser observado pelas partes nas negociações. As relações entre particulares eram mais equânimes, significando a possibilidade de discutir os negócios como iguais, da forma que melhor lhes aprouvesse. Pode-se dizer que, nesse momento histórico, os contratantes gozavam de ampla liberdade de contratar e contratual, entendida a primeira como a livre escolha do parceiro contratual, e a segunda a possibilidade de se discutir livremente as cláusulas reitoras do negócio.


Posteriormente, a chegada da Revolução Industrial acabou por provocar alguns choques sociais, que culminaram na mudança das diretrizes estatais. O gozo da liberdade mostrou-se insuficiente ao ser humano, clamando, ainda, as condições de usufruí-la (LIMA, 2003: p.23). Dentre os movimentos sociais de maior importância, nessa época, destacam-se o Ludita (1811-1813) e o Cartista (1838-1842), ambos oriundos das tensões entre patrões e empregados da indústria inglesa, sendo que este último, após sistemática rejeição, pelo Parlamento, das reivindicações contidas na primeira Carta do Povo de 1838, somente mais tarde veio a ter alguns de seus pedidos atendidos pelo governo inglês. Surgiria, assim, o Estado Social, ou Estado do Bem-Estar Social, ou ainda, o Welfare State.


O modelo de Estado de Bem-Estar, segundo o sociólogo sueco Gunnar Myrdal (1966)[1], teve suas origens depois que a prosperidade capitalista obrigou a expansão dos serviços sociais, a fim de amenizar as privações experimentadas pelo proletariado, destacando:


“(…) um cidadão que passe privações constitui uma censura à economia, e não possui utilidade para ela, seja como operário para produzir, seja como mercado para absorver os bens que podem ser vendidos; a saúde precária é um desperdício e a instrução pública é necessária para produzir trabalhadores habilitados e os escalões mais baixos da tecnoestrutura. Assim, o capitalismo moderno se voltou para o Estado do Bem-Estar.”


O mesmo autor, todavia, questionou os benefícios de uma sociedade regida por tal modelo político, ou seja, sem grandes problemas, com desemprego mínimo, sistema previdenciário eficiente, ensino público de qualidade, enfim, bem-estar sócio-material praticamente pleno, tomando-a como entediante, o que supostamente explique, por exemplo, os altos índices de suicídio entre os suecos. 


Durante o período entreguerras, notadamente a partir de 1922, o Welfare State operou profundas mudanças nos Estados Unidos, onde fez consolidar o American Way of Life (modo de vida americano), o qual veio a ditar o padrão de consumo da época. Nesse ínterim, a indústria americana experimentou um crescimento fantástico, com destaque para a produção de automóveis e eletroeletrônicos, conseqüência das altas taxas protecionistas adotadas pelo governo.


 Pazzinato e Senize (1997) observam:


“A euforia tomou conta da população, embora as bases desse desenvolvimento fossem frágeis. Todos passaram a ter como meta a aquisição de automóveis, rádios, telefones e eletrodomésticos em geral, criando uma falsa aparência de bem-estar, consolidada no padrão do modo de vida americano.”


Os reflexos dessa super produção da indústria culminaram com a crise de 1929. A produção foi tamanha a ponto do mercado não mais conseguir absorvê-la, e tão rápida a ponto de não permitir a formação de mercados externos. O desemprego foi maciço, o consumo interno baixou e os investimentos diminuíram, tudo praticamente em progressão geométrica.


Destarte, o paradigma de Estado de Bem-Estar mostrava-se dissonante com a realidade social que se instalou, mostrando-se frágil a dirimir os conflitos dali advindos. Surge, então, o Estado Democrático de Direito como modelo apto a tutelar os anseios da sociedade moderna.


1.1 Estado Democrático de Direito e sociedade contemporânea


O modelo de Estado Democrático de Direito encontra-se consagrado pelo art. 1º e incisos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 como princípio fundamental. O principal princípio decorrente desse paradigma é o da legalidade, mas não no sentido formal em que se apresentava no Estado de Direito, mas sim como realizador do princípio da igualdade e da justiça, de forma a equalizar as condições dos socialmente desiguais. Eis o magistério de José Afonso da Silva (1997):


“É precisamente no Estado Democrático de Direito que se ressalta a relevância da lei, pois ele não pode ficar limitado a um conceito de lei, como o que imperou no Estado de Direito clássico. Pois ele tem que estar em condições de realizar, mediante lei, intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade. Significa dizer: a lei não deve numa esfera puramente normativa, não pode ser apenas lei de arbitragem, pois precisa influir na realidade social. E se a Constituição se abre para as transformações políticas, de importância, na medida em que, sendo fundamental expressão do direito positivo, caracteriza-se como desdobramento necessário do conteúdo da Constituição e aí exerce função transformadora da sociedade, impondo mudanças sociais democráticas, ainda que possa continuar a desempenhar uma função conservadora, garantindo a sobrevivência de valores socialmente aceitos.”


Thomas Jefferson[2], em seus Escritos Políticos, já consignava: “Cuidar da vida e da felicidade humanas, e não de sua destruição, constitui o primeiro e único objetivo do bom governo”.


Todavia, ao longo dos tempos parece-nos que a sociedade, diferentemente do que propõe a lei, veio a eleger valores incongruentes com os ideais objetivados pela democracia. Desenvolveu-se uma cultura do “ter” em detrimento do “ser”. Reale  (1977: p. 27), com propriedade, assenta:


“Não vivemos no mundo de maneira indiferente, sem rumos ou sem fins. Ao contrário, a vida humana é sempre um procura de valores. Viver é indiscutivelmente optar diariamente, permanentemente, entre dois ou mais valores. A existência é uma constante tomada de posição segundo valores. Se suprimirmos a idéia de valor, perderemos a subsistência da própria existência humana. Viver é, por conseguinte, uma realização de fins. O mais humilde dos homens tem objetivos a atingir, e os realiza, muitas vezes, sem ter plena consciência de que há algo condicionando seus atos.”


Nessa toada, um dos maiores expoentes no assunto na atualidade, o educador britânico John Lane[3], em crítica ao mercado do lucro, assevera:


“As pessoas estão ligadas a metas de vida inalcançáveis. Os anúncios estão sempre nos dizendo que seremos mais felizes se escolhermos esse carro, essa nova cozinha. Dizem até que ficaremos mais atraentes se usarmos este xampu ou aquele desodorante. O consumismo e a pressão pelo sucesso estão criando uma epidemia de infelicidade para pessoas que não conseguem alcançar as metas colocadas à sua frente.”


A globalização, como não poderia deixar de ser, ao mesmo tempo em que inseriu indubitáveis melhoras na qualidade de vida do homem moderno, também semeou problemas globais, com reflexos distintos em cada corpo social. Rogério Medeiros Garcia de Lima (2002: p.38)[4] assinala que, no caso do Brasil, o mal-estar social se relaciona ao desemprego e outras mazelas. Entendemos que uma delas foi exatamente o acirramento do consumismo,  salientando, ainda, que as insatisfações e incertezas geradas por este recente fenômeno ainda estão longe de contarem com uma solução, mas necessitam, pelo menos, de um paliativo.


Sabe-se que o Estado Democrático de Direito tem como uma de suas características um maior intervencionismo nas relações jurídicas. É o chamado Dirigismo contratual, herdado do Welfare State. Tal movimento teve início em fins do século XIX, em todos os países mais ou menos industrializados, como forma de proteção do fraco contra o cocontratante poderoso e, principalmente, no contrato de trabalho (Batiffol, 1968: 99). Com a evolução do dirigismo estatal, sempre que a ordem pública e o interesse social estivessem ameaçados, o Estado era chamado a aliviar as tensões sociais, com vistas a restabelecer o equilíbrio social. Veremos mais tarde que o Estado, através de seus Poderes, notadamente o Judiciário, bem como a sociedade civil organizada, vêm criando mecanismos de combate aos conflitos gerados pelas conseqüências da globalização.


Assim, é possível verificar que a cultura imposta pelo modelo capitalista coloca em xeque a liberdade do indivíduo no que se refere à suas preferências, e é exatamente sobre os aspectos da liberdade que trataremos no próximo tópico.


2. Liberdade e consumo


2.1. Consumidor, estado e poder econômico


Certa vez, Oliver Wendell Holmes proferiu: “Dêem-nos o supérfluo da vida, que dispensaremos o necessário” [5]. Transpondo esta frase, cunhada no início do séc. XIX, para os nossos dias, embora seja muito provável que o autor não vaticinasse os acontecimentos hodiernos, a mesma nunca esteve tão atual, pois é a expressão real do que ocorre na sociedade consumista.


Thomas Jefferson assim concebia a liberdade:


“Da liberdade, pois, diria que, em toda a plenitude de seu alcance, ela está na ação não obstruída de acordo com nossa vontade, mas a liberdade justa é a ação livre de conformidade com nossa vontade dentro dos limites traçados em torno de nós pelos direitos iguais de outros.”


 Quando dissemos anteriormente que não se pode proibir o consumo, foi no sentido de que: “não se consegue impor fisicamente qualquer convicção ou credo”, conforme afirma Ives Gandra da Silva Martins Filho[6], que assevera, ainda:


“A idéia que as pessoas geralmente têm de liberdade é a de ausência de condicionamentos. ‘Liberdade é fazer o que se quer’, dizem muitos. Ser livre seria estar completamente aberto, a todo momento, para escolher o que se quer, o que se apetece, o que se deseja, sem qualquer limitação moral: ‘Livre para voar’, apregoa o slogan publicitário. Essa seria a liberdade total.


