Direito sucessório na união estável: a desigualdade implantada no atual Código Civil

Resumo: Este trabalho tem por finalidade desenvolver uma análise crítica acerca da diferença no tratamento sucessório dos cônjuges em detrimento dos companheiros no atual Código Civil, tendo em vista que este não seguiu as disposições tutelares impostas na Constituição Federal de 1988, dispensando aos conviventes uma série de incongruências reveladoras de um tratamento desigual e retrógrado, quando comparado à sucessão imposta aos cônjuges. Assim, dispondo a união estável da mesma proteção constitucional garantida aos casados, obtendo aquela, direitos iguais advindos do vínculo familiar, faz-se necessária a revisão da atual situação sucessória dos companheiros, através da propositura de mudança legislativa que condiga com os ditames da justiça.


Palavras-chave: União estável. Direitos sucessórios. Código Civil. Desigualdade.


Abstract: This study aims to develop a critical analysis of the difference in the treatment of succession of the spouses to the detriment of colleagues in the current Civil Code, considering that it did not follow the rules imposed in the Constitution of 1988, giving to the colleagues a series of revealing inconsistencies of unequal and retrograde treatment, compared to the succession imposed to the spouses. So, as the stable union has the same constitutional protection afforded to married people, receiving equal rights arising from family ties, it is necessary to review the current state of succession of colleagues, by proposing of legislative change that matches the dictates of justice.


Keywords: Stable Union. Sucessory Rights. Civil Code. Unequal Treatment.


Sumário: 1. Introdução. 2. As incongruências na sucessão dos companheiros. 3. Proposta de mudança: os Projetos de Lei 276/07 e 508/07. 4. Conclusão.


1 INTRODUÇÃO


O fundamento do direito sucessório abriga-se no vínculo familiar existente entre o de cujus e a pessoa do sucessor. É a família que estabelece o caráter de legitimidade da sucessão, consubstanciada na comunhão de vidas que lhe é inerente, bem como no desprendimento da afetividade recíproca entre os seus membros.


Assim, as normas que estampam direitos sucessórios devem atuar como tradutoras da solidariedade familiar, caracterizando-se enquanto normas que têm o seu fundamento de validade vinculado às relações familiares, devendo ser estendidas a todas as entidades familiares de forma indistinta, independentemente de terem sido constituídas pelo casamento ou pela união de fato.


Nesta ótica, a união estável, uma vez ascendida constitucionalmente à condição de família por força do disposto no art. 226, § 3º da Carta Magna, passa a legitimar os seus partícipes a figurarem como herdeiros legítimos, não prosperando qualquer justificativa para que haja diferenciação entre os direitos sucessórios decorrentes do casamento e da união informal. Se a família adquiriu um conceito instrumental, demonstrando ser o instituto propiciador do desenvolvimento da personalidade de seus integrantes e do florescimento da afetividade mútua, o que trouxe à baila o pluralismo familiar, a qualidade de sucessor satisfaz-se essencialmente pelo fato da união constituir-se enquanto entidade familiar.


O que se percebe, todavia, é que a matéria relativa ao direito das sucessões plasmada no Código Civil de 2002, devido ao nítido tratamento diferenciado dispensado aos companheiros em relação aos cônjuges, não encontra fundamento no ordenamento jurídico brasileiro vigente, notadamente após o respaldo constitucional da união estável como espécie de família, desferindo um golpe de involução às perspectivas que se instauravam na concreção dos direitos companheiris.


2 AS INCONGRUÊNCIAS NA SUCESSÃO DOS COMPANHEIROS


Com as inovações referentes ao direito sucessório dos companheiros, veiculadas através das Leis nº 8.971/1994 e 9.278/1996, reguladoras da união estável, e ainda, após a elevação da união estável ao patamar de família, consagrada pela Constituição Federal de 1988 (art. 226, § 3º), o novo Código Civil representou a esperança para que antigos preconceitos que culminavam na desequiparação de direitos entre cônjuges e companheiros restassem definitivamente aniquilados.


No entanto, o diploma civilista de 2002 não acompanhou este início de uma tímida dinâmica evolutiva em matéria sucessória. De modo contrário, “o atual Código Civil altera substancialmente o direito anterior, promovendo, em alguns aspectos, franco retrocesso e, em outros, contradição sistemática insanável se considerado exclusivamente o texto do Código Civil” (ANTONINI, 2010, p. 2100). Considera Dias (2010) que “em sede de direitos sucessórios na união estável é onde o Código Civil mais escancaradamente acabou violando o cânone maior da Constituição Federal que impôs o reinado da igualdade e guindou a união estável à mesma situação que o casamento”.


O art. 1.790, único a tratar do assunto em atinência ao companheirismo, traduz-se em um “corpo estranho” (PEREIRA, 2007, p. 177), um invólucro de incongruências que não se coadunam com as transformações sociais e normativas vivenciadas desde a edição do Código, e que continuam em manifestação. Eis a transcrição do seu texto:


“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:


I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;


II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;


III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;


IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.”


Antes de adentrarmos ao mérito do dispositivo, a primeira incongruência a ser destacada refere-se à sua posição. O art. 1.790 foi inserido “em local absolutamente excêntrico” (VENOSA, 2007, p. 132), dentre as Disposições Gerais do Título I, o qual trata da Sucessão em Geral, restando, desta forma, completamente apartado das normas que tratam da Sucessão Legítima, estas iniciadas somente a partir do Título II, com o art. 1.829. Rizzardo (2008, p. 199) afirma ser “inadmissível a inclusão da disciplina nas disposições gerais sobre a sucessão, quando a matéria trata de disposição particular”. No mesmo diapasão, demonstrando crítica à topografia do dispositivo em comento, observa Venosa (2007, p. 133):


“A impressão que o dispositivo transmite é de que o legislador teve rebuços em classificar a companheira ou companheiro como herdeiros, procurando evitar percalços e críticas sociais, não os colocando definitivamente na disciplina da ordem de vocação hereditária.”


