A embriaguez ao volante e o “homicídio” do direito penal

Em que pese o homicídio se referir ao tipo penal referente ao ato de matar alguém, portanto aplicável somente a pessoas, permito-me a utilização da prosopopéia contida no título deste artigo para ilustrar que a mídia e a população, no momento em que pretendem a punição, a título doloso, dos motoristas alcoolizados que causam graves lesões a alguém ou mesmo a sua morte, estão, antes, verdadeiramente “matando” o Direito Penal.


Nos dias atuais, esse tipo de conduta tem sido alvo de discussão nos meios de comunicação, nas ruas e nos tribunais. Aliás, penso se o vocábulo “discussão” é o que deva ser efetivamente empregado ao caso, pois, a julgar pelas fortes pressões midiática e popular, parece-me que o assunto está verdadeiramente “decidido” na cabeça de muitas pessoas, dos jornalistas e, o que é pior, na cabeça de muitos aplicadores do direito, os quais, ao que parece, esqueceram (ou talvez sequer aprenderam) as bases teóricas do moderno Direito Penal, arduamente construídas ao longo dos séculos com o objetivo de estatuir um Direito Penal mais justo e humano, em contraposição aos regimes autoritários e violentos que permearam a humanidade durante os séculos das trevas.


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Em artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, no dia 15/09/2011 (http://www.conjur.com.br/2011-set-15/coluna-lfg-decisao-judicial-nao-ficar-sabor-populismo-penal), o insigne professor LUIZ FLÁVIO GOMES escreveu em sua coluna o texto intitulado Decisão não pode ficar ao sabor do populismo penal, em que analisa a recente decisão do STF, conduzida pelo ministro LUIZ FUX no julgamento do HC 107.801/SP, que desclassificou de doloso (dolo eventual) para culposo (culpa consciente) um homicídio cometido no trânsito por motorista alcoolizado. No artigo, o autor compara a jurisprudência pátria sobre o tema, colacionando posicionamento anterior do STJ, assentado no HC 199.100/SP, no qual restou decidida a competência do Tribunal do Júri para o julgamento da causa, por entender que o caso se amoldava à hipótese de dolo eventual, concluindo seu estudo no sentido do acerto da decisão do Pretório Excelso, que aplicou o direito conforme suas diretrizes teóricas.


O tema também foi objeto de estudo do eminente professor PIERPAOLO BOTTINI, no artigo intitulado Dolo eventual e culpa consciente em acidente de trânsito, publicado na mesma Consultor Jurídico, no dia 09/08/2011 (http://www.conjur.com.br/2011-ago-09/direito-defesa-dolo-eventual-culpa-consciente-acidente-transito), o qual asseverou em sua conclusão que:


“O espaço entre confiar e desejar separa o dolo eventual da culpa consciente. Não se nega a dificuldade de encontrar tais elementos no processo penal, mas se quisermos manter um conceito de delito relacionado com a intenção do agente e uma ideia de Direito Penal como um conjunto de normas motivadoras e não um instrumento de imputação aleatória de resultados, não devemos abrir mão dos aspectos subjetivos, que embora sutis e de difícil revelação, são a garantia de uma dogmática mais humana.”


  Aliado à corrente que entende que os delitos de trânsito se situam, em regra, no campo da culpa consciente, encontramos, também, severas críticas do não menos respeitável ROGÉRIO GRECO, que em seu Curso de Direito Penal – Parte Geral, dedicou algumas páginas à controvérsia envolvendo os delitos de trânsito, amparado nas lições de grandes mestres como NELSON HUNGRIA e ANDRÉ LUIS CALLEGARI[1] O nominado autor esclarece que a causa da mudança na mentalidade dos operadores do direito se relaciona com a expressão contida na segunda parte do inciso I do art. 18 do Código Penal, que considera dolosa a conduta quando o agente assume o risco de produzir o resultado. Colaciona, ainda, julgado da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, no Recurso em Sentido Estrito nº 189.655-3, julgado em 16/10/95, da relatoria do Des. Silva Pinto, em que aquele tribunal reconheceu a existência de dolo eventual na conduta do agente que, ao conduzir seu veículo em estado de embriaguez, causa acidente de trânsito com vítimas.


É possível perceber, então, que a doutrina penalista mais autorizada situa os crimes de trânsito na esfera da culpa consciente, salvo naqueles casos em que, como informa GRECO, reste provado que o agente ingeriu álcool ou substância análoga com o intuito de praticar o crime. Aí, sim, pode-se falar em conduta dolosa, o que, porém, é extremamente difícil de provar no caso concreto.


Expostos o problema e as respectivas posições doutrinárias que entendemos, data venia, sejam as mais corretas, indaga-se: por que, então, a mídia, a população e os tribunais (o que é pior) continuam a desejar a punição desse tipo de delito a título doloso? Será falta de informação ou simples vontade de colocar lenha em uma fogueira fadada à extinção?