Na medida em que o homem vai fazendo opção pelos bens que o aperfeiçoam, vai sedimentando virtudes, que facilitam o exercício da liberdade. Já as sucessivas escolhas por bens aparentes, que o degradam, vão forjando vícios, que escravizam o homem, dificultando-lhe, depois, o exercício da liberdade e tornando-o incapaz de aspirar e perseguir bens convenientes à sua natureza. Numa sociedade massificada, há, naturalmente, a pressão da padronização: sanduíche do Mc Donald’s, calça Jeans, beber Coca-Cola etc. Poderia se dizer que não há liberdade de escolher, pois os padrões nos vêm impingidos de fora.


Ser livre não é apenas ter a possibilidade de escolher, mas principalmente escolher bem, tendo em vista os valores que realizam efetivamente o homem.”


Eis, aí, um paradoxo imenso, uma vez que o ato de consumir está cada vez mais movido por condicionamentos. O indivíduo imagina estar exercendo seu livre-arbítrio, sendo que, na verdade, está inconscientemente movido pela vontade do fornecedor, que dita o que é “melhor” para o consumidor.


Garcia de Lima[7]  (2003: p.31) assinala:


“Hodiernamente, o fenômeno consumerismo é visível tanto nas sociedades industrializadas, quanto nas economias em desenvolvimento. Persegue-se freqüentemente a satisfação de necessidades irreais ou incorretamente hierarquizadas, em função do condicionamento psicológico criado por uma estratégia de produção industrial extremamente dinâmica no oferecimento de novidades.”


Fato é que o sistema capitalista é eivado de um egoísmo esclarecido (Robinson, 1971: 89). O poder econômico ainda vive sob a égide das leis civis e comerciais (Garcia de Lima, 2003: 42), em que pese a preocupação do Estado com os Direitos Sociais. A esse respeito, João Baptista Herkenhoff nos dá a exata idéia dos valores consagrados pelo ordenamento jurídico pátrio:


“As leis penais vigentes num país permitem identificar a pauta de valores do legislador. No Brasil, por exemplo, o Código Penal é marcado pela ideologia capitalista, com profundo teor individualista. Os crimes mais graves, no Código Penal são aqueles que afetam o patrimônio: o latrocínio (art. 157, § 3º) é punido com mais severidade do que o estupro seguido de morte (art. 213, combinado com o 223, parágrafo único). Constranger alguém para obter vantagem indevida é crime gravíssimo (extorsão), mas, se a pretensão é legítima, o crime é leve (exercício arbitrário das próprias razões)[8]”.


Fica evidente, então, o quão confusa é a questão dos juízos de valor. Certo é que todo ser humano possui suas próprias opiniões morais, políticas e ideológicas. Mas, o que se vê numa sociedade de consumo é um óbice tremendo, gerado pelo sistema capitalista ao exercício das liberdades individuais, no sentido de que o indivíduo possui o atributo da liberdade em seu sentido formal (liberdade subjetiva), ou seja, é livre para adquirir esse ou aquele produto, mas, no fundo, é orientado por forças sutis em suas escolhas, restando suprimida a autodeterminação individual em função da escolha feita (liberdade externa), tudo isso assistido pelo Estado, inclusive, que acaba por conceder excessiva liberdade aos fortes, importando em um esmagamento dos fracos (José Afonso da Silva, 1997: 226). Essa é a relação entre o consumidor, o Estado e o poder econômico, realçando a vulnerabilidade do primeiro. De um lado, ao mesmo tempo em que se busca a proteção do pólo mais fraco nas relações de consumo, almeja-se o desenvolvimento econômico, harmonizando, assim, os interesses dos participes daquelas relações (art. 4º, III do CDC).


Contudo, parece-nos que tal harmonia ainda está longe de ser alcançada. Em que pese a livre concorrência como forma de assegurar ao consumidor o poder de opção pela contratação, este ainda se encontra submisso ao poder econômico, sofrendo o constrangimento da necessidade de contratar, a fim de que não fique socialmente excluído.


Celso Antônio Bandeira de Mello[9] assinala que a dignidade da pessoa humana acabou por sofrer uma supressão por parte da nova ordem econômica, proclamado que: “Imperialismo, hoje, chama-se globalização, queda de fronteiras, destruição da economia nacional, cujo resultado é o agravamento da miséria, em função do bem-estar de um grupo. Não se pode aceitar isso com submissão”. Isso nos dá a dimensão do que vem ocorrendo na sociedade atual.


Fábio Konder Comparato[10], ao comentar sobre os protestos de Seattle e a organização de fóruns sociais como o de Porto Alegre, frisou:


“Essa tendência é muito forte e ela progrediu muito no estrangeiro e está progredindo muito no Brasil e é um pouco por aí que nós podemos esperar, dai que nós podemos esperar uma solução. Porque todo o trabalho dos que estão no poder é se justificarem, é uma auto-justificação. Qual é o grande argumento deles? É que a globalização, o neoliberalismo, é uma fatalidade, é como se fosse uma força da natureza contra a qual nós somos impotentes. Eles dizem que não se trata de saber se o neoliberalismo é justo ou injusto, ele é simplesmente indispensável, como se fosse uma mudança climática, como se fosse um terremoto. E, o que aos poucos nós, aos poucos tem conseguido no Brasil e no estrangeiro, é mostrar que tudo isso é falso, que se trata de uma política deliberada, consertada pelas grandes potências, notadamente pela principal delas que é os Estados Unidos, e que nós somos as vítimas designadas, escolhidas por eles, porque não há outra maneira de fazer funcionar o capitalismo, senão o maior exclusão social.O esquema, aí sim, é quase que necessariamente um esquema de empobrecimento. Todo método de funcionamento do capitalismo é aumento da lucratividade para que haja aumento da concentração de capital. Como é que eles conseguem isso? De dois lados. Internamente explorando os trabalhadores; externamente explorando os consumidores. Não há mistério nenhum nisso.”


Garcia de Lima[11] (1998), por sua vez, registra que “o poder econômico continua guarnecido pelas lei civis e comerciais. Até hoje, é aplicado o draconiano Decreto-lei n. 911, de 1º de outubro de 1969, baixado no Regime Militar, possibilitando a prisão do devedor fiduciante, equiparado ao depositário infiel”.


Fala-se, atualmente, em crise e ameaça do Estado constitucional. Será?! Entendemos que, o que está em crise é o modelo sócio-econômico idealizado pelo legislador constituinte, reclamando, assim, o desenvolvimento efetivo da democracia tão aclamada no texto da Constituição.


Isso nos permite vislumbrar que, embora o Estado brasileiro tenha procurado consagrar o modelo de constitucionalismo culturalista, ou seja, com a aproximação do homem dos valores desejados pela sociedade e pela lei, a realidade mostra que, na esfera fática, somos súditos de um Estado onde ainda impera os fatores caracterizadores da Constituição real de Lassale, isto é, o povo brasileiro é marionete do banqueiros e empresários, e o que é pior, sob a égide do Judiciário, em que pese tal Poder esteja em busca da concretização do culturalismo, porém timidamente.


2.2 Consumidor e sociedade


De seu turno, o consumidor, no exercício de sua liberdade de consumir, acaba por estabelecer uma outra relação, desta vez envolvendo o ato de consumo e suas conseqüências sociais. Porém, nesse caso, a ética é a tônica dessa relação. Como dito anteriormente, em regra parece-nos mais difícil estabelecer meios de coerção na esfera individual do consumidor. O que se tem buscado, no intuito de conter a onda consumista, é o acirramento da divulgação de informações para que se consuma melhor. Alguns exemplos, como a opção por produtos cuja produção respeite as leis ambientais, a proibição de fumar em determinados ambientes[12], o famoso rodízio na utilização de automóveis na cidade de São Paulo, podem ser tomados a fim de ilustrar uma tentativa do Estado de limitar algumas ações anti-sociais. Busca-se, assim, atingir o tão falado bem-comum, objetivo maior do Estado.


Em alguns países desenvolvidos, como o Canadá, jogar lixo na via pública é passível de multa. Semelhante mecanismo é também utilizado na Rússia, país que não se encontra no mesmo patamar de desenvolvimento, mas que possui suas regras de cidadania. 


No Brasil, conforme destaca Rogério Medeiros Garcia de Lima, “há o malfazejo costume de distinguir as leis ‘que pegam’ das leis ‘que não pegam’. Felizmente, a essa altura, podemos dizer que a Lei 8.078/90 ‘pegou’. Foi assimilada pela sociedade brasileira”.[13] Segundo assenta Cavalieri Filho (2002), “no crepúsculo do século XX que acabou de se despedir, nos seus derradeiros anos, registrou-se, felizmente, o início de um movimento de mudança de mentalidade nos operadores do direito”[14], confirmando a aceitação desse que é um importante instrumento de cidadania.


O fato de uma lei “pegar” ou “não pegar” é a expressão da cultura de uma sociedade. Muito do que se deseja implantar em uma sociedade como valor real, acaba por sofrer embargos, sob a égide da falsa utopia. É comum que as pessoas confundam a utopia com o mito, conforme afirma João Baptista Herkenhoff[15]:


“Deve-se distinguir, de início, o mito, da utopia, a imaginação intencional, da fantasia solta.


