Breves apontamentos sobre direito e moral em Habermas

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Resumo: o presente ensaio tem como objetivo apresentar àquele que se inicia no estudo do Direito uma gama de conceitos propedêuticos acerca da relação que se estabelece entre o Direito e a Moral, assinalando o problema da fundamentação do Direito a partir de Jürgen Habermas e apontar os delineamentos para a compreensão da Teoria do Discurso e do Princípio Democrático.


Palavras-chave: Direito – Moral – Teoria do Discurso – Jürgen Habermas.


Sumário: 1. Introdução; 2. A fundamentação do Direito: da Razão Prática à Razão Comunicativa; 2.1. Considerações introdutórias; 3. A fundamentação do Direito a partir da relação de Complementaridade entre Direito e Moral; 4. Considerações propedêuticas sobre a Teoria do Discurso; 5. Conclusão; Referências Bibliográficas


1. Introdução


o presente ensaio tem como objetivo, de maneira despretensiosa, apresentar àquele que se inicia no estudo do Direito uma gama de conceitos propedêuticos[1] sobre a relação que se estabelece entre o Direito e a Moral. Partindo do problema da fundamentação do Direito a partir de Jürgen Habermas, vamos estabelecer os delineamentos para a compreensão da Teoria do Discurso e do princípio Democrático.


Para tanto, partimos do pressuposto de que a evolução da Moral para um plano cultural acabou por relegar ao próprio autor do agir, o agir por dever. Assim, em face da fragilidade de uma Moral estruturada na personalidade, dependente das inclinações e interesses do indivíduo, o Direito se impõe e se institucionaliza. As normas de ação, por essa perspectiva, passaram, então, a ser regidas por comandos externos ao próprio indivíduo, o que o alivia, na medida em que ele “não precisa carregar o peso cognitivo da formação do juízo moral próprio” (HABERMAS, 1997).


Em contrapartida, essa cisão ocorrida entre o Direito e a Moral nos remete ao problema da fundamentação das normas jurídicas. A Filosofia do Direito, como proposta em Kant, foi o ponto de partida para a análise da validade do ordenamento jurídico na obra de Jürgen Habermas. Em obras anteriores à “Direito e Democracia, entre facticidade e validade,” Habermas defende uma relação de complementaridade entre o Direito e a Moral. Após 1992, Habermas abandona a razão prática e elabora sua Teoria do Direito à luz da razão comunicativa e do Princípio do Discurso, apontando para uma relação de co-originalidade.


2.  A fundamentação do direito: da razão prática à razão comunicativa


2.1 Considerações iniciais


 Antes de iniciarmos o estudo acerca da fundamentação do Direito é necessário perpassar alguns dos principais conceitos da teoria Kantiana que são extremamente valiosos para o entendimento do que se propõe trabalhar. Tentarei extrair-lhes seus significados, ainda que muito superficialmente, como uma etapa inicial a ser percorrida e superada, para então, passarmos à etapa seguinte.


Nesse sentido, é importante entender como Kant trabalha a idéia de Autonomia.


A idéia de Autonomia em Kant não se caracteriza pelo livre arbítrio de um indivíduo privado, mas sim, pela autodeterminação do ser humano. Contudo, Kant parte do indivíduo como ser racional e moral para ascender a uma lei moral universal, válida igualmente para todos os seres racionais. O homem, como ser racional, existe como fim em si mesmo e não como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Ao contrário, o homem tanto em suas ações para consigo mesmo, quanto naquelas em que ele se dirige aos outros seres racionais deve ser considerado simultaneamente como fim. A vontade, nessa perspectiva, é entendida como faculdade do ser racional de se determinar a si mesmo conforme a representação de certas leis e aquilo que fundamenta a vontade objetiva do ser racional individual na sua autodeterminação, ou seja, o fim deve ser válido igualmente para todos os outros seres racionais (KANT, 1995).


Assim, o homem agindo enquanto ser moral racional se submete a deveres, porém, deveres criados por ele próprio, não como indivíduo isolado, mas como indivíduo universal.


Uma vontade perfeita jamais levaria a ações conforme a lei, posto que haveria sempre uma coincidência entre o dever e a vontade.