Portanto, evidencia-se, logo de antemão, que os direitos sucessórios conferidos ao companheiro nem sequer foram incluídos no Título próprio, onde se encontra elencada toda a ordem de vocação hereditária. O companheiro permanece segregado dos demais entes constituintes da família que disputam a sua fração na herança, de maneira que “nada impediria que o novo Código tratasse a matéria em conjunto com o cônjuge, simplesmente acrescendo a referência ao companheiro nos art. 1.829 a 1.832 e 1.836 a 1.839” (CARVALHO NETO, 2007, p. 183).


Em um segundo momento, o caput do art. 1.790 limita a sucessão do companheiro somente quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Desta determinação, conseqüências prejudiciais ao convivente podem vir a ser defluídas, como na hipótese de um casal que não tenha acumulado qualquer bem durante a convivência, e, quando um dos consortes falece, o outro nada receberá, nem a título de meação, nem a título de herança (PEREIRA, 2007). E mais: não havendo ainda nenhum outro parente sucessível, os bens particulares do de cujus, assim como aqueles percebidos gratuitamente, acabarão configurados como herança vacante, sendo destinados ao poder do Estado (CANDIL, 2006; FREIRE, 2009; GAMA, 2007; NEVARES, 2004). Assim, sob a transcrição das palavras de Menin (2007, p. 281-282):


“Tormentosas situações depreenderão desta peremptória norma, como no caso de um companheiro que viveu durante anos ao lado de outro, somando o afeto e dividindo as dores que decorrem de uma união prolongada, e embora o companheiro falecido tenha amealhado diversos bens antes da união estável, nada conseguiu auferir durante os anos do seu relacionamento. Nessa hipótese, o companheiro remanescente não receberá a meação e pela nova norma de direito sucessório ainda será subtraído o seu direito à herança.”


Mais adiante, a autora ainda completa o seu entendimento:


“Se os bens particulares do falecido estão fora da quota hereditária do companheiro remanescente, e se existirem, por exemplo, colaterais até quarto grau, estes serão os parentes beneficiados com a herança, excluindo a pessoa mais intimamente ligada ao falecido, para substituí-la por um ente que, na maioria das vezes, não possui qualquer relação com o de cujus” (MENIN, 2007, p. 286).


Sob a mesma ótica, Candil (2006, p. 118) traz em seu trabalho dissertativo um exemplo demonstrativo da incongruência aduzida na disposição ora tratada:


“Imagine a situação de duas pessoas solteiras que iniciaram a união estável quando já contavam com 50 anos de idade, ambos tendo patrimônio particular e que, em virtude dessa boa situação financeira, não adquiriram bens durante a convivência. Com o fim da união estável, 15 anos depois, por morte de um dos companheiros, o sobrevivente não terá direito sucessório, pois não houve aquisição de bens a título oneroso na constância da união. E aquele parente colateral em quarto grau, um primo, que nunca teve contato com o falecido, pois morava em uma cidade muito distante, agora fica sabendo que é herdeiro na totalidade dos bens deixados. Não pode ter sido essa a intenção do legislador”


Considerando ter havido uma mistura entre os conceitos de meação e herança, Dias (2008, p. 69, grifo da autora), em acirrada crítica à limitação de bens processada no caput do art. 1790, pontua que


“no momento em que é assegurado ao companheiro direito sucessório restrito à metade dos bens adquiridos onerosamente durante a vigência da união estável, o legislador de modo desastroso confunde herança com meação. É que a herança se constitui da meação do falecido sobre os aquestos e mais os seus bens particulares e os recebidos por herança. Mas o sobrevivente participa da sucessão somente quanto aos bens adquiridos na vigência da união estável.”


De fato, não houve motivo para a confusão entre esses direitos, uma vez que, por força do disposto no art. 1.725 do novel Código Civil, deve-se aplicar à união estável, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens. Assim, a meação sobre os bens adquiridos onerosamente na vigência da relação já resta configurada. Na sucessão, ao revés, tanto o acervo particular do falecido, quanto as transmissões gratuitas – como doação, herança, legados e bens decorrentes de fato eventual e sub-rogação – devem compor a massa patrimonial a ser fracionada ao companheiro supérstite.


O inciso I do art. 1.790 prescreve o modo pelo qual se dará a sucessão do companheiro em concorrência com filhos comuns dele e do de cujus[1]. Diferentemente do que ocorre com o cônjuge, tendo este o resguardo da quarta parte mínima na herança quando for ascendente de todos os herdeiros com que concorrer (art. 1.832), o companheiro em idêntica situação receberá sempre a mesma proporção que seus descendentes, “estabelecendo assim mais uma injustificável distinção entre a sucessão do companheiro e a sucessão do cônjuge” (CARVALHO NETO, 2007, p. 188). É o que explica Dias (2008, p. 149):


“Na concorrência sucessória com os descendentes, a fração a ser recebida por cônjuges e companheiros só é igual em uma única hipótese: quando todos os herdeiros são filhos seus, e isso se o número deles não for superior a três. Tanto o cônjuge como o companheiro herdam como se filhos fossem. A herança é dividida por cabeça entre o sobrevivente e os herdeiros. Assim, sendo um filho, a herança é dividida com o seu genitor. Sendo dois os filhos, eles ficam com dois terços da herança, e o cônjuge e o companheiro com um terço. O mesmo ocorre se forem três os filhos: cada um recebe uma quarta parte. O tratamento igualitário termina aí.”


Desta forma, na hipótese de existência de quatro filhos, a herança não será dividida em cinco partes iguais. Há preferência do cônjuge em relação aos descendentes, salvaguardando aquele com o quinhão de um quarto, enquanto que os três quartos restantes serão repartidos entre os seus filhos.


Quando os descendentes forem somente do autor da herança, ao cônjuge será destinado quinhão igual ao daqueles, independente do seu número, conforme interpretação do art. 1.832 do Código Civil. O companheiro, nesta condição, perceberá apenas metade do que couber a cada descendente (art. 1.790, II)[2]. Portanto, destas circunstâncias, pode-se inferir que enquanto o cônjuge herda de forma equivalente aos seus descendentes quando não é ascendente dos mesmos, tal igualdade só é conferida ao companheiro caso ocorra a situação inversa, ou seja, quando todos os descendentes forem também seus. Esta contradição não merece ser acolhida no nosso ordenamento jurídico. “A sociedade deve estar segura de que não importa a espécie de vínculo a ser escolhido, pois ambos sempre estarão igualmente protegidos pelo Direito” (MENIN, 2007, p. 286).