O mito é um sucedâneo da realidade, que consola o homem daquilo que ela não tem: seu objetivo é esconder a verdade das coisas, á alienar o homem. A utopia, pelo contrário, é a representação daquilo que não existe ainda, mas que poderá existir se o homem lutar para sua concretização.


O mito nasce da fantasia descomprometida, com a única finalidade de compensar uma insatisfação vaga, inconsciente.


A utopia fundamenta-se na imaginação orientada e organizada. É a consciência antecipadora do amanhã.


O mito ilude o homem e retarda a história. A utopia alimenta o projeto de luta e faz a história.


Vejo o pensamento utópico como o grande motor das revoluções.” 


    Para o professor Francisco Amaral, o argumento de que a utopia é algo impossível, que tudo deve ser deixado de lado pra não complicar a vida, conforme dita a moda brasileira, é letra morta. Compartilhando da opinião do autor supra citado, “a utopia deve ser buscada incansavelmente como forma de realização da justiça; dos valores desejados pela sociedade”[16].


García Canclini propõe articular o consumo com um exercício refletido de cidadania e aponta que, para isso, entre outras coisas, deve-se reunir “uma oferta vasta e diversificada de bens e mensagens representativos da variedade internacional dos mercados, de acesso fácil, eqüitativo para as maiorias”, além de qualidade no conteúdo informacional, a fim de que o consumidor tenha elementos para refutar as pretensões e seduções da publicidade e do mundo contemporâneo[17].


Brito Filomeno (2004: p. 20) , por sua vez, destaca:


“Declarado pela Resolução da ONU nº 153/1995, o chamado consumo sustentável exsurge como nova preocupação da ciência consumerista.


Com efeito, o próprio consumo de produtos e serviços, em grande parte, pode e deve ser considerado como atividade predatória dos recursos naturais.


E, como se sabe, enquanto as necessidades do ser humano, sobretudo quando alimentado pelos meios de comunicação em massa e pelos processos de marketing, são infinitos, os recursos naturais são finitos, sobretudo quando não renováveis.


A nova vertente, pois, do consumerismo, visa exatamente buscar o necessário equilíbrio entre essas duas realidades, a fim de que a natureza não se veja privada de seus recursos o que, em conseqüência, estará a ameaçar a própria sobrevivência do ser humano neste planeta.”


Com isso, demonstrada está a necessidade de uma grande luta no sentido de despertar no consumidor o sentimento ético em relação ao futuro próximo, e rechaçar de vez o típico jargão proferido pela sociedade brasileira: “deixa pra lá”.


2.3 O consumo como “paraíso artificial”


Tarefa tormentosa é distinguir quando o consumo é mera satisfação das necessidades básicas ou um subterfúgio às pressões do cotidiano.


J. Fayard, em sua obra A chave da felicidade e a saúde mental, dedica um capítulo especial ao que ele chama de paraísos artificiais, referindo-se aos indivíduos usuários de entorpecentes e os motivos que os levam à tal prática.


Analogicamente aos usuários de entorpecentes, guardando as devidas proporções, é claro, não são raros os casos de quem se deixa escravizar pelo consumo, no qual encontram, em princípio uma sensação fictícia de bem-estar, ou seja, um paraíso artificial, um refúgio agradável, porém irreal, a arrostar as dificuldades cotidianas.


Nesse sentido, eis a lição de Costa Freire[18]:


“(…) falamos de um ‘consumo’ de bens materiais ou símbolos de status, sem perceber que o que está sendo verdadeiramente ‘consumido’ é a vitalidade de nossos corpos e mentes, diariamente vendida e comprada, usada e abusada para azeitar a máquina ensandecida do lucro. Observadas de perto, as promessas da ‘sociedade de consumo’ são espantosas. Tudo cabe numa lista tacanha, onde, de um lado, estão os meios de evasão (…) e, de outro, a realidade social da qual todos querem se evadir.”


Lasch[19] (1986) tem semelhante opinião:


“A produção de mercadorias e o consumismo alteram as percepções não apenas do eu como do mundo exterior ao eu; criam um mundo de espelhos, de imagens insubstanciais, de ilusões cada vez mais indistinguíveis da realidade. O efeito especular faz do sujeito um objeto; ao mesmo tempo, transforma o mundo dos objetos numa extensão ou projeção do eu. É enganoso caracterizar a cultura do consumo como uma cultura dominada por coisas. O consumidor vive rodeado não apenas por coisas como por fantasias. Vive num mundo que não dispõe de existência objetiva ou independente e que parece existir somente para gratificar ou caracterizar seus desejos.”


Anote-se que o consumo, obviamente, não é capaz de causar as debilidades atribuídas aos entorpecentes. Porém, as conseqüências de seu desregramento não são menos graves.


Tomemos como exemplo mais corriqueiro a violência nos grandes centros urbanos, já banalizada pelos meios de comunicação. São inegáveis as conseqüências que o movimento do campo para a cidade trouxeram para o convívio social. Acostumados a uma vida simples e miserável, muitos acabaram por optar pela vida urbana como forma de alcançar o sucesso sócio-econômico.


É cediço que tal modelo de vida requer a satisfação de uma série de necessidades, acarretando, por conseguinte um grau de consumo mais elevado, em comparação com a vida rural. Destarte, há um choque cultural enorme entre indivíduos pertencentes a estilos de vida diferentes. O ponto de intersecção entre quaisquer indivíduos está exatamente na sedução pela modernidade, pelas novidades do mercado, pela automatização, novas tecnologias, enfim, pela chamada “tecnoestrutura”. São seduzidos, tanto o homem médio, quanto aquele sem qualquer instrução; este último em grau mais elevado. O habitante do “morro” também aspira o sucesso alcançado pelo rico empresário. Ilustrando-se: quer um lap-top, o tênis Nike, o jeans Levis, o carro do ano etc.


Como corolário desses desejos, desponta o aumento da criminalidade. Bandido não rouba bandido, rouba, por exemplo, o morador da Zona-Sul carioca e demais bairros de nível social assemelhado. Isto é fato!


Então, embora não seja uma conseqüência físico-psíquica do ato de consumir, o aumento da criminalidade, nessa esfera, apresenta-se como uma conseqüência da tecnoestrutura imposta pelo neoliberalismo e pela globalização, em detrimento da coletividade. Mais uma vez é possível observar o quão vultoso é o papel do Estado na difusão de valores que permitam o saudável desenvolvimento social.


Garcia Canclini (1999) considerou o consumo como uma das dimensões do processo comunicacional, relacionando-o com práticas e apropriações culturais dos diversos sujeitos envolvidos neste sistema. Afirmou que por meio dele os sujeitos transmitem mensagens aos grupos sócio-culturais dos quais fazem parte[20].


Baudrillard[21] compartilha da mesma opinião, ao afirmar:


“O homem – ser consumidor considera-se como obrigado a gozar e como empresa de prazer e de satisfação, como determinado-a-ser-feliz, amoroso, adulador/adulado, sedutor/seduzido, participante, eufórico e dinâmico. Eís o princípio de maximação através da multiplicação dos contactos e das relações, por meio do uso intensivo de sinais e objectos, por intermédio da exploração sistemática de todas as virtualidades do prazer.”


Claus Radloff (2002, p. 03), assim consignou:


“De irretocável veracidade, impossível dissociar o ser humano do cotidiano de consumo. Inobstante a classe social em que vivemos, somos forjados pela conjuntura contemporânea e, como tal, independentemente do status social que assumimos. Somos, indubitavelmente, contumazes consumidores, quer seja pela necessidade biológica, quer pela necessidade incessante de atendermos nossos desejos, mesmo os mais dispensáveis e supérfluos.”


Isso nos permite concluir, então, que o consumo é também uma espécie de movimento tribal, de agregação do homem.


2.4 A Realidade brasileira


Registra-se que o consumo, no Brasil, se intensificou após o início de nossa industrialização, em meados da década de 30, sendo que, já nessa época, o Estado possuía características fortemente intervencionistas na ordem econômica (Sayeg, 2004)[22].


Antes mesmo de ser incluída na Carta Constitucional de 1988, a defesa do consumidor, no Brasil, teve como marco mais significativo a edição da Lei nº 7.347/85, conhecida como Lei da Ação Civil Pública, com vistas à proteção dos interesses difusos da sociedade. No mesmo ano, criou-se o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor.


Com um histórico eminentemente intervencionista, o Brasil, visando a preservação dos direitos sociais, sempre interveio no domínio econômico. Na Constituição Federal de 1988, a matéria é regulada no art. 170, que traz em sua letra:


“Art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:


(omissis)”


  Dentre os princípios elencados nos incisos do artigo supra transcrito, encontra-se a defesa do consumidor. A elaboração da respectiva legislação protetiva, observando o art. 5º, XXXII, vem também da determinação do legislador constituinte, o qual dispôs no art. 48 do ADCT:


“Art. 48 – O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará o código de defesa do consumidor.”


Em pouco mais de 14 anos de vigência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), a sociedade presencia a cada dia a luta de seus diversos setores a fim de garantir a observância e o regular cumprimento das diretrizes traçadas pela legislação consumeira. Vocábulos como vulnerabilidade, hipossuficiência, abusividade, são proferidos em altos brados com a finalidade de demonstrar a fragilidade do consumidor perante os fornecedores de produtos e serviços na cadeia de consumo. 


De fato, tudo isso expressa a verdade acerca desse que é o pólo mais fraco daquelas relações. Entretanto, apenas recentemente os meios de comunicação começaram a ventilar, de forma mais agressiva, anúncios versando sobre a importância e necessidade do consumo sustentável e seus benefícios.