Percebemos, no pensamento de Kant, uma inclinação à idéia de igualdade formal que não partiria de uma imposição estatal, mas de um imperativo categórico que existe enquanto lei universal, qual seja: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” (KANT, 1995, p. 59).


A igualdade que Kant prega está associada ao mundo transcendental da moral, que levaria o homem, inexoravelmente, a agir segundo uma máxima universal, exatamente por ser livre, posto que se agisse apenas pela razão estaria no campo divino ou, se pelo instinto, no reino animal, não havendo autonomia em nenhum dos casos.


Kant trabalha a moral como expressão da liberdade humana. Nesse sentido, o homem só é livre porque pode criar o seu dever ser. A Autonomia Kantiana não é o obedecer ou o desobedecer, mas a liberdade de criar deveres.


Ao contrário, em razão de diversas impropriedades na compreensão da teoria Kantiana sobre a Autonomia, este termo acabou por ser identificado em seu sentido vulgar como sendo característica fundamental da liberdade e da igualdade.


No universo das leis que regem a conduta do ser racional, Kant faz a distinção entre as leis morais e as leis jurídicas. A distinção primordial entre a ação que se fundamenta por um pressuposto moral e a ação que reflete o dever jurídico é que a ação realmente moral se realiza apenas em obediência à lei do dever, desprezando-se qualquer interesse. É, nesse sentido, cumprida não por um fim, mas apenas pela máxima que a determina.


A ação moral em Kant exige do homem não somente a coerência com o dever, mas, sim, uma aderência interna, que se concretiza pelo cumprimento da ação pelo próprio dever. Já a ação que se determina em observância à norma jurídica permite a concorrência de inclinações ou interesses, ou seja, determinações externas ao comando normativo.


A distinção entre legalidade e moralidade em Kant se faz obedecendo aos mesmos critérios utilizados para distinguir Direito e Moral. Assim, quando o indivíduo age apenas para se conformar à lei, utilizando-se de outros interesses como, por exemplo, para evitar uma sanção, se está diante da legalidade. Em contrapartida, quando a idéia do dever derivada da lei é, ao mesmo tempo, impulso para a ação, temos o que chamamos de moralidade.


Como conseqüência da separação entre Direito e Moral, o dever jurídico é tido como legislação externa, porque o homem é obrigado a conformar sua ação à lei, mas não é obrigado a conformar sua intenção à norma jurídica. Logo, o legislador ao retirar do Direito conteúdos morais acabou por retirar também do indivíduo a necessidade de buscar fundamentos éticos à sua conduta.


Lançados alguns dos principais conceitos desenvolvidos por Kant na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, passemos à análise da primeira tentativa de fundamentação do Direito realizado por Habermas e que procura responder ao problema da validade do ordenamento jurídico.


3.  A fundamentação do direito a partir da relação de complementaridade entre direito e moral


No campo prático-moral, o Direito Moderno herdou do Direito Natural Racional, a concepção dos homens como sujeitos de direitos, livres e iguais, criadores do Direito enquanto normas jurídicas universais. E, para que essas normas jurídicas sejam válidas, é necessário que as conseqüências e efeitos colaterais que resultem de sua observância universal, para a satisfação dos interesses de todo o indivíduo, possam ser aceitos sem coação por todos os concernidos (MOREIRA, 2002).


Para Habermas, ao fazer a cisão entre a moralidade e a legalidade, o Direito moderno levanta a questão acerca da necessidade de justificação prática das normas jurídicas. A vinculação estabelecida, contudo, entre as normas de ação e as normas legais remete o Direito Moderno à fundamentação de seus conteúdos por meio de princípios morais. A estrutura pós-tradicional da esfera jurídica, na modernidade, demonstra que a fundamentação do Direito passa por uma questão de princípios.


As Constituições modernas já demonstram essa preocupação quando reforçam em seus textos o Princípio da Soberania Popular e os Direitos Fundamentais, o que denota a necessidade de fundamentação de tais normas.