Penso que a mídia, como formadora de opiniões, tem o dever inafastável de levar ao público informações corretas, imparciais e insentas. A todo o momento, os espaços destinados a matérias policiais, especialmente aqueles com maior apelo popular, na TV, nos jornais, nas rádios, na internet, enfim, em todo o tipo de mídia, querem impor, no grito, a punição severa dos motoristas incursos nesse tipo de infração, chegando a promover-lhes a execração pública, faltando somente dizer que sequer deveriam ser merecedores do direito de defesa.


É chegado o momento de se promover um debate mais conclusivo sobre os crimes de trânsito nos espaços midiáticos com maior apelo popular. É chegada a hora de os juristas mais autorizados irem à TV, às rádios, aos jornais, e explicar que o nosso Código Penal não adotou a teoria da representação, mas, sim a teoria da vontade e do assentimento, como explica GRECO que, na obra citada, traz o exemplo extremamente elucidativo, que merece transcrição:


“Imagine o exemplo daquele que, durante a comemoração de suas bodas de prata, bebe excessivamente e, com isso, se embriaga. Encerrada a festividade, o agente, juntamente com sua esposa e três filhos, resolve voltar rapidamente para a sua residência, pois que queria assistir a uma partida de futebol que seria transmitida pela televisão. Completamente embriagado, dirige em velocidade excessiva, a fim de chegar a tempo para assistir ao início do jogo. Em razão do seu estado de embriaguez, conjugado com a velocidade excessiva que imprimia a seu veículo, colide o seu automóvel com outro, causando a morte de toda a sua família. Pergunta-se: Será que o agente, embora dirigindo embriagado e em velocidade excessiva, não se importava com a ocorrência dos resultados? É claro que se importava.”


Penso que nossos estudiosos da área penal deveriam dedicar algum tempo a desenvolver uma didática acessível aos jornalistas e ao público leigo, reivindicando mais espaço para que possam esclarecer as minúcias teóricas do Direito Penal, de modo a arrefecer os respectivos ânimos e promover maior reflexão por parte dos destinatários da norma, que somos todos nós, enquanto componentes do corpo social.


É necessário esclarecer que o motorista que fere ou mata alguém no trânsito não deixará de ser punido, mas que assim será na forma da lei. E qual é a forma da lei? Ora, o motorista embriagado que causa um acidente será punido a título de culpa (culpa consciente), porém tendo sua pena agravada pela circunstância da embriaguez, nos termos do art. 61, II, “l” do CP. O § 3º do art. 121 do mesmo diploma legal prevê para o homicídio culposo a pena de um a três anos de detenção. Via de consequencia, um motorista que causar um acidente em estado de embriaguez suportará, dentro desse limite de um a três anos, previsto pela prática de crime culposo, uma pena maior do que a de outro motorista que não esteja sob o efeito de álcool ou substância análoga. Esse tipo de informação deve ser fornecida ao leigo!


Indo adiante, e reportando-nos ao exemplo fornecido por GRECO, referente ao motorista que causa a morte de toda a sua família, o § 5º do art. 121 é ainda mais elucidativo ao preceituar que “Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.” Sendo assim, punir esse motorista a título doloso é tornar a lei letra morta!


Ante o exposto, e com a devida licença dos que entendem o contrário, tanto os posicionamentos dos notáveis juristas nominados neste artigo quanto as decisões judiciais que punem os delitos de trânsito a título de culpa consciente, em especial a decisão do eminente ministro LUIZ FUX hão de ser festejados, porquanto estão de acordo com as teorias penalistas que orientam a legislação penal e tratam do dolo eventual e da culpa consciente. O fato de o motorista imaginar que pode causar um acidente fatal ao dirigir alcoolizado, por si só, não autoriza a concluir que age dolosamente. No dolo eventual há, mesmo que indiretamente, a aceitação do resultado lesivo. Na culpa consciente, mesmo prevendo que a lesão ou morte de outrem possa acontecer, o agente confia que tal não ocorrerá; confia em sua habilidade enquanto motorista, e, portanto não aceita o resultado. Tudo está no campo de aceitação do agente em relação a eventual resultado lesivo, decorrente de sua conduta (grifei). Não creio, sinceramente, que um motorista, por mais embriagado que esteja, aceite causar a morte de alguém somente para fazer valer seu direito de dirigir. Se tal ocorrer, deverá ser objeto de prova em processo judicial.


Por derradeiro, é perfeitamente compreensível que a população se sinta desprotegida em razão da diferença de tratamento dada pela norma em relação à capitulação de um delito como doloso ou culposo, o que não significa que o Direito Penal deva ser “assassinado” por meio de exceções descabidas, capazes de colocar suas diretrizes teóricas por terra, mormente pelas exaustivas pressões midiáticas hodiernamente assistidas, e exercidas por profissionais que desconhecem as peculiaridades do Direito.




Notas:
[1] In Curso de Direito Penal – Parte Especial, 11ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009, pp. 210-213.


Informações Sobre o Autor

Vitor Vilela Guglinski


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