É bem verdade que o CDC foi elaborado com vistas a regular as relações entre consumidor e fornecedor. Todavia, da leitura do art. 4º, III entendemos que a boa-fé nas relações de consumo, ao ser guindada como um dos princípios norteadores do CDC, não o foi somente objetivando aquelas relações. Significando dizer, então, que não só o fornecedor está obrigado a observá-la, mas também os consumidores são destinatários desse princípio não só em relação àqueles, mas também à coletividade. Se o dever de cooperação tem sido a tônica nas relações jurídicas, por que não haveria de ser nas sociais? O consumo, em regra tido como uma relação obrigacional, importa em direitos e deveres. Se por um lado o consumidor é amparado pelo Estado em relação aos abusos cometidos pelos fornecedores, por ser medida de justiça, aqueles, há de cumprir, também, lado outro, o dever de guardar a mais extrema ética ao consumir, ou seja, cuidar para que tal ato não venha a gerar conseqüências nocivas à sociedade e ao planeta. Freqüentemente é possível assistir a cenas de pessoas jogando lixo na via pública, ou então se abstendo de praticar a coleta seletiva, utilizando-se do automóvel para percorrer distâncias ínfimas, desperdiçando recursos naturais, entre outros hábitos de consumo desregrados.  


Para se demonstrar a gravidade do problema, e afastar o argumento de que grande parte da população carece de informação, pelo fato da maioria pertencer a camadas mais baixas da sociedade, não raro assiste-se a pessoas pertencentes à chamada “elite” cometerem atos bárbaros como o acima descrito. Ou seja, a questão não se resume propriamente na falta de educação, pois esta se encontra sob intensa difusão, mas sim na falta de assimilação dessa educação.


2.4.1 A influência publicitária


A realidade social imposta pelo sistema capitalista fez com que o legislador consumeiro, consoante assinala Cláudia Lima Marques (2002: 673), dispensasse à publicidade tratamento jurídico distinto daquele previsto no Código brasileiro de Auto-regulamentação publicitária. A eminente autora entende a publicidade, observado o sistema do CDC, como “toda informação ou comunicação difundida com o fim direto ou indireto de promover junto aos consumidores a aquisição de um produto ou a utilização de um serviço, qualquer que seja o local ou o meio de comunicação”, levando-se em conta a finalidade consumista.


Isso se deve aos sucessivos “bombardeios” ao consumidor, promovidos pela publicidade agressiva que circula livremente, e, mais do que nunca, em proporções astronômicas. Nas grandes metrópoles, principalmente, a poluição visual é enorme, e a única “paisagem” que se vê são os letreiros dos anúncios publicitários e dos estabelecimentos empresariais. Vive-se na era da propaganda, do estímulo ao “prazer de consumir”


Martins da Costa[23] (2002: p. 88), citando a advertência de Luc Bihl, acrescenta:


“Iludido pela publicidade matreira, o consumidor é psicologicamente condicionado pela idéia “por que não eu?” Ou pelos refrãos “você pode comprar”, “compre tudo, imediatamente tudo” Pagar parcelado tornou-se um hábito, ou até uma boa forma de viver. Os estudiosos vêem nessa ideologia uma questão de sobrevivência do capitalismo que não seria possível sem a criação no consumidor de uma série de necessidades relativas a um desejo desenfreado de conforto e novas comodidades”.


Interessante notar que a publicidade nem sempre se apresenta de forma explícita. Pode se apresentar, também, de forma muito sutil, através das chamadas mensagens subliminares, mas não menos capazes de influenciar o comportamento do consumidor, inconscientemente. O primeiro caso de que se tem notícia desse tipo de prática data de 1956 em Nova York, onde, durante seis semanas, 45 mil pessoas forma submetidas a uma experiência na qual, durante a exibição do filme Picnic, com Kim Novak (tradução para o português: Férias de Amor), um outro projetor lançava na tela, a cada cinco segundos, mensagens em alta velocidade, incapazes de serem percebidas conscientemente pelo olho humano, com os dizeres: “Coma pipoca” e “Beba Coca-Cola”. Ao final da experiência, concluiu-se que houve sensível aumento na venda dos mencionados produtos ao final das seções[24].


Não se pode proibir o consumo, até porque o art. 5º, II da Carta Magna dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, mas há que se atentar para suas conseqüências, sendo certo que o Estado detém legitimidade para disciplinar determinadas condutas que atentem contra os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. O Direito reclama a tutela estatal, no sentido de limitar o exercício das prerrogativas subjetivas, rompendo, assim, com o individualismo que permeou o pensamento jurídico pós-Revolução Francesa (CARPENA: 2005).[25]


Com vistas nisso é que a legislação consumerista se preocupou em disciplinar a publicidade como forma de proteger o consumidor de seus efeitos. Destacamos, para efeito de demonstrar a influência publicitária no comportamento do consumidor brasileiro, principalmente dos jovens, a publicidade envolvendo a divulgação de veículos. Se prestarmos atenção nos anúncios de automóveis, notamos que a maioria envolve manobras radicais, com os marcadores de velocidade em rápida ascensão, e uma música radical como fundo sonoro. Pois bem. O art. 37, § 2º do CDC traz em seu bojo a seguinte regra:


“Art. 37 – É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.


(omisis)


§ 2º É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite a violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.”


Pergunta-se, então: tal espécie de anúncio não estaria a induzir o consumidor a se comportar de forma a comprometer a sua segurança?[26] 


Em verdade, a publicidade sempre se preocupou em ensinar a consumir, criou “necessidades” desnecessárias, as quais vêm deturpando crescentemente os valores éticos e morais, sob o argumento de que a não satisfação das mesmas acaba por gerar exclusão social. Sobre o tema, eis a dicção de Hasson Sayeg (2004: P. 6)[27]:


“Com efeito, o aparecimento dessas necessidades vinculadas à integração social coage o seu portador a satisfazê-las, sob pena de, alternada ou cumulativamente, não ter acesso a bens necessários a sua própria subsistência, suportar prejuízo na sua qualidade de vida ou sofrer exclusão social.


Conseqüentemente, a não satisfação de suas necessidades importa ao consumidor constrangimento e infelicidade, sendo, para determinadas pessoas ou em alguns casos, tão intensos que, por vezes, levam os mais fracos de caráter ou os desesperados à prática de atos impensados ou delituosos.”


Diante disso, percebe-se, ainda, que o consumo desenfreado é passível de provocar desfechos ainda mais graves, a ponto de gerar ilícitos penais. Indaga-se, então: como pode o consumidor exigir seus direitos quando ao mesmo tempo viola regras de cidadania? Como é possível invocar expressões como direitos transindividuais e direitos difusos, se ele próprio degrada o meio-ambiente, um bem jurídico cuja preservação se destina a garantir sua fruição pelas futuras gerações? Qual é a intervenção mais eficaz para conter o massacre publicitário?


García Canclini (2004)[28], em conferência na 4a. Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes, afirmou estar a juventude influenciada pela “cultura do instantâneo”, assinalando, ainda, que a cultura no mundo continua sendo fabricada pelos EUA, em que pese o crescimento da produção cultural e da mídia em diversos países.


E o Brasil não fica fora. A cultura brasileira de consumo é cópia fiel do modelo americano. Temos uma “TV” cuja programação nada tem de oferecer de relevante, principalmente para as crianças, conforme já afirmara Canclini.


No caso do Brasil, outra característica marcante da publicidade, na dicção de Miguel Reale, diz respeito à forma como a mesma é apresentada, ou seja, aos berros, remontando nossa péssima tradição radialista. Outro traço interessante é que esse tipo de publicidade geralmente é direcionado às camadas mais populares da sociedade, pois é possível notar, em relação à classe mais alta, que a publicidade de produtos a elas destinados é mais sutil e, relativamente à classe “A”, sequer existe publicidade de produtos, posto que se mostram como consumidores diferenciados, cuja qualidade dos produtos até mesmo dispensa apresentações. Isso nada mais é do que a prova cabal de como a publicidade se vale do nível cultural das diferentes classes de consumidores, e é por isso que a educação para o consumo deve se fazer mais presente do que nunca nesse mundo globalizado, dominado pela tecnoestrutura.


Só o consumidor esclarecido saberá evitar produtos e serviços prejudiciais à sociedade, como os que utilizam mão-de-obra infantil ou que ameaçam o meio ambiente. Ele poderá, então, usar o seu poder de compra não apenas para garantir a qualidade dos produtos e serviços, mas, principalmente, para redirecionar os investimentos privados de forma a garantir mais qualidade de vida para todos[29].


3. Legitimação estatal para a tutela do consumo de massas


É cediço que o objetivo maior do Estado é a consecução do Bem Comum. Mas, o que vem a ser o bem comum? Henry Batiffol tece a seguinte consideração:


“Se o direito é proposto em nome da sociedade e deve por isso de início, servir à vida social, para que a sociedade exista, não se pode negar, que, na concepção mais difundida, a vida social não constitui um fim em si, e que a pessoa é um valor mais elevado – qualquer que seja a explicação que se dê – deve encontrar o seu florescimento na vida em sociedade. O direito deve levar em conta essa finalidade da sociedade. Muito mais do que o bem próprio e intrínseco dessa última. Se a sociedade concede benefícios a um número mais ou menos significativo de cidadãos, mas ao preço da opressão de outros, já não se pode falar de um bem comum, pois a sociedade não é mais de todos.”