Na concepção de Habermas, o cerne desse problema está na maneira pela qual as várias correntes doutrinárias vêm desenvolvendo o conceito de direito subjetivo. Desde a época de Windscheid, o direito subjetivo possui conotação de “poder de vontade” – o Direito como “poder de vontade ou dominação da vontade conferida pela ordem jurídica” (HABERMAS, 1997). O direito subjetivo, apesar de ter passado por várias reformulações teóricas, do utilitarismo à interpretação Kelseneana, do Jusnaturalismo ao Liberalismo ortodoxo, ainda não alcançou, para Habermas, a idéia de um reconhecimento de sujeitos de direitos que cooperam, estando, ainda, vinculado a uma leitura individualista própria do direito privado capitalista. Para o autor, a esses direitos deveriam, sim, terem sido outorgados conteúdo moral, não bastando à ordem jurídica incluir direitos sociais para a proteção da liberdade e da soberania popular.


Em contrapartida, o que se observou foi a subordinação dos direitos subjetivos aos direitos objetivos que foram gradualmente destituídos de princípios morais e a legitimidade de tais normas, a partir de uma concepção positivista, tentou encontrar seu fundamento na dominação legal.


O problema de se buscar a legitimação de um ordenamento jurídico por meio da dominação legal a partir de uma concepção positivista é que a dominação se baseia ora no puro arbítrio, ora na decisão não justificada de qualquer uma das pretensões de validade (MOREIRA, 2002).


Esta foi a posição defendida por Weber ao tentar fundamentar a validade das normas jurídicas. O Direito, segundo sua teoria, possui uma racionalidade própria que não comporta conteúdos morais.


Na concepção Weberiana, a dominação legal legitima-se pela mera observância a um procedimento, o que resultou na prevalência das qualidades formais do Direito. Acreditou-se na fé da legalidade e, com isso, foram postas de lado todas as suas qualidades prático-morais, reduzindo-o a uma dimensão cognitivo instrumental. 


Entretanto, a necessidade do Estado Social de conceder ao Direito nova função, qual seja, de instrumento de pacificação social, rompeu com as bases liberais do sistema jurídico. As exigências de um Estado forte e interventor fizeram com que as normas jurídicas se aproximassem das normas morais. Para Weber, essa idéia de justiça material no âmbito do direito representava o fim de sua racionalidade formal. É que, como defende Weber, a legalidade adquire validade pela observância de uma racionalidade puramente formal, que se concretiza quando satisfeitas as condições processuais inerentes ao procedimento legislativo. O ordenamento jurídico legítimo seria, desta feita, aquele que atendesse a todos os preceitos formais processuais contidos na lei no ato de sua criação, afastadas quaisquer proposições ético-morais (MOREIRA, 2002).


Contudo, Habermas aponta para os problemas dessa racionalidade formal do Direito, entendendo que por detrás do formalismo deve haver sempre uma fundamentação pós-metafísica que perpassa a moralidade.


O próprio fenômeno de positivação do Direito, como conseqüência desse formalismo nas sociedades modernas, vem confirmar a teoria apontada por Habermas. A positivação e a constante possibilidade de alteração do ordenamento jurídico faz com que as bases consuetudinárias que antes conferiam validade às normas sejam substituídas por princípios que buscam legitimar o direito.


 Logo, quando o sistema jurídico em sua estrutura permite o repensar de suas normas e a revogação das mesmas, ele, ao mesmo tempo, necessita sustentar suas proposições normativas, buscando fundamentá-las.


Ora, esses princípios, como parte do sistema, podem ser problematizados e concorrer entre si, o que enseja um retorno à fundamentação de uma racionalidade prática, como a entendida em Kant. Assim, seriam válidas apenas as normas legais que obrigam, numa perspectiva moral, todos os membros de uma comunidade jurídica (MOREIRA, 2002).


Habermas entende, em um primeiro momento de suas pesquisas, que haveria uma relação de complementaridade entre as normas morais e as normas jurídicas. Contudo, para o Autor, tanto as regras morais quanto as regras jurídicas mantêm-se distintas da ética tradicional, ambas convivendo lado a lado (MOREIRA, 2002).


Logo, a relação de complementaridade descrita por Habermas não deve ser interpretada como se houvesse entre as normas morais e as normas jurídicas uma relação de equivalência, “[…] como se se tratasse de uma mesma figura geométrica que apenas é projetada em níveis diferentes.” (MOREIRA, 2002). E, será a partir dessa constatação que Habermas conceberá uma fundamentação pós-convencional do direito utilizando-se do Princípio do Discurso.