A dicção do inciso III do art. 1.790 demonstra mais uma discrepância. O companheiro, em concorrência com qualquer outro parente sucessível, terá direito a apenas um terço da herança. Neste caso, existindo somente um ascendente de primeiro grau do de cujus, ou, ainda que sobrevivam ascendentes de grau mais remoto, ao companheiro permanece a acanhada terça parte do monte hereditário. Por outro lado, ao cônjuge seria dispensada a generosa porção de metade da herança, segundo a inteligência do art. 1.837 do Código Civil.


Ainda, o que mais causa polêmica na redação deste dispositivo é que o termo “outros parentes sucessíveis” acaba também por abranger os parentes colaterais até o quarto grau, submetendo muitas vezes o companheiro à disputa hereditária com um parente que nunca teve qualquer aproximação com o falecido, o que, de acordo com o discurso de Venosa (2007, p. 134), “não é uma posição que denote um alcance social, sociológico e jurídico digno de encômios”. Em exposição às conseqüências incoerentes advindas desta situação, leciona Freire (2009, p. 142):


“Interessante notar que, se o companheiro concorrer com um só filho comum, cada um receberá 1/2 da herança. Se o convivente concorrer com parentes sucessíveis, receberá 1/3 dos bens deixados pelo autor da herança, enquanto os restantes 2/3 pertencerão àqueles parentes. Quer dizer, nessa hipótese os colaterais receberiam mais do que um filho do falecido, o que se mostra incompreensível”


Nesta perspectiva, é o que destaca Menin (2007, p. 293): “[…] pode ocorrer que aquele primo que sequer teve qualquer entrosamento afetivo com o de cujus herde maior porção do que a pessoa que com este tenha vivido no mais completo grau de intimidade”. No mesmo sentido, é o argumento manifestado por Freire (2009, p. 142):


“Não se justifica a posição adotada pelo legislador do Código Civil de 2002 em privilegiar parentes colaterais de até 4º grau (primos, tios-avós, sobrinhos netos), em detrimento do companheiro sobrevivente. Muitas vezes esses parentes raramente mantiveram contato com o falecido, enquanto o companheiro sobrevivente esteve ligado com ele pelo vínculo do amor, do companheirismo, da afetividade. Há casos em que durante o período de convivência o companheiro vivo enfrentou dificuldades financeiras, apoiou moralmente o falecido e esteve ao seu lado até os últimos dias de sua vida. No entanto, esse companheiro só vai herdar na falta de descendentes, ascendentes ou colaterais de até 4º grau.”


O juiz de Direito de São Paulo, Antonini (2010, p. 2104), em comentário ao art. 1.790 do Código Civil, também expôs sua insatisfação quanto à imposição ora tratada:


“A possibilidade de concorrer com colaterais até o quarto grau é retrocesso que tem sido criticado pela doutrina com veemência. É possível vislumbrar situações de gritante iniqüidade: um sobrinho-neto do de cujus, colateral de quarto grau, que ele talvez nem conhecesse, poderá concorrer com sua companheira, por exemplo, no único imóvel residencial por ele deixado. Nesse exemplo, se a aquisição do imóvel ocorreu na vigência da união estável, a companheira terá a meação e, sobre a outra metade, mais um terço, cabendo os dois terços restantes ao sobrinho-neto.”


Desta “irrefragável supervalorização do vínculo consangüíneo” (MENIN, 2007, p. 285), em detrimento do enlace afetivo, Dias (2008) considera que, como resultado absurdo, pode haver o enriquecimento injustificado daquele parente colateral distante, ao revés do companheiro. Assim também se posicionou o desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Ricardo Raupp Ruschel, quando, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 70020389284 proferiu as seguintes palavras:


“Cabe consignar, outrossim, que primar pela aplicação literal da regra prevista no artigo 1.790, III, da nova Lei Civil, além de afrontar o princípio da eqüidade, viola também o princípio da vedação do enriquecimento sem causa, o que, na hipótese dos autos, ocorreria por parte do irmão da autora da herança em detrimento do companheiro supérstite, que com a falecida convivia desde o ano de 1.995.”


Posteriormente, o Egrégio Tribunal prolatou decisão, por meio do Agravo de Instrumento nº 70.024.715.104, o qual deliberou pela não incidência do art. 1.790, III do Código Civil, acolhendo como fundamento a consideração a ser feita ao § 3º do art. 226 da Constituição Federal, o que confere ao companheiro, por conseqüência, o mesmo tratamento sucessório dispensado ao cônjuge. A ementa da decisão, relatada pelo desembargador José Ataídes Siqueira Trindade, possui a seguinte redação:


“Agravo de Instrumento. Inventário. Companheira sobrevivente. Direito à totalidade da herança. Parentes colaterais. Exclusão dos irmãos da sucessão. Inaplicabilidade do art. 1.790, inc. III, do CC/02. Não se aplica a regra contida no art. 1.790, inciso III, do CC/2002, por afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e de igualdade, já que o art. 226, § 3º da CF, deu tratamento paritário ao instituto da união estável em relação ao casamento. Assim, devem ser excluídos da sucessão os parentes colaterais, tendo o companheiro o direito à totalidade da herança. Recurso desprovido, por maioria.” (grifo nosso).