Ronald Dworkin possui semelhante opinião, sustentando que os direitos naturais ou morais possuem sua razão de ser na proteção que prestam ao indivíduo, ainda que “against the majority”, uma vez que existem direitos e liberdades que desempenham um papel tão relevante para a Humanidade que não podem estar submetidos a decisões e vontades políticas. Em evidente polêmica com a visão utilitarista, a análise dworkiniana advoga que quando alguém tem um direito básico, o governo não poderá negá-lo ainda que em nome de um “suposto” interesse geral.


Contudo, o próprio Batiffol nos fornece a solução para tal impasse, consignando que “uma solução simples seria a do minimum, ou seja, exigindo apenas o estrito necessário ao estabelecimento das relações sociais, a lei estaria certa de impor somente o que é de interesse de todos”. 


Com vistas no Bem Comum é que podemos afirmar que a atividade de consumo não se exaure na clássica cadeia de produção. Gera, outrossim, conseqüências diversas que extravasam o mero ciclo econômico. Alguns exemplos a serem citados, dentre os mais conhecidos, estão no aumento da violência, a poluição e o desperdício de recursos naturais, entre outros. Estes têm sido objeto de inúmeras campanhas de conscientização por parte do Poder Público e da sociedade civil, mas, certamente, esmiuçar estas colocações requer um trabalho específico, não sendo objeto desta monografia. Entretanto, procurar-se-á abordar alguns aspectos gerais sobre o assunto, de forma a ilustrar os instrumentos de que o Estado dispõe para limitar o consumo como liberdade individual, em prol da coletividade.


Nesse aspecto, destaque-se que o constitucionalismo brasileiro agasalhou os direitos sociais, aos quais ofereceu especial proteção. O conceito desses direitos é dado por José Afonso da Silva (1997: p. 277):


“Podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o eu, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício da liberdade.”


Vislumbra-se, dentro desse conceito, como uma das formas hodiernas de prestação indireta proporcionada pelo Estado, dentro do modelo de Estado Democrático de Direito, o estimulo à criação das OSCIP’s (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), importante instrumento de cidadania consagrado pela Lei nº 9.790/99. Dentre aquelas cujos objetivos se relacionam de forma direta com a questão do consumo, temos, por exemplo, a criação de OSCIP’s com vistas à defesa do meio-ambiente, da ética, da cidadania, dos planos de saúde, do desenvolvimento de tecnologias alternativas e jurídicas, estas últimas destinadas à defesa do consumidor[30]. O exemplo acima é, senão, uma das manifestações do disposto no art. 4º , II, b, do CDC, in verbis:


“Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transferência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:


(omissis)


II – ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor;


a) por iniciativa direta;


b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas.”


Sobre o tema, frisou o insigne magistrado do TJRJ, Werson Rêgo[31]:


“A atuação do Estado, vem conferir efetividade aos princípios e objetivos traçados pelo legislador consumeiro, no que está juridicamente amparado, nos termos do artigo 4.º, inciso II, da Lei n.º 8.078/90, que prevê entre os princípios da Política Nacional das Relações de Consumo a ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor”.


Ademais disso, nunca é exaustivo lembrar que o Código de Defesa do Consumidor é integrado por normas jurídicas de ordem pública e interesse social.”


A grande dificuldade em tutelar todos os aspectos da relação de consumo reside no fato de existirem, aí, fatores legais e morais. De um lado, o diploma consumerista agasalha a proteção do consumidor frente ao fornecedor; de outro há o dever de colaboração cidadã para a consecução de uma sociedade, onde as liberdades individuais hão de ser mitigadas a fim de que se estabeleça um denominador comum de convívio sadio.


Ives Gandra da Silva Martins Filho[32] assevera:


“Para fundamentar qualquer teoria social, é peça de fundamental importância o Princípio do Bem Comum. Ao contrário do que se possa pensar, não é um princípio meramente formal ou demasiadamente genérico e teórico, sem conteúdo determinado, mas um princípio objetivo, que decorre da natureza das coisas e possui inúmeras conseqüências práticas para o convívio social.”


E arremata, citando a lição de Alceu Amoroso Lima:


“A alma do Bem Comum é a solidariedade. E a solidariedade é o próprio princípio constitutivo de uma sociedade realmente humana, e não apenas aristocrática, burguesa ou proletária. É um princípio que deriva dessa natureza naturaliter socialis do ser humano. Há três estados naturais do homem, que representam a sua condição ao mesmo tempo individual e social: a existência, a coexistência e a convivência. Isto vale para cada homem, como para cada povo e cada nacionalidade.”


Um dos grandes problemas que a sociedade vivencia, na seara ética, reside, como já explanado anteriormente, na assimilação das informações que nos são passadas. O indivíduo sabe que atitudes devem ser observadas no dia-a-dia para que se logre êxito na construção de uma sociedade mais justa, mas lhe falta a prática ou abstenção desses atos.


Aristóteles, em sua Ética a Nicômacos, balizava:


“As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as – por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas tocando cítara, da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente.”


Há que se ponderar, evidentemente, acerca da potencialidade ofensiva que determinadas condutas ofereçam a um bem jurídico. Naturalmente, a vida em sociedade é eivada de alguns riscos, alguns deles permitidos, e outros proibidos. Os primeiros recebem uma tutela mais branda, na esfera extrapenal, na medida em que as respectivas leis asseguram a repressão adequada a determinadas ofensas, e os últimos uma tutela mais severa, objeto do Direito Penal, tendo em vista as ofensas mais graves a bens jurídicos mais relevantes.


A cidadania foi alçada como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, explícita no art. 1º, II da Carta Maior. Os constitucionalistas a concebem como qualificadora dos participantes na vida do Estado, com vistas à integração social, por meio da prevalência da vontade popular, em conexão com os direitos políticos (art. 14) e com o conceito de dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), com os objetivos da educação (art. 205), como base essencial do regime democrático (José Afonso da Silva, 1997: 108).


Mas, qual é a vontade popular hoje? Onde se situa a dignidade dos demais indivíduos perante a potencialidade danosa das condutas de alguns, ou seja, que instrumentos a coletividade dispõe para reprimir tais condutas? Ou seria a própria coletividade a causadora desses males que atingem a sociedade de consumo?


José Afonso da Silva, sobre os objetivos das constituições ao tratarem de tal tema, proclama:


“Ora, uma constituição não tem que fazer declarações de deveres paralela à declaração de direitos. Os deveres decorrem destes na medida em que cada titular de direitos individuais tem o dever de reconhecer e respeitar igual direito do outro, bem como o dever de comportar-se, nas relações inter-humanas, com postura democrática, compreendendo que a dignidade da pessoa humana do próximo deve ser exaltada como a sua própria.”


E vislumbra, ainda, o grande problema da tutela das liberdades individuais em relação aos direitos coletivos: “Na verdade, os deveres que decorrem dos incisos do art. 5º, têm como destinatários mais o Poder Público e seus agentes em qualquer nível do que os indivíduos em particular”.


Diante disso, somente uma afirmação parece-nos mais adequada a solucionar a questão: a educação, nesse momento, seria a única forma de despertar a consciência ética a fim de garantir a sobrevivência da tecnoestrutura.


3.1 O Poder Judiciário


Para que o Estado realize suas funções de forma a garantir a democracia no Estado Democrático de Direito, faz-se necessária a harmonização e independência de seus três poderes, isto é, Executivo, Legislativo[33] e Judiciário. Tal decorre da necessidade de controle do poder pelo próprio poder, derivado do sistema de freios e contrapesos (checks and balances), “importado” do direito norte-americano.


O Poder Judiciário é principal e tradicionalmente caracterizado como instituição competente para composição de conflitos de interesse. No entanto, devido ao atual contexto social, a magistratura brasileira tem tentado se sub-rogar no desempenho de funções estranhas às de sua competência estrita, com o fim de realizar efetivamente a justiça social, cumprindo, assim, às diretrizes traçadas pelo Estado Democrático de Direito, em resposta ao individualismo que dominou o pensamento do séc. XIX. Garcia de Lima (2002) proclama o atual momento como “a era do Judiciário”. Em ensaio ao Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG)[34], o eminente magistrado registrou:


“Da Ética individualista, vigente no século XIX (Liberalismo Econômico), passamos contemporaneamente a prestigiar a Ética de conteúdo social (Estado Social e Democrático de Direito). Além dos valores atinentes ao indivíduo (vida, liberdade, propriedade etc.), relevamos valores referentes a toda comunidade (por exemplo, saúde, educação, previdência e assistência social, assistência à criança, ao adolescente e ao idoso, proteção ao meio ambiente e aos consumidores, cultura, desporto, lazer etc.).”


Dayse Coelho de Almeida assenta:


“(…) a globalização, na sua vertente mais atual, tem se mostrado um fator de desequilíbrio e até mesmo um empecilho à concretização da democracia, porque retira a soberania dos Estados e utiliza-se de formas sofisticadas de desmantelo das estruturas que permitem a soberania popular, base do modelo democrático[35].”


Assim sendo, mais do que nunca, a função do juiz, como “administrador” das tensões sociais, emerge de forma destacada.  Já dissemos, anteriormente, que o fim do Estado é a consecução do bem comum. Vejamos o que diz o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil:


“Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”


Desse modo, afasta-se, por exemplo, a clássica associação do Direito Administrativo como disciplina a estudar as funções do Poder Executivo, pois observar o bem comum, foi tarefa também incumbida aos magistrados. É o que se tem chamado de Administração Pública Gerencial.