4. Considerações propedêuticas sobre a teoria do discurso


À luz do Princípio do Discurso, o problema da validade das normas jurídicas passa pela seguinte pergunta: “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis interessados poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais?” (HABERMAS, 1997, p. 142).


Na tentativa de responder a esse questionamento, Habermas parte do pressuposto de que as razões decisivas devem poder ser aceitas, a priori, por todos. Para tal, utiliza-se do Princípio do Discurso como marco teórico para fundamentar imparcialmente as normas de ação. As razões decisivas, nesse contexto, somente poderiam ser aceitas porque este princípio considera simetricamente os interesses daqueles que participam do discurso e reconhece nesses questionamentos éticos-políticos as formas de vida estruturadas comunicativamente.


É importante compreender que o Direito, no paradigma discursivo, desempenha o papel de medium, auto-organizador de uma comunidade entendida enquanto associação voluntária de membros do direito livres e iguais. Como medium, o Direito deve permitir a participação de todos os seus membros.


Nessa perspectiva, a construção da Teoria Discursiva, no âmbito jurídico, se desenvolveu a partir de três pressupostos. O primeiro, parte do rompimento com a razão prática, substituída pela razão comunicativa.[2] O segundo, diz respeito à possibilidade de o ordenamento jurídico e até mesmo os próprios procedimentos de normatização do Direito serem problematizados e revistos. E, por fim, o terceiro, trata da nova relação de co-originariedade entre o Direito e a Moral.


É nesse momento que Habermas se distancia da teoria Kantiana, porque abandona a busca de uma fundamentação última para o Direito, nos moldes da razão prática e passa a orientar-se pela teoria do agir comunicativo.


Contrariamente à razão prática, a razão comunicativa não prescreve nenhum tipo de indicação concreta no exercício de tarefas práticas, visto que não é informativa.


Logo, na esfera do Direito, a normatividade originada a partir da razão comunicativa apenas se verifica mediatamente, ou seja, apenas se torna prescritiva após ser estabelecida por um consenso discursivamente estabelecido. (MOREIRA, 2002, p. 141)


A relação entre o Direito e a Moral, nessa medida, se estabelecerá de modo co-originário, porque o Princípio do Discurso afasta a normatividade imediata, possibilitando a criação de normas por meio de um procedimento discursivo deontologicamente neutro.


Habermas entende que a legitimidade do ordenamento está, então, na vontade de seus cidadãos e que o processo democrático de criação do Direito seria a única fonte pós-metafísica da legitimidade. A pergunta acerca da validade do ordenamento jurídico é, desta feita, remetida ao plano do Processo Legislativo.


Assim, a medida da legitimidade do Direito relaciona-se diretamente com a medida do espaço de liberdade reservado a cada sujeito de direito. Assim, as prescrições normativas passam a ter validade somente quando os destinatários dessas normas têm preservados a sua liberdade e autonomia.


Em contrapartida, nos processos legislativos democráticos, sob o enfoque da teoria do discurso, a posição dos cidadãos como destinatários das normas jurídicas é substituída pela posição de co-autores do Direito.


Afasta-se a concepção Kantiana do Direito como instituição heterônoma, enquanto instância externa dos cidadãos, para concebê-lo como produto efetivo de seres livres que possuem no ordenamento jurídico a manifestação de sua vontade livre. Logo, o Direito será criado a partir de processos discursivos que refletem a opinião e a vontade dos membros de uma comunidade jurídica.


Entretanto, para que essas proposições não nos remetam a uma idéia de normatização positivista de procedimentos legislativos que se legitimam por si mesmos é necessário estar atento aos pressupostos comunicativos e às condições do processo de formação democrática da opinião e da vontade, as únicas fontes capazes de atender à legitimidade de um Direito que se origina democraticamente. E para tal, é necessário uma “autocomposição da liberdade comunicativa”, que se expressa pela “livre composição dos temas e contribuições” que serão institucionalizados e irão formar a esfera normativa, através dos procedimentos democráticos. Desta forma, os participantes do discurso poderão, como co-autores, estabelecer as diretrizes do discurso político a ser institucionalizado. No mesmo sentido, deve-se permitir que procedimentos reflitam a vontade democrática dos cidadãos, evitando-se decisões arbitrárias que venham a fundamentar uma normatividade autopoiética. (MOREIRA, 2002, p.146)


Cabe, nesse momento, a afirmação de que o Procedimento Legislativo precisa estar em condições para institucionalizar a vontade democrática dos cidadãos e, para tanto, necessário se faz garantir a todos o acesso igual à liberdade comunicativa (MOREIRA, 2002).