Também no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo encontram-se precedentes com embasamento congênere, favoráveis à inaplicabilidade do dispositivo em comento. Vejamos:


“Inventário. Herdeiros. Condição reconhecida ao companheiro da falecida. União estável incontroversa. Existência de parentes colaterais sucessíveis. Regra estabelecida pelo art. 1.790, III, do Código Civil que deve ser interpretada restritivamente, devendo-se estender ao companheiro a prevalência estabelecida nos artigos 1.829 e 1.838, à luz do art. 226, § 3º, da CF. Decisão que excluiu do processo sucessório os colaterais, nomeando o companheiro como único herdeiro, que deve ser mantida. Recurso desprovido” (TJSP, AI nº 990.10.033903-6, rel. Des. Rui Cascaldi, j. 22.06.2010, grifo nosso)


No mesmo sentido:


“Herança. Arrolamento de bens. Companheira. Ausência de descendentes e ascendentes. Colaterais. Exclusão da sucessão. Não incidência do art. 1.790, III, do Código Civil. Afronta ao art. 226, § 3º, da Constituição Federal. Tratamento sucessório do companheiro sobrevivente assemelhado àquele do cônjuge. Inteligência dos artigos 1.829, III, e 1.838 do novo Código Civil. Reconhecimento do direito da companheira à totalidade da herança. Recurso provido”. (TJSP, AI nº 6.524.254.400, rel. Des. Vicentini Barroso, j. 30.06.2009, grifo nosso).


Pelo emprego do inciso III do art. 2º da Lei 8.971/94, que trouxe o companheiro à terceira posição na cadeira sucessória, dispensando-lhe tratamento mais benéfico do que o imputado sob a égide do atual Código Civil[3]:


“Agravo de Instrumento. Inventário. Agravos interpostos por ambas as partes. Decisão que elencou os bens a que a companheira teria direito. Recurso dos irmãos do “de cujus” questionando a inclusão no rol de um veiculo usado como táxi, de um alvará de estacionamento usado por taxistas e parte no jazigo familiar. Recurso da companheira que pretende a totalidade dos bens, tendo em vista a ausência de descendentes e ascendentes. União estável devidamente reconhecida. Aplicação do art. 2°, III, da Lei 8971/94 e art. 226, § 3º, da CF. Impossibilidade de se aplicar o art. 1790, III, do Código Civil. Retrocesso. União estável iniciada quando da vigência da Lei 8.971/94. Provimento do agravo da companheira para determinar que ela recolha a totalidade da herança deixada por Sebastião Carneiro e seja nomeada inventariante nos autos do inventário e não provimento do agravo dos irmãos do “de cujus”.” (TJSP, AI nº 994.09.338440.-5, rel. Des. Fábio Quadros, j. 11.03.2010, grifo nosso).


Em aderência ao mesmo posicionamento:


“União estável. Provado que o companheiro falecido deixou um único bem, adquirido na constância da união estável e mediante esforço comum, deverá ser deferida a totalidade da herança ao companheiro supérstite, quando concorre com colaterais, proibindo-se, com a não incidência do art. 1.790, III, do CC de 2002, o retrocesso que elimina direitos fundamentais consagrados, como o de equiparar a companheira e a esposa na grade de vocação hereditária (com preferência aos colaterais). Aplicação do inciso III do art. 2º da Lei n. 8.971/94 e 226, § 3º, da CF”. (TJSP, AI nº 507.284-4/6, rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. em 30.08.2007, grifo nosso)


Os entendimentos encabeçados nas jurisprudências transcritas supra orientam-se no sentido da equiparação de efeitos sucessórios decorrentes tanto da união conjugal, como da união estável, visto que, por força do imperativo constitucional que concedeu ao companheirismo o mesmo status de família que aquela oriunda do matrimônio, não subsiste razão para que o companheiro seja colocado em posição hereditária tão inferior à do cônjuge, sendo-lhe imputada a concorrência até mesmo com os colaterais.


Sob a mesma vertente do inciso III, o inciso IV do art. 1.790 profere a sua incongruência ao dispensar ao companheiro a totalidade da herança unicamente na hipótese de ausência total de qualquer parente sucessível. Diante desta condição, o convivente passa a depender da inexistência de colaterais até o quarto grau para que lhe seja permitido o desfrute de todo o acervo hereditário, posicionando-se então no quarto e último lugar da cadeia hereditária, como bem aduz Dias (2008, p. 134): “da forma como o legislador tratou o convivente, passou ele a ser herdeiro de última classe”.


A desigualdade comparativa ao tratamento concedido ao cônjuge é flagrante, uma vez que o art. 1.838 do Código Civil estatui a percepção total da herança pelo cônjuge viúvo quando da inexistência de descendentes e ascendentes, não proferindo qualquer referência à existência de colaterais. “Pelo jeito, a lei considera que no casamento o amor é mais intenso do que na união estável. Supõe que os companheiros têm mais afeto pelos parentes colaterais” (DIAS, 2008, p. 69).


Ainda, a ordem de vocação hereditária arrolada no art. 1.829 posiciona o cônjuge supérstite em terceiro lugar na sucessão, corroborando, mais uma vez, a manifestada incongruência do dispositivo ora em exame. Nesta vereda, consoante o pensamento delineado por Dias (2008, p. 133), é “injustificável a omissão da lei ao não inserir o companheiro sobrevivente na ordem de vocação hereditária. Reconhecida constitucionalmente a união estável como entidade familiar, desfrutam os conviventes do mesmo status que os cônjuges”.


No já mencionado Agravo de Instrumento nº 70020389284, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o relator Ricardo Raupp Ruschel, perfilhou-se contrário à adoção do regramento que prevê que o companheiro ocupa o último lugar na qualidade de sucessor. Vejamos o que o eminente desembargador expõe em seu voto:


“No caso em exame, o ponto nodal da discussão diz com o direito ou não de o recorrente, na condição de companheiro, herdar a totalidade da herança de alguém que não deixou descendentes ou ascendentes. Se a ele se confere o status de cônjuge, ou se se lhe impõe as disposições do Código Civil de 2002, onde restou estabelecida, mediante interpretação restritivamente literal, distinção entre cônjuge e companheiro, conferindo àquele privilégio sucessório em relação a este. […]


Não se pode perder de vista, ademais, que a própria Constituição Federal, ao dispor no § 3º do artigo 226 que, para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento, não confere tratamento iníquo aos cônjuges e companheiros. Tampouco o faziam as Leis que regulamentavam a união estável antes do advento do novo Código Civil (Lei n.º 8.971/94 e Lei n.º 9.278/96). Não é aceitável, assim, que prevaleça a interpretação literal do artigo 1.790 do CC 2002, cuja sucessão do companheiro na totalidade dos bens é relegada à remotíssima hipótese de, na falta de descendentes e ascendentes, inexistirem, também, “parentes sucessíveis”, o que implicaria em verdadeiro retrocesso social frente à evolução doutrinária e jurisprudencial do instituto da união estável havida até então.”