Na seara consumerista, esse poderoso artigo da LICC há de ser observado veementemente, uma vez que o paradigma sócio-econômico contemporâneo reclama uma tutela enérgica por parte dos juízes em relação ao poderio das grandes corporações. Não devem, os juízes, esquecerem-se de que o Código de Proteção e Defesa do Consumidor é um diploma cujas normas são de ordem pública e interesse social (art. 1º), havendo, portanto, um liame entre este artigo e o da LICC.


Uma das atuais feições do Direito no século XXI pode ser observada em sua principialização. A Constituição Federal de 1988 é eminentemente principiológica, assim como o próprio CDC.


Paulo Bonavides (1998: 228) nos fornece a noção de princípio como sendo “onde designa as verdades primeiras”. Todavia, a maioria da doutrina pátria adota o conceito oferecido pelo conspícuo Celso Antônio Bandeira de Mello (1980: 230), para quem princípio é, por definição:


“(…) mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.”


Reale Júnior, com acerto, assenta que a atual conjuntura social é uma das responsáveis pela crise vivenciada pelo Judiciário, salientando que “o clima espiritual de nosso tempo, de consumismo desenfreado, a constante convicção da impunidade no Brasil, apesar de tantos escândalos denunciados e apurados contribuem mais”[36], consignando, além disso, a má formação dos profissionais de Direito:


“É preciso dar mais atenção à teoria geral do Direito, à filosofia do Direito, à sociologia do Direito. O problema maior é nesse campo: os juízes não têm esse conhecimento. O nível caiu muito. O juiz hoje é um especialista de manuais porque os bacharéis são assim, as faculdades têm formado gente assim. O juiz não pode apenas fazer concurso. É fundamental que ele tenha, a meu ver, um tempo anterior de prática na área jurídica, como advogado, promotor, defensor público, para sentir o que é a defesa dos interesses desatendidos pretendidos à Justiça. Até para baixar um pouco a crista do jovem, sabedor dos alfarrábios, que acaba de assumir o posto de juiz. Seria interessante que os juízes aprovados num primeiro concurso fizessem um curso de juiz, como acontece com os diplomatas no Itamaraty. Para quebrar a noção de que o juiz é Deus. Especialmente os jovens têm essa arrogância de ditar a justiça. Ao longo do tempo, o juiz vai vendo que também está sujeito a problemas, e vai quebrando a sensação de onipotência. Isso é fundamental.”


A necessidade de um Judiciário mais forte e atento aos clamores sociais é defendida por Silva de Souza[37]:


“É lugar comum qualificar, às vezes até com alguma razão, o Judiciário de lento, ineficaz, burocrático e conservador. Apesar disso é cada vez mais intensa a judicialização dos conflitos de interesses individuais e coletivos. Na mesma proporção em que crescem as críticas ao Judiciário, surpreendentemente aumenta a busca de tutela jurisdicional e deposita-se na sua atividade a esperança de solução para problemas sociais de grande complexidade. É uma contradição instigante, mas, lógica e praticamente, quase inexplicável. Relevante, do ponto do vista do Ministério Público, não é o crescimento quantitativo das demandas judiciais tradicionais, isto é, aquelas de cunho individualista, acréscimo que pode ser atribuído diretamente ao aumento da população, mas sim o notável incremento das demandas de cunho coletivo, destinadas à tutela de direitos ou interesses de natureza transindividual.


São as ações movimentadas com a finalidade de assegurar efetividade a direitos ou interesses de feição difusa ou coletiva, aquelas que expõem mais abertamente as deficiências e as inadequações do Poder Judiciário, da mesma forma como estão exigindo do Ministério Público complexas adaptações e transformações ainda não concluídas. Aliás, a circunstância de servirem de instrumento para a participação popular através da Justiça e, portanto, documentarem, por um lado,um novo modo de expressar a cidadania e, por outro, demandarem dos magistrados uma conduta sem paradigma anterior, já é suficiente para provocar interesse e inquietação. Este é o aspecto central que considero relevante para uma reflexão do Ministério Público sobre a administração da Justiça, considerado o termo “administração” em sentido amplo. É certo que, pelo menos em parte, a abordagem escolhida pode desbordar dos limites estritos da temática do congresso, mas a presença de magistrados, advogados e membros do Ministério Público cria o ambiente propício para que seja enfrentada.”


Uma das posições mais instigantes em relação à morosidade do Judiciário foi abordada pelo professor Paulo Maximilian em aula para a 1a. turma de pós-graduação da Universidade Estácio de Sá em Juiz de Fora-MG. Explanando acerca da lei que instituiu o tempo máximo de 15 minutos de permanência nas filas das instituições bancárias, indagou se o Poder Judiciário estaria apto a julgar tais instituições no pólo passivo das lides, pelo descumprimento da respectiva lei, ao mesmo tempo em que faz com que seus jurisdicionados esperem horas a fio por audiências, as quais chegam a atrasar por mais de uma hora.


A rigor, entendemos ser impossível nos dissociarmos de tal raciocínio, lembrando, para tanto, em breve parêntesis, do discurso proferido pelo insigne professor e magistrado Werson Rêgo, em lição para a mesma turma, ao se reportar à doutrina de Gandhi. Conta, a história, que o célebre guru foi procurado pela mãe de uma criança aficcionada por doces, e que tinha o sábio pensador como seu ídolo. Desejando que seu filho cessasse com o consumo da guloseima, procurou o grande pensador a fim de que o mesmo o orientasse acerca dos males causados pelos doces, narrando-lhe o fato, sendo que este, após ouvir com atenção, pediu-lhe para que voltasse em quinze dias. Sem entender nada, mas confiante de que o sábio apresentaria a solução para o problema, voltou, então, depois de transcorrido o prazo ora fixado. Perante o mestre, este, então, sugeriu ao garoto que parasse de comer doces. Sem entender nada, a preocupada mãe indagou ao filósofo: Mas, por que o senhor não disse isso ao meu filho na primeira vez que estivemos aqui? Em resposta, o grande conselheiro proferiu: Simplesmente porque há 15 dias eu também comia doces. Então, como eu poderia aconselhar alguém a abandonar um hábito que eu mesmo cultivava?!  


Ou seja, onde se situa a ética do Poder Judiciário, quando ele próprio promove atrasos no desempenho de suas atividades? É um caso a ser refletido pelos magistrados na aplicação de leis como esta, que é intolerante em relação aos atrasos na prestação de serviços bancários, pois, como bem lembrou o prof. Paulo Maximilian, nunca nos importamos de esperar incansavelmente na fila do show de nosso artista preferido, do cinema, do embarque em aeroportos etc. Por que, então, nos importamos tanto em esperar mais de 15 minutos na fila do banco?


Mazelas à parte, fato é que o Poder Judiciário tem se mostrado positivamente receptivo à legislação consumerista. Percebe-se, nos tribunais pátrios, um aumento sensível no número de decisões embasadas nos dispositivos do CDC, em resposta àqueles que tentam lhe “amesquinhar o alcance e aplicação” (Werson Rêgo: 2002). Na esfera dos tribunais superiores, o ex-Ministro do STJ, Ruy Rosado de Aguiar, foi um dos grandes responsáveis pela difusão dos ideais traçados pelo legislador consumeiro, o que acabou por influenciar, em maior ou menor grau, os tribunais inferiores.


Recentemente, um dos maiores exemplos que se tem é dado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, através de seu presidente, Des. Sérgio Cavalieri Filho, o qual vem tratando com mãos-de-ferro as questões levadas à apreciação daquela corte. Esperamos, assim, assistir ao vaticinado pelo notável Kazuo Watanabe:


“As normas materiais mais severas e mais apropriadas à regulação das relações de consumo certamente influirão na redução dos conflitos de interesses em níveis mais aceitáveis e, por isso mesmo, apesar da facilitação do acesso à justiça, o número de demandas, com o correr do tempo, será inferior ao que é esperado pelos mais céticos e críticos da nova legislação. Para que isso efetivamente ocorra, porém, é necessário que a própria sociedade, principalmente por meio dos atores da relação de consumo, que são os consumidores e fornecedores, de um lado, e o Estado, direta ou indiretamente, por meio de seus órgãos e entidades autárquicas e paraestatais, de outro, compreendam, aceitem e efetivamente ponham em prática os objetivos estabelecidos no Código.”


 Por derradeiro, em relação ao Judiciário, frise-se que o Código de Defesa do Consumidor é um sistema elaborado com a utilização de uma técnica legislativa de inserção de cláusulas abertas, inspirado nos modelos alemão e francês. Por isso mesmo, conforme afirmou Nelson Nery Júnior[38], é uma legislação que dificilmente envelhecerá, motivo pelo qual a magistratura deve se orgulhar de ter em mãos um poderoso instrumento de garantia da cidadania e de justiça social, em resposta ao “oitocentismo” que ainda permeia a mentalidade judiciária no Brasil.


3.2 O Ministério Público


O Ministério Público foi alçado como função essencial à Justiça, por força do art. 127 da Carta de 1988, caracterizado como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. É órgão de suma importância na defesa dos direitos do consumidor, posto que é legitimado à promoção do inquérito civil e da ação civil pública, uma vez que aqueles direitos se revestem das características elencadas no art. 129, III, in fine, da Constituição Federal (direitos difusos e coletivos).