Contudo, mesmo quando se admite que o ordenamento jurídico é fruto da vontade democrática dos cidadãos, entendidos como pessoas livres e iguais, institucionalizado e passível de correição, haverá sempre a possibilidade de se criar normas injustas.


 Sendo injusta, a normatividade pode permanecer injusta e perder a sua legitimidade, tornando-se arbítrio e violência. Contudo, abre-se a possibilidade de se vincular ao ordenamento jurídico a figura da falibilidade, quando este é concebido não como fruto da vontade democrática dos cidadãos, permitindo-se, assim, a sua revisão e revogação.


É essa possibilidade de crítica e autocrítica que confere às normas jurídicas a sua legitimidade e não a simples observância a um procedimento legiferante. Ora, o ordenamento jurídico, nessa perspectiva, só passa a ser normativo na medida em que incorpora a dimensão da liberdade comunicativa.


“A simples composição dos temas e contribuições que devem formar a agenda de institucionalização do processo democrático significa que não se tem, a priori, uma esfera deontológica que forneça os padrões de conduta aceitos como inquestionáveis. Significa, também, que sob os auspícios do melhor argumento o Direito dança entre facticidade e validade, vindo a constituir-se como instituição que obtém sua legitimidade à medida que expressa a vontade discursiva dos cidadãos”. (MOREIRA, 2002, p. 147)


Habermas trabalha, ainda, a idéia de co-originariedade entre as normas morais e as normas jurídicas e como se dá essa relação. A proposição de co-originariedade entre normas deve ser entendida partindo-se da premissa de que entre as normas morais e as normas jurídicas não pode haver uma relação de subordinação. Ora, a legitimidade dos preceitos jurídicos, à luz da razão prática, era dada pela equiparação do Direito a uma dimensão moral que lhe era superior. Os conteúdos morais deveriam, assim, perpassar todo o ordenamento jurídico, conferindo-lhe validade. 


À luz da Teoria do Discurso, em contrapartida, a relação entre Direito e Moral, normas jurídicas e normas morais, deverá ser compreendida sob dois aspectos, quais sejam: o da simultaneidade na origem e o da complementaridade procedimental.


No que tange à origem das normas morais e jurídicas, a aplicação do Princípio do Discurso neutro deontologicamente permite que, em sua origem, as normas jurídicas e as normas morais se mantenham independentes. Como Habermas abandona a razão prática para erigir sua teoria com base no Princípio do Discurso, abandona-se, também, a esfera legislativa que fornecia comandos imediatos à ação. Ora, como a razão comunicativa não é imediatamente legislativa, mas mediatamente legislativa, não se pode estabelecer o fundamento de uma apelando-se para a normatividade da outra, haja vista que ambas se originam simultaneamente através do agir comunicativo. Em contrapartida, a complementaridade pelo procedimento permite à Moral irradiar-se para além de suas fronteiras. É que através do procedimento legislativo, as razões morais fluem para o Direito, vinculando as decisões políticas legislativas aos conteúdos morais. A relação de complementaridade faz-se, assim, por meio de um procedimento.


A relação entre Direito e Moral, nos remete, ainda, à questão da efetiva realização de uma integração social.


Habermas entende que a Moral insere-se em um campo do saber cultural e, como tal, não obtêm obrigatoriedade institucional. Enquanto isso, o Direito, além de uma forma de saber cultural é também um sistema de ação, com elevado grau de racionalidade. As proposições axiológicas contidas nas normas jurídicas, como sistema de ação, adquirem uma eficácia direta, o que, entretanto, não se verifica com as normas morais.


Em vista do exposto, o Direito, como sistema de ação alivia a moral do fardo de, por si só, realizar a integração social. O Direito, por pertencer tanto às esferas culturais e institucionais, compensa a fragilidade inerente à moral em obrigar a vontade do indivíduo, por meio de uma normatização institucional. Assim, retira-se do sujeito moral o peso das decisões individuais.