O inciso IV do art. 1.790 do Código Civil, além de vislumbrar a inconteste desigualdade, resta maculado pelo vício da involução, uma vez que a Lei 8.971/94 já havia previsto ao companheiro o direito à totalidade da herança na falta exclusiva de descendentes e ascendentes do falecido (art. 2º, III).


Outro ponto nevrálgico vislumbrado na sucessão dos companheiros regulada pelo atual Código Civil é o que se refere à não previsão do direito real de habitação no imóvel destinado à residência da família àqueles que convivem em união estável, quando a mesma garantia é assegurada ao cônjuge no art. 1.831.


A situação torna-se ainda mais controversa quando se observa que no parágrafo único do art. 7º da Lei 9.278/96 o direito real de habitação havia sido dispensado ao companheiro sobrevivente[4], o que ocasionou o levante de sustentações em defesa da não revogação deste dispositivo pelo Código Civil de 2002.


Neste norte, sustenta-se que o Código Civil de 2002 não revogou a previsão ao direito real de habitação contida na Lei de 1996. Isto porque, além do diploma civilista não ter revogado expressamente a Lei anterior nas suas disposições finais e transitórias (arts. 2.045 e 2.046), também não se pode cogitar que o art. 1.790, único a cuidar da matéria sucessória dos companheiros no novel Código, tenha regulado toda a disposição pertinente no comando anterior, visto que não há sequer remissão referente ao direito real de habitação dos conviventes no art. 1.790 (art. 2º, § 1º/LINDB). Assim, “a omissão do Código Civil não significa que foi revogado o dispositivo que estendeu ao companheiro o mesmo direito concedido ao cônjuge” (DIAS, 2008, p. 72).


Ainda, não subsiste incompatibilidade entre as normas referidas nos dois diplomas legais, de forma que tratam de direitos distintos conferidos ao companheiro e que, assim sendo, não geram conflito entre si, podendo existir cumulativamente, conforme a explicação traçada por Menin (2007, p. 290):


“[…] a atual norma do art. 1.790 não se mostra incompatível com o art. 7º, parágrafo único, da Lei n. 9.278/96. Aquela traça disposições que fazem referência ao sistema concorrencial na transmissão de propriedade da herança, por sua vez, a habitação traduz-se em direito real de ocupar imóvel de outrem, não se tratando, portanto, de direito de propriedade, mas de mero direito real sobre coisa alheia.”


Nesta esteira de argumentação, entendendo não ter havido revogação expressa do parágrafo único do art. 7º da Lei 9.278/96, assim como defendendo a inexistência de contrariedade entre esta norma e a disciplina correlata no novel Código Civil, afirma Freire (2009, p. 184):


“[…] é mister que se diga que na legislação brasileira o companheiro sobrevivente deve contar com o direito real de habitação, pois, antes de tudo, é necessário preservar e garantir a segurança e o conforto de moradia ao companheiro de uma vida em comum. Muito embora não haja previsão no Código Civil de 2002, aplica-se nesse caso a regra prevista na Lei 9.278/96, art. 7º, parágrafo único, a qual foi derrogada com a edição do novo Estatuto Civil. Posto que essa matéria não foi revogada expressamente no novo Ordenamento Civil, e não há dispositivo contrário, entende-se que o direito real de habitação regulado em legislação específica continua em vigor, apesar de argumentos em sentido contrário. […] Se a finalidade principal da norma estudada é evitar o desamparo da família, e se ao cônjuge supérstite foi conferido o direito real de habitação, por analogia, ao companheiro sobrevivo também deve ser garantido, pois ambas as formas de entidade familiar (casamento e união estável) constituem famílias que devem ser respeitadas e tratadas com dignidade, eis que são a base de qualquer sociedade.”


Destarte, o silêncio do art. 1.790 denota um duplo caráter: a involução quanto a um direito que já havia sido concedido em Lei pretérita e a desigualdade comparada ao cônjuge. Sob este aspecto, Ana Luiza Maia Nevares, em colaboração com os professores Gustavo Tepedino e Guilherme Calmon Nogueira da Gama, elaborou o enunciado nº 117, o qual obteve aprovação na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, sob a coordenação do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, do Superior Tribunal de Justiça. O enunciado, além de sustentar a não revogação do previsto na Lei 9.278/96, também defendeu a aplicação do art. 1.831 do Código Civil analogamente ao companheiro. Eis a sua transcrição:


“Enunciado nº 117 – Art. 1.831: o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei n. 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/88” (NEVARES, 2004, p. 177).


Considera-se ainda que, tendo sido aferido aos cônjuges e companheiros o mesmo gozo da proteção constitucional que fora dispensada ao gênero família, “descabe distinguir ou limitar direito quando a Constituição não o faz” (DIAS, 2008, p. 72). A Carta Magna, no caput do art. 6º, elenca como direitos sociais a moradia e a assistência aos desamparados, donde se pode extrair que o direito real de habitação representa uma garantia de concretude desses direitos, tendo por finalidade basilar o atendimento “às necessidades de amparo do sobrevivente, como um complemento essencial ao direito assistencial de alimentos” (VENOSA, 2007, p. 135). Nessa perspectiva, a manutenção do direito real de habitação pode configurar-se, em determinado momento, como a única expectativa para o companheiro supérstite, tal como problematiza Menin (2007, p. 289):


“O direito real de habitação possui caráter protetivo e assistencial. Lembre-se da desastrosa situação do companheiro remanescente que nada recebeu a título de herança, pois o outro apenas deixou bens particulares e ainda nada amealhou durante os anos de convivência, deixando o companheiro sobrevivente sem qualquer bem para receber como direito à meação. Que degradante a situação do companheiro exposto a tão precária condição de existência! Nem ao menos o direito de morar no imóvel que residiam terá.”