No âmbito das normas programáticas do CDC, o art. 5º, II agasalhou a instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do MP, como instrumento à consecução da Política Nacional das Relações de Consumo, a fim de especializar e garantir efetividade na defesa dos direitos supra mencionados.


3.2.1 Direitos Difusos


Para uma melhor compreensão do que são esses direitos, imperiosa, entretanto, se faz uma breve explanação do que estes vêm a ser. O próprio Código de Defesa do Consumidor nos fornece o conceito de interesses ou direitos difusos no art. 81, I, como sendo aqueles como “os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.


A fim de melhor visualizar, recorrer-se-á ao exemplo fornecido por Paulo Valério Dal Pai Moraes no 1º Seminário Internacional de Direito do Consumidor, realizado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) entre 09 e 12 de agosto de 2004. Em palestra proferida no referido evento, o ilustre representante do MP do Rio Grande do Sul mencionou o caso da veiculação publicitária prevista no art.37, § 2º do CDC,[39] a qual se aproveitava da deficiência de julgamento das crianças. Na oportunidade, narrou que uma consumidora, no caso a mãe de uma menina, procurou o auxílio do MP, objetivando a proibição da veiculação publicitária, uma vez que sua filha se dispôs a fazer o que a propaganda sugeria. Dias após o início da apuração do fato, a mesma senhora que havia recorrido ao órgão ministerial voltou, com vistas a desistir da ação, uma vez que a mentora da publicidade havia entrado em contado com a mesma e lhe oferecido uma considerável soma em dinheiro para que desistisse da empreitada. Em resposta, o Dr. Paulo Valério explicou que tal seria impossível, uma vez que se tratava de um direito difuso, ou seja, não se sabia quantos consumidores haviam sido atingidos pela publicidade em questão, ou seja, eram pessoas indeterminadas e ligadas por uma circunstância de fato.


3.2.2 Direitos Coletivos


Por sua vez, os direitos coletivos possuem as mesma características dos anteriormente mencionados, todavia com a ressalva de, desta vez, haver a possibilidade de determinação dos titulares como pertencentes a um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base (art. 81, II). Como exemplo, podemos citar o conjunto de alunos de uma determinada escola. Ou seja, é uma coletividade expressa em um certo número de indivíduos. In casu, o vínculo jurídico entre estes indivíduos poderia vir a ser a cobrança abusiva das mensalidades escolares.


3.2.3 Interesses ou direitos individuais homogêneos


A Constituição Federal de 1988, todavia, foi tímida ao tratar dos interesses cuja defesa incumbe ao Ministério Público, deixando de fora os interesses ou direitos individuais homogêneos. O que caracteriza esses direitos ou interesses é a origem comum da situação fática (um contrato, por exemplo).


O diploma consumerista tratou da questão de forma expressa, no art. 82, I, in verbis:


“Art. 82 Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:


I – o Ministério Público.”


Surge, então, discussão acerca da legitimidade ministerial para a defesa desses direitos, uma vez que a Lei Maior não previu tal possibilidade.


Em consulta à jurisprudência do STJ, é possível verificar que existe divergência quanto à legitimidade do MP para as ações dessa natureza. Alguns de seus julgadores, como a Ministra Denise Arruda, entendem ser o MP parte ilegítima para tal class action, ao argumento de que direitos dessa natureza são divisíveis e identificáveis, portanto passíveis de serem defendidos por seus titulares.


De seu turno, Ministros como Barros Monteiro, Castro Meira e, em especial, a Ministra Nancy Andrighi, que entende tais direitos como relevantes por si só, defendem o MP como legitimado à propositura de ações coletivas que objetivem a defesa dos mesmos.


Filiamo-nos a esta última corrente, até mesmo em virtude da interpretação do art. 127 da Constituição Federal, quando incumbe ao Ministério Público a defesa dos interesses sociais. Ora, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, logo em seu art. 1º se estabelece como diploma de ordem pública e interesse social. Logo, o órgão ministerial é incontroversamente legitimado para a defesa dos direitos individuais homogêneos.


Nelson Nery Júnior[40] baliza:


“ (…) as normas do CDC são, ex lege, de ordem pública e interesse social (art. 1º, CDC). Ao definir o perfil institucional do Ministério Público, o art. 127 da CF diz ser o parquet instituição que tem por finalidade a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, o ajuizamento, pelo Ministério Público, de ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos tratados coletivamente está em perfeita consonância com suas finalidades institucionais, sendo legítima a atribuição, ao Ministério Público, dessa legitimidade para agir, pelos arts. 81 e 82 do CDC, de conformidade com os arts. 127 e 129, IX, da CF.”


Impende lembrar, ainda, que o mais poderoso dos instrumentos utilizados pelo MP na defesa dos direitos do consumidor reside na Lei nº 7.347/85, Lei da Ação Civil Pública, a qual, alias, também prevê a defesa dos direitos individuais, sendo que o art. 1º, II, faz expressa menção ao consumidor como sujeito amparado pelas disposições da nominada lei, sendo que o art. 5º traz o MP como legitimado à propositura das ações civis públicas, quer seja como parte, quer seja como fiscal da lei (art. 5º, § 1º). 


3.3 PROCONs e Associações de Defesa do Consumidor.


Assim como o Ministério Público, a assistência jurídica gratuita e integral ao consumidor está prevista no art. 5º, I do respectivo código.


Na seara administrativa, importantíssimo papel tem sido desempenhado pelos PROCONs, na defesa dos interesses dos partícipes das relações de consumo.


A importância que se tem dado à atuação desses organismos é tão grande que, recentemente, em Juiz de Fora-MG, o antigo PROCON municipal, hoje transformado em Agência de Proteção e Defesa do Consumidor, com natureza de Autarquia (Lei nº 10.589/93), é o primeiro ente dessa natureza, no Brasil, com as atribuições voltadas à defesa do consumidor, medida que lhe conferiu maior autonomia no desempenho das respectivas funções.


Os instrumentos de que dispõem os órgãos da Administração Pública para garantir a efetiva proteção e defesa dos consumidores estão elencados no art. 55 usque 60 do CDC. Todavia, é possível notar que ainda existe uma dificuldade muito grande por parte desses organismos no que se refere à implementação das medidas necessárias ao regular desempenho da atividade de fornecimento no mercado de consumo. Freqüentemente dependem do auxílio de órgãos descentralizados da Administração Pública, muito embora estes órgãos desempenhem funções afins, como os entes fiscalizadores, por exemplo. O ideal, entretanto, seria que os PROCONs dispusessem de pessoal próprio, treinado especificamente para tais funções, ou seja, que se familiarizassem com os dispositivos do código.


Para tanto, o CDC, em seu art. 56 e incisos, dispõe de um rol de sanções administrativas postas à disposição do Poder Público com o fito de coibir as práticas contrárias às diretrizes do codex. Conforme o eminente Zelmo Denari, a Lei 8.078/90 classifica as sanções administrativas em três modalidades: a) pecuniárias – representadas pelas multas, em razão do inadimplemento dos deveres de consumo; b)objetivas – que atingem os bens ou serviços disponibilizados no mercado; c) subjetivas – aquelas que atingem o próprio direito de exercício da atividade empresarial.


 Outro dado importante diz respeito à solução de demandas consumeristas no âmbito administrativo, o que reduz, via de conseqüência, a provocação jurisdicional, bem como a sobrecarga do MP, uma vez que, são freqüentes as representações encaminhadas ao órgão ministerial.


A divulgação de materiais objetivando a auto-proteção do consumidor também tem garantido presença nos programas desenvolvidos pelos PROCONs, atendendo ao disposto no art. 6º, II do CDC. Diversos são os programas junto a escolas, empresas, e ao público em geral, alertando o consumidor acerca dos benefícios de um consumo sustentável, de produtos e serviços que atentem contra sua saúde e segurança, e garanta sua livre escolha. Como bem lembrado por José Geraldo Brito Filomeno, não só os órgãos públicos possuem tal incumbência, mas também a iniciativa privada e, assim sendo, não raras as parcerias entre aqueles órgãos, empresários e associações afins, em cumprimento ao binômio Estado/sociedade civil.


Em São Paulo, a Fundação Procon vem promovendo, incansavelmente, uma série de eventos, com temáticas envolvendo desde os direitos do consumidor torcedor até as relações de consumo e a discriminação racial, permitindo-nos vislumbrar a dimensão alcançada por relações dessa natureza.


Por sua vez, as Associações de Defesa do Consumidor têm surgido de forma crescente. Como mencionado anteriormente, a Lei 9.790/99, que regula a criação de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) veio a instituir outro importante instrumento de atuação para a defesa dos consumidores. Nada menos do que 46 associações, cujas finalidades se identificam em maior ou menor grau com os direitos do consumidor, estão dispostas no rol do Ministério da Justiça, em sua esmagadora maioria com vistas à tutela de direitos transindividuais.


Augusto de Franco[41] (2002), sobre a importância da Lei nº 9.790/99 esclarece:


“A Lei das OSCIPs parte da idéia de que o público não é monopólio do Estado. De que existem políticas públicas e ações públicas que não devem ser feitas pelo Estado, não porque o Estado esteja se descompromissando ou renunciando a cumprir o seu papel constitucional e nem porque o Estado esteja terceirizando suas responsabilidades, ou seja, não por razões, diretas ou inversas, de Estado, mas por “razões de Sociedade” mesmo.”