Por fim, o Princípio do Discurso após assumir a forma jurídica, como postula Habermas, converte-se em Princípio Democrático. Enquanto tal, une todas as proposições e conceitos desenvolvidos na teoria habermasiana do Direito na tentativa de dar respostas à validade do ordenamento jurídico. Por observância a ele, pressupõe-se, em breve síntese, a possibilidade das decisões práticas, que fundamentem as leis, serem construídas com base em discursos racionais. As normas jurídicas, nessa perspectiva, somente podem pretender validade quando forem capazes de encontrar assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursivo. O Princípio do Discurso pressupõe, ainda, que o conceito de autodeterminação dos cidadãos como membros do direito que se reconhecem livres e iguais, seja dado por via de sua participação em um processo democrático discursivo e não pela autodeterminação moral de pessoas singulares. (HABERMAS, 1997)


Habermas propõe que o Princípio da Democracia seja fruto da ligação entre o Princípio do Discurso e a forma jurídica. Contudo, a conjugação desses dois elementos não é suficiente para a fundamentação do Direito, sendo necessária a intervenção do medium Direito, para que o Princípio do Discurso se converta em Princípio da Democracia. (HABERMAS, 2002, p. 165)


Para que se verifique o procedimento de institucionalização do Princípio do Discurso e a conversão do Princípio do Discurso em Princípio da Democracia, é necessário, também, a afirmação de que o Direito emana do Povo. A comunidade jurídica, nesse sentido, será formada pelos cidadãos que participam das decisões políticas, como destinatários e autores. Nesse ínterim, o direito positivo deve refletir as normas de convívio social e garantir a igualdade na composição das liberdades subjetivas.


Essas normas, a que os cidadãos estão obrigados a atribuir-se reciprocamente, são entendidos por Habermas como Direitos Fundamentais que garantem o exercício da autonomia privada e podem ser assim classificados:


“(1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação”.


Esses direitos exigem como correlatos necessários.


“(2) Direitos Fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito.


(3) Direitos fundamentais que resultem imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual.” (HABERMAS, 1997, p.159)


As três categorias do Direito descritas acima refletem a aplicação do discurso ao medium Direito e se referem à esfera de autonomia privada dos sujeitos de direito que se reconhecem enquanto destinatários de preceitos jurídicos, conferindo-lhes um status que lhes permitem obter e ter reconhecido direitos. Apenas em um segundo momento é que os indivíduos assumem a posição de autores da ordem jurídica pela configuração dos seguintes direitos:


“(4) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo.” (HABERMAS, 1997, p. 169). 


E, os direitos elencados acima repercutem em:


“(5) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdades de chances, dos direitos elencados de (1) a (4).” (HABERMAS, 1997, p. 160).


A elaboração dessa construção tem por objetivo avaliar a legitimidade do Direito, na medida em que os indivíduos possuem igual acesso a oportunidades de deliberação sobre uma pretensão de validade que se põe à crítica.


Toda vez que esses direitos fundamentais não forem observados, a formação da opinião e da vontade fica prejudicada e, consequentemente, a normatividade que advém desse processo discursivo é atingida pela possibilidade de revogação. Assim, o processo de criação do Direito, à luz da Teoria do Discurso, deve estar em conformidade com os direitos fundamentais e a soberania do povo. Lado outro, o problema de fundamentação do Direito ou de validade de um ordenamento jurídico entrecorta-se com o grau de discursividade que este conserva em processos democráticos que garantam a participação comunicativa de todos os cidadãos, homens livres e iguais. Se injusta a norma, caberá sempre a sua crítica e revogação, eis que a validade do ordenamento jurídico deve estar aberta à comprovação discursiva. (MOREIRA, 2002, p. 170)     


Como evidenciou Habermas, o princípio da democracia fundado no discurso permite que o Estado Democrático de Direito seja compreendido à luz de uma perspectiva procedimental (HABERMAS, 2002, p. 280). Em outras palavras, o projeto democrático, quando construído dialogicamente mediante processos institucionalizados, acredita ser viável a formação político-racional da opinião e da vontade. Até porque essa mesma vontade e opiniões políticas racionais somente serão concretizadas e legitimadas mediante esses processos.