O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Carlos Augusto de Santi Ribeiro, também se orientou no sentido da necessidade de permanência do direito real de habitação aos companheiros, quando do julgamento do Agravo de Instrumento nº 990.10.007582-9, cujas palavras seguintes extraímos do seu voto:


“Inicialmente, vale destacar que o direito real de habitação é um benefício de caráter eminentemente social, pois objetiva garantir a moradia àquele que, eventualmente, não tenha condições financeiras de fixar residência em outro local.


Esse instituto, ademais, encontra fundamento nos artigos 1º, inciso III e 6º, caput, ambos da Constituição Federal, pois o direito social à moradia é uma das garantias constitucionais imprescindíveis ao resguardo da dignidade da pessoa humana, pilar de nossa república federativa.


O novo Código Civil, ao regular a sucessão do companheiro, nada mencionou a respeito do direito real de habitação.


Todavia, a promulgação do novo diploma civil não poderia jamais significar um retrocesso no instituto da união estável, uma vez que o direito em comento já estava garantido aos conviventes no parágrafo único do artigo 7º, da Lei n° 9.278/96, que não foi revogado pelo Código Civil de 2002.”


Desta forma, “em razão da importância da moradia e tendo em vista sua finalidade protetiva, o novo Estatuto Civil deveria garantir ao convivente sobrevivo o direito de habitação sobre o imóvel que servia de residência aos companheiros” (FREIRE, 2009, p. 176), visto ser uma garantia já prevista em diploma pretérito, bem como se traduz enquanto um reflexo da igualdade familiar plasmada constitucionalmente.


Consideradas todas as incongruências até então aduzidas, resta expormos mais uma omissão legislativa que segrega companheiros e cônjuges em relação aos direitos sucessórios advindos da regulação imposta à matéria no novo Código Civil.


De fato, o debatido art. 1.790 é o único a tratar dos direitos sucessórios na união estável, concentrando, assim, toda a normatividade que o diploma civilista de 2002 deu ao assunto. A insuficiência do dispositivo, aliada à sua distante posição dos demais artigos que tratam da sucessão dos componentes da família, torna-se ainda mais visível quando se repara que algumas vantagens que foram concedidas ao cônjuge em dispositivos próprios restaram completamente esquecidas de contemplação no que pertine ao companheiro.


Assim ocorre em relação ao art. 1.845, que elenca como herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge, não referenciando, portanto, o convivente quanto à garantia da legítima. “O legislador constituinte de 1988 considerou como entidade familiar tanto o casamento como a união estável. Logo, se o cônjuge foi alçado à condição de herdeiro necessário, o companheiro sobrevivente também deveria ter esse status” (FREIRE, 2009, p. 115). Sob as raias desta supressão, o testador, através do ato de última vontade, obteria o consentimento legal para dispor do seu patrimônio sem fazer qualquer menção ao companheiro. Acerca desta injustificável discriminação, analisa Nevares (2004, p. 74):


“Na família nuclear, o cônjuge é o único componente estável e essencial, uma vez que os filhos, em um determinado momento, irão se desprender daquela entidade, formando a sua própria comunidade familiar. Por esta razão, o Código de 2002 alçou o cônjuge a herdeiro necessário em propriedade plena” (CC/02, art. 1.845).


E prossegue:


“Se a inclusão do cônjuge no rol dos herdeiros necessários foi uma medida positiva operada pelo Código Civil de 2002, o mesmo não pode ser dito em relação ao companheiro neste diploma legal, que só recebe por herança os bens adquiridos a título oneroso na constância da união estável, concorrendo na sucessão, inclusive, com os colaterais (CC/02, art. 1.790, III). Observe-se que as mesmas considerações quanto ao cônjuge, no sentido de ser o único componente estável e essencial da entidade familiar, bem como quanto à possibilidade de graduar-se a tutela sucessória com as relações patrimoniais entre os consortes, podem ser reproduzidas em relação ao companheiro” (NEVARES, 2004, p. 75).


Inobstante o efeito negativo da abstenção relacionada ao art. 1.845, o art. 1.850 do Código Civil de 2002, ao prescrever a possibilidade do testador excluir da sucessão somente os parentes colaterais, não fazendo qualquer alusão ao companheiro, denota a interpretação favorável que pode ser extraída do silêncio desta norma, conforme opina Nevares (2004, p. 175-176):


“Assim, na busca da proteção plena à pessoa humana (CF/88, art. 1º, III), tendo em vista a família como formação social que só será protegida na medida em que seja um espaço de promoção da pessoa de seus membros, conclui-se que a melhor interpretação é aquela que preconiza ser o companheiro herdeiro necessário nos limites estabelecidos pelo art. 1.790 do Código Civil de 2002, mantida a quota disponível em toda a sua integralidade.”


Comungando deste entendimento, Dias (2008, p. 174) defende ser o companheiro herdeiro necessário em razão do direito à concorrência sucessória que lhe foi conferido no art. 1.790:


“No momento em que foi assegurado também ao companheiro o direito de concorrência, acabou ele por ser elevado à condição de herdeiro necessário com relação à fração da herança que recebe juntamente com os herdeiros que o antecedem na ordem de vocação hereditária. Mesmo não incluído no rol dos herdeiros necessários (CC 1.845), mister reconhecer que o companheiro, ao ser contemplado com fração da herança a título de herdeiro concorrente, ao menos em parte tornou-se herdeiro necessário.” (grifo da autora).


Desta forma, a extensão ao companheiro da condição de herdeiro necessário preconizada no art. 1.845 do novel Código, aplicando-lhe, por analogia, uma garantia que fora concedida ao cônjuge sobrevivente, demonstra atenção aos fins sociais e às exigências do bem comum, as quais devem ser observadas pelo julgador quando do emprego da norma, nos moldes do art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.