Outrossim, mister destacar a legitimidade das associações para a representação dos associados, garantida pelo art. 5º, XXI da Constituição Federal, confirmando, assim, a vocação constitucional presente no art. 82, IV do CDC, ao conferir legitimidade concorrente às associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo código, sendo que o legislador consumeiro, a fim de ampliar o acesso à justiça, facultou ao juiz, no § 1º do mesmo artigo, a dispensa do requisito de pré-constituição associativa quando restar verificado relevante interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou a relevância do bem jurídico envolvido.  


Ainda nos domínios do Poder Executivo, a representação dos consumidores, por meio das respectivas associações, conta ainda com o auxílio do Ministério da Justiça, através do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor da Secretaria de Direito Econômico. Tal decorre do art. 106, II do CDC, que lhe atribui àquele órgão competência para conhecer de consultas, reclamações ou sugestões apresentadas por entidades representativas ou pessoas jurídicas de direito público ou privado.  Conforme destacado por Daniel Roberto Fink, o nominado Departamento “é o destinatário natural de dúvidas sobre relações de consumo, quer específicas, como casos concretos, quer gerais, como execução de determinadas diretrizes traçadas. É também responsável pelo encaminhamento da solução de conflitos de consumo noticiados por denúncias de interessados”.


Assim, fica evidente a busca pelo cumprimento dos ideais aspirados por um Estado garantista, mesmo que ainda a passos lentos.


Conclusão


Por todo o extrato da pesquisa realizada, concluímos que a cultura de consumo de massas tem demonstrado ser um verdadeiro “câncer” para a sociedade.


Embora se tente somar esforços para a difusão de informações visando a conscientização da população acerca dos benefícios do consumo sustentável, a mesma ainda carece do sentimento ético indispensável a tal empreitada, sem distinção de classe social e de nível de instrução. Ou seja, em que pesem os direitos assegurados aos consumidores com o advento da Lei nº 8.078/90, de seu turno estes pouco têm se preocupado em adotar um comportamento afinado com os clamores sociais, revelando, assim, patente desequilíbrio nas relações de consumo no que se refere aos deveres de cidadania.


Daí se extrai a dificuldade de tutela das relações de consumo numa perspectiva global, vez que insertos, aí, aspectos legais, portanto passíveis de regulação, mas também éticos, dependentes de auto-regulação por cada indivíduo componente do seio social.


Dentre as propostas a liquidar a cultura do material, em detrimento do moral, o moderno binômio Estado/sociedade civil talvez seja o mais promissor e eficaz para tanto.


O Judiciário, ao que parece, vem absorvendo os ideais delineados pelo legislador consumeiro, embora, a nosso ver, ainda timidamente, e em desproporção aos esforços empreendidos pelo Ministério Público, pelo Executivo, através dos respectivos órgãos da Administração, e pelas Associações de Defesa do Consumidor.


Com rara felicidade, Fábio Konder Comparato vaticinou:


“O combate decisivo será travado não por meios militares nem mesmo, como vulgarmente se pensa, no campo econômico, mas no terreno das idéias, dos valores e das justificações éticas. Dominador nenhum, em nenhum momento da história, sobreviveu sem alimentar nos súditos o sentimento da legitimidade do seu mando ou, pelo menos, da inutilidade da revolta. ‘O forte’, disse lucidamente Rousseau, ‘não é nunca bastante forte para estar sempre no poder se não faz de sua força um direito e, da obediência, um dever’”.


É, pois, o momento de a sociedade refletir sobre os rumos que pretende tomar, a fim de efetivamente formar os cidadãos moralmente próximos do ideal.


 


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Notas:

[1] Citado por Joan Robinson em seu livro Liberdade e Necessidade – Rio de Janeiro: Zahar Editores: 1971, pág. 89.

[2] The Political Writings of Thomas Jefferson. Coleção Os Pensadores, vol. XXIX, São Paulo: Abril Cultural, 1973, pág.12.

[3] Revista Vida Simples / março de 2005, ed. nº 26, pág. 54.

[4] O Direito Administrativo e o Poder Judiciário. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, pág. 38.

[5] Citado por Ives Gandra da Silva Martins Filho, em artigo intitulado: Reflexões sobre a Liberdade, publicado pela Revista de Direito Público / ano 1 – nº 4 – abr, maio, jun / 2004.

[6] Op. Cit., págs. 35 – 37 e 47.

[7] Apud Arruda Alvim. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, pág. 31.

[8] Em sua obra Direito e Utopia, o autor utiliza-se do exemplo citado em suas considerações acerca da violência institucionalizada, onde não se consegue identificar imediatamente as características clássicas da violência (coação física), tomando como base as omissões e os interesses que movem os Poderes Estatais.

[9] Entrevista ao “Jornal do Advogado”, OAB-MG, Belo Horizonte, edição  de  janeiro  de  1998,  p. 20, por

  ocasião do I Congresso Brasileiro de Democracia e Cidadania. Apud Rogério Medeiros Garcia de Lima . Neoliberalismo, Justiça e Governabilidade.

[10] Em entrevista ao site Direitos e Desejos Humanos no Ciberespaço, em 09 de março de 2001. In www.dhnet.org.br.

[11] Op. Cit., pág. 2.

[12] Recentemente o Ministério da Justiça, através do Portal do Consumidor, divulgou uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) sobre o tabagismo, a qual apurou a deficiência no crescimento de crianças expostas ao fumo, tanto no período de gestação, como também no ambiente doméstico, após o nascimento.

[13] Op. Cit., pág. 21.

[14] Em apresentação à obra do eminente juiz do TJRJ – Werson Rego.

[15] Direito e Utopia. São Paulo: Editora Acadêmica, 1990.

[16] Em palestra proferida no dia 18 de outubro de 2005, em recente simpósio realizado na cidade de Juiz de Fora – MG, intitulado: Direito Civil – Novos Caminhos. 

[17] Cf. Cláudia Lukianchuki, in www.cefetsp.br.

[18] Apud Gerson Pastre de Oliveira. In http://www.campus-oei.org/pensariberoamerica/colaboraciones12.htm.

[19] LASCH, Christopher. O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis. São Paulo: Brasiliense, 1986.

[20] Cf: Renata Maldonado da Silva. Consumo Comunicação e Cidadania, http://www.uff.br.

[21] Cf. Carlos Fontes. Trabalho e Tempos livres, in www.educar.no.sapo.pt.

[22] O Contexto Histórico da Defesa do Consumidor em Face do Abuso de Poder Econômico e sua Importância. Revista de Direito Internacional e Econômico. Ano II – nº 07 – abr, maio, jun/2004.

[23] Superendividamento: a proteção do consumidor de crédito em direito comparado brasileiro e francês. São Paulo: RT, 2002, pág 88.

[24] Revista Vida Simples – outubro/2005, 33a. ed.

[25] Em palestra proferida no simpósio: Direito civil – Novos Caminhos, em 20 de outubro de 2005, na cidade de Juiz de Fora-MG.

[26] Em debate na 1a. turma da pós-graduação em Direito do Consumidor da Universidade Estácio de Sá de Juiz de Fora-MG, o professor e magistrado do TJRJ, Werson Rêgo, se posicionou no sentido de que tal publicidade não feria o dispositivo ora em comento, haja vista a circunstância em que a publicidade geralmente se apresentava (manobras realizadas em local afastado da área urbana e, portanto, não oferecendo risco à segurança pública). Data venia, discordamos de tal posicionamento, e preferimos nos filiar à doutrina do eminente prof. José Geraldo Brito Filomeno que, lecionando para a mesma turma, quando questionado sobre o assunto, entendeu tal publicidade como atentatória à segurança do consumidor, uma vez que o dispositivo não fala em perigo à segurança coletiva, mas do próprio consumidor, pouco importando se este se encontre no meio de um deserto, ou em uma avenida movimentada.

[27] Op. Cit., pág 6.

[28] In www.midiativa.tv.

[29] In www.idec.org.br

[30] Dados do Ministério da Justiça, in http://www.mj.gov.br.

[31] In www.uj.com.br.

[32] O Princípio ético do bem comum e a concepção jurídica do interesse público. In www.jusnavigandi.com.br.

[33] Como dito anteriormente, um dos objetivos do presente trabalho é demonstrar os métodos mais eficazes a conter o consumismo em massa, motivo pelo qual preferimos deixar de abordar a função legislativa, porquanto as leis, enquanto mandamentos gerais e abstratos, carecem de efetividade enquanto não aplicadas. 

[34] In www.iamg.org.br.

[35] In www.uj.com.br.

[36] Em entrevista à revista Época, em matéria intitulada “Juízes sob controle”,

[37] Em painel do 1º Congresso Brasileiro de Administração da Justiça, realizado em Brasília entre 6 e 8 de dezembro de 2000, por intermédio do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. In www.cjf.gov.br.

[38] Em palestra proferida no Simpósio de Direito Civil – Novos Caminhos. Juiz de Fora

[39] Referiu-se à publicidade de um calçado infantil, promovido por uma famosa apresentadora de TV, onde uma criança se dirige até a cozinha de sua casa e deposita seu calçado velho dentro de um liquidificador, triturando-o, a fim de que sua mãe lhe comprasse um novo par, no caso aquele promovido pela propaganda.

[40] Código de Defesa do Consumidor – Interpretado pelos Autores do Anteprojeto. 1997. p. 785

[41] Conselheiro e Membro do Comitê Executivo da Comunidade Solidária.


Informações Sobre o Autor

Vitor Vilela Guglinski


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