Esta dinâmica, de legitimação do Estado Democrático de Direito por meio de procedimentos, consolida-se:


“[…] através de um sistema de direitos que garanta a cada um igual participação num processo de normatização jurídica legítima (já garantido em seus pressupostos comunicativos), ou seja, ele tem como implicação a institucionalização externa e eficaz  da participação simétrica numa formação discursiva da opinião e da vontade, a qual se realiza em formas de comunicação garantidas pelo Direito”. (COSTA, 2003, p. 42).


Em breve síntese, o projeto de realização do Direito deverá pressupor, antes de mais nada, a premissa de práticas de autodeterminação comunicativas que se concretizam nos procedimentos institucionalizados pelo próprio Direito. É justamente o que propõe Habermas, ao afirmar que a “compreensão procedimentalista de direito tenta mostrar que os pressupostos comunicativos e as condições do processo de formação democrática da opinião e da vontade são a única fonte de legitimação” (1997, p. 310).


Desta feita, a própria concepção de Direitos Fundamentais e de Soberania Popular em Habermas deve ser entendida em termos procedimentais, adequada a propiciar o processo argumentativo e dialógico, que irá construir “a estrutura da comunicação lingüística e a ordem insubstituível da socialização comunicativa” (SOUZA NETO, 2002, p. 273).


5. Conclusão


Em uma primeira tentativa de fundamentação do Direito, Habermas entende que as normas jurídicas teriam validade quando equiparadas a uma esfera de validade moral, ou seja, o ordenamento jurídico deveria extrair dos comandos morais sua legitimidade, posto que estariam num plano superior.


Em um segundo momento, Habermas dá uma reviravolta no modo de compreender essa questão, afastando-se da razão prática para se guiar pela razão comunicativa, que não fornece normas imediatas à vontade do indivíduo. Na esteira da teoria do Discurso, os processos de criação das normas jurídicas ganham nova dimensão. A relação entre as normas jurídicas e as normas morais se dá por uma relação de co-originaridade e complementaridade procedimental, que permite à Moral irradiar-se para o Processo Legislativo.


O Direito, nessa perspectiva, desvincula-se de uma esfera moral e passa a obter sua fundamentação na vontade e na opinião discursiva dos cidadãos, através de procedimentos democráticos garantidores da participação de todos os homens livres e iguais.


Por derradeiro, o Princípio da Democracia é construído como junção do Princípio do Discurso e da forma jurídica, o que culmina na afirmativa de que o Direito obtém sua legitimidade pela observância dos procedimentos democráticos construídos pela discursividade dos sujeitos de direitos que se reconhecem como destinatários e autores do ordenamento jurídico, numa relação entre Direitos Fundamentais e Soberania Popular.


 


Referências bibliográficas:

COSTA, Regenaldo da. Discurso, direito e democracia em Habermas. In: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.). Direito e Legitimidade. São Paulo: Landy, 2003.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. t I e II.

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola. 2002.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Edições 70: Lisboa. 1995. 

MOREIRA, L. Fundamentação do Direito em Habermas, Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

 

Notas:

[1] Este texto é dedicado aos alunos do primeiro período do Curso de Direito da Fundação Pedro Leopoldo.

[2] HABERMAS, J. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade, Trad. Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, t I, p. 142. pp. 20 – 21. “A razão comunicativa, ao contrário da figura clássica da razão prática, não é uma fonte de normas do agir. Ela possui um conteúdo normativo, porém, somente na medida em o que age comunicativamente é obrigado a apoiar-se em pressupostos pragmáticos do tipo contrafactual.” […] “A razão comunicativa possibilita, pois, uma orientação na base de pretensões de validade; no entanto, ela mesma não fornece nenhum tipo de indicação concreta para o desempenho de tarefas práticas, pois não é informativa, nem imediatamente prática.”


Informações Sobre o Autor

Maria Luisa Costa Magalhães

Doutoranda e Mestre em Direito Processual pela PUC Minas. Professora no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix e na Fundação Pedro Leopoldo. Professora do Curso de Pós-Graduação na Faculdade Pitágoras. Advogada


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