Ademais, se a função primordial desempenhada pela sucessão necessária é assegurar proteção à família (PEREIRA, 2007), descabe excluir o companheiro supérstite da participação na legítima, uma vez que desde 1988 a união estável representa entidade alçada à condição familiar.


Assim sendo, mais uma vez, as perspectivas renovam-se: agora, com as propostas de mudança legislativa, cogitadas e discutidas para pôr termo ao vigente e injustificável quadro de desigualdade.


3 Propostas de mudança: os Projetos de Lei 276/07 e 508/07


Com vistas a erradicar as disposições presentes no atual Diploma Civil que se confrontam com a proteção familiar instituída pelo Estatuto Supremo, foram apresentados, no ano de 2007, os Projetos de Lei 276 e 508.


Em um primeiro momento, o Projeto de Lei 276/07 – que veio como substituto ao Projeto 6.960/02, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza –, cujo responsável é o Deputado Federal Léo Alcântara (FREIRE, 2009), objetivava a alteração de vários dispositivos do Código Civil de 2002, e, dentre estes, o funesto art. 1.790.


Segundo a redação proposta pelo referido Projeto, o art. 1.790 do Diploma Civil de 2002 passaria a viger da seguinte forma:


“Art. 1.790. O companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte:


I – em concorrência com descendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se tiver havido comunhão de bens durante a união estável e o autor da herança não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos companheiros tivesse ocorrido, observada a situação existente no começo da convivência, fosse pelo regime da separação obrigatória (art. 1.641);


II – em concorrência com ascendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes;


III – em falta de descendentes e ascendentes, terá direito à totalidade da herança.


Parágrafo único. Ao companheiro sobrevivente, enquanto não constituir nova união ou casamento, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar”. (grifo nosso).


Percebe-se, pois, que o mencionado Projeto ganhou pontos ao alocar o companheiro na terceira posição sucessória, atrás tão somente dos descendentes e ascendentes (inciso III), destinando-lhe a totalidade da herança quando da ausência destes parentes sucessíveis. Tal disposição demonstrava a intenção do autor do Projeto em igualar os direitos sucessórios dos companheiros ao que já é previsto aos cônjuges no atual Código Civil, a iniciar pela alteração da ordem de vocação hereditária no âmbito da união estável.


Cabe ainda destacar a incorporação dada pelo mencionado Projeto de Lei ao direito real de habitação (parágrafo único), que não encontra previsão para os companheiros no Diploma Civil de 2002, ao revés do que já havia sido assegurado na Lei 9.278/96 (art. 7º, parágrafo único). Portanto, a disposição constante na sugerida nova redação do art. 1.790 restauraria um direito já consagrado em sede de legislação pretérita, bem como igualaria os conviventes aos casados, uma vez que o direito de habitação dos cônjuges é explicitado no art. 1.831 do Código em vigor.


No entanto, em que pesem as vantagens que seriam trazidas pela proposta de alteração que ora se trata, um dos grandes vícios da estipulação dos direitos sucessórios na união estável permaneceria, qual seja, a segregação destes com os direitos conferidos aos cônjuges. Ora, a simples modificação do art. 1.790, ainda que favorável à igualdade de direitos, continuaria a destinar aos companheiros um dispositivo à parte no Código Civil, situado nas Disposições Gerais da Sucessão em Geral, enquanto que os casados permaneceriam intocáveis, com os mesmos direitos sucessórios arrolados no capítulo próprio que trata da Ordem de Vocação Hereditária.


Desta forma, a sucessão dos conviventes continuaria sendo tratada de maneira apartada da sucessão dos cônjuges, como se houvesse duas entidades familiares distintas onde coubessem direitos sucessórios distintos e inconfundíveis, impassíveis de serem normatizados conjuntamente.


Nesta feita, o mais coerente seria estender aos companheiros, naqueles dispositivos que regulam a sucessão dos casados, os direitos sucessórios que lhes foram omitidos, de modo que restasse concentrada em um grupamento de artigos pertencentes ao mesmo Capítulo, a regulação da sucessão familiar, esta entendida em sentido amplo, indiferente à maneira constitutiva do vínculo. Neste sentido, Dias (2009, p. 69) propugna pela extensão dos direitos percebidos pelos cônjuges aos companheiros, cabendo ao intérprete legislativo formatar as diferenças através da eliminação das prejudiciais omissões:


“[…] todas as omissões da lei, deixando de nominar a união estável quando assegura algum privilégio ao casamento, devem ser tidas por inexistentes. Quando a lei não fala na união estável, é necessário que o intérprete supra esta lacuna. Assim, onde se lê cônjuge, necessário passar-se a ler cônjuge ou companheiro. E, quando a lei trata de forma diferente a união estável em relação ao casamento, é de se ter simplesmente tal referência como não escrita.”


O Projeto 276/07, cabe destacar, foi arquivado pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, na data de 31/01/2011, sendo esta a última ação legislativa executada em relação à referente proposta.


Em 2007, no mesmo ano de apresentação do mencionado Projeto 276, foi sugerida a proposta de mudança levantada pelo Projeto 508/07, de autoria do Deputado Sérgio Barradas Carneiro. O referido Projeto foi apresentado como sugestão do Instituto Brasileiro de Direito de Família e teve origem no antigo Projeto de Lei 4.944/05, de responsabilidade do Deputado Antonio Carlos Biscaia (FREIRE, 2009). É uma proposta de mudança que parece moldar-se melhor às deficiências avistadas no campo sucessório companheiril.


O Projeto de Lei 508/07 pretende revogar o art. 1.790 e modificar uma série de artigos do Código Civil que tratam unicamente dos direitos advindos da sucessão dos casados, passando a incluir a figura do companheiro ao lado da referência feita ao cônjuge.


Uma das alterações mais importantes, por representar o pilar da igualdade almejada, é a pretendida no art. 1.829, a qual estende a concorrência sucessória dos descendentes e ascendentes ao cônjuge e companheiro, não prevendo a concorrência deste último com colaterais, bem como o alinhando em terceiro lugar na cadeia sucessória. Transcrevemos, portanto, a redação do caput do artigo com a aludida mudança:


“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem:


I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente;


II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente;


III – ao cônjuge sobrevivente ou ao companheiro sobrevivente;


IV – aos colaterais.” (grifo nosso).


Ainda, pretende-se estender ao companheiro supérstite, em virtude da alteração ao art. 1.831, o direito real de habitação, o qual é previsto neste dispositivo unicamente ao cônjuge sobrevivente. Ademais, cabe ressaltar o valor da proposta modificativa do art. 1.838, a qual demonstra, indubitavelmente, a passagem do companheiro do quarto lugar na ordem de vocação hereditária, estabelecido no art. 1.790 do atual Código, para o terceiro lugar, ao contemplá-lo com a totalidade da herança na falta de descendentes e ascendentes.


Com a efetivação das alterações introduzidas no Projeto de Lei 508/07, a igualdade sucessória, e, reflexamente, a igualdade arrastada para o âmbito protetivo geral, restará assegurada de maneira mais eficaz, através da paridade que se fomenta estabelecer entre cônjuges e companheiros em dispositivos comuns.


Esta é, portanto, a medida mais atual e provida de justiça, quando o correto mostra-se, de fato, a abolição do ordenamento jurídico do desequilibrado art. 1.790 do Diploma Civil, distribuindo a isonomia emanada na Norma Ápice através da unicidade de garantias hereditárias.


4 CONCLUSÃO


A linha evolutiva dos direitos companheiris, almejada principalmente após a elevação constitucional da união estável ao patamar de família, sofreu uma ruptura com relação aos direitos sucessórios conferidos aos conviventes no Código Civil de 2002. E, desta involução, sobressaíram várias incongruências que denotam a desigualdade que foi reservada aos companheiros quando na condição de sucessores, de maneira que os (poucos) direitos sucessórios que alude o vigente diploma civil encontram-se insuficientemente materializados em um único dispositivo, o qual permite o arrolamento de pontos onde se observa a disparidade no tratamento sucessório conferido aos cônjuges, em detrimento dos companheiros.


Neste sentido, o artigo 1.790 do Código Civil, além de inserir-se em espaço completamente estranho daquele destinado às disposições relativas à sucessão legítima, onde se incluem as regras atinentes aos direitos sucessórios dos cônjuges, reúne em seu bojo uma série de disparidades, a destacar: restrição da participação do companheiro somente quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável; exclusão da garantia da quarta parte mínima da herança ao companheiro, quando concorre com descendentes comuns; concorrência do companheiro com parentes colaterais; inserção do companheiro no último lugar da ordem de vocação hereditária, preterido pelos colaterais; ausência de previsão do direito real de habitação e ausência de reconhecimento expresso do companheiro como herdeiro necessário.


Algumas decisões dos Tribunais de Justiça estaduais já se encarregaram de pronunciar críticas ao grande problema da desigualdade no trato sucessório dos companheiros no vigente Código Civil, encontradas de modo determinante nos Tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio Grande do Sul, os quais utilizaram como fundamento a proteção destinada à união estável no texto constitucional, interpretada como equiparação entre as entidades familiares. Deste modo, a orientação presente nestes julgados determina que se deva afastar a incidência do nefasto artigo 1.790, utilizando-se em seu lugar as disposições mais benéficas encontradas nas Leis 8.971/94 e 9.278/96.


Nesta linha, as prescrições que regem a sucessão no regime da união estável entram em confronto com as garantias impostas na Carta Magna, além de representarem um retrocesso quanto às vantagens que já haviam sido incorporadas por meio dos diplomas legais pretéritos.


Diante de todos os debates e críticas advindos das discrepâncias trazidas pelo Código Civil de 2002 em matéria sucessória relativa à união estável, a solução mais eficaz e equânime é a abolição do artigo 1.790, buscando ajustar os direitos sucessórios dos companheiros conjuntamente com os dispositivos que tratam da sucessão dos cônjuges, tal como já prevê o Projeto de Lei 508/2007. Se a proteção assegurada constitucionalmente às entidades familiares é indistinta, o direito sucessório, por conseqüência, é unívoco, e, portanto, a sua disciplina merece ser imposta de modo isonômico.


Ante as frustrações já vivenciadas, as expectativas renovam-se em face da constante busca da preservação de uma sociedade justa, igualitária e fundada nos valores extraídos da dignidade da pessoa humana.


 


Referências:

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Notas:

[1] Demonstrando nítida falha legislativa, o inciso I do art. 1.790 restringe a descendência apenas à hipótese de “filhos comuns”, o que já não ocorre no inciso II, onde é empregado o termo “descendentes”. Nevares (2004) acredita que o emprego do inciso I deve ser efetuado de maneira abrangente, em consonância com a intenção tácita do legislador, pois, do contrário, na existência de outros descendentes do falecido, como netos ou bisnetos, estes seriam obrigados a concorrer com o companheiro sobrevivo na condição imposta no inciso III, caracterizando-se como “outros parentes sucessíveis”, ao lado dos colaterais. Vejamos: “Poder-se-ia argumentar que nesta hipótese seria aplicável o disposto no inciso III do art. 1.790 do novo Código. No entanto, esta solução fere a sistemática da lei, que teve em vista esgotar a categoria dos descendentes nos incisos I e II do art. 1.790. Não há razão para que os netos recebam quotas diferenciadas em relação aos filhos quando os primeiros e os segundos sucedem por direito próprio. Nesta hipótese, os descendentes devem suceder da mesma forma, quer sejam filhos, netos, bisnetos, etc., já que todos integram a mesma categoria de herdeiro necessário” (NEVARES, 2004, p. 172). Buscando solucionar este impasse, foi aprovado em dezembro de 2004, na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, o Enunciado nº 226, da autoria de Francisco José Cahali, estabelecendo que: “Aplica-se o inciso I do art. 1.790 também na hipótese de concorrência do companheiro sobrevivente com outros descendentes comuns, e não apenas na concorrência com filhos comuns”.

[2] Situação conflitante poderá ocorrer quando da existência de filiação híbrida, a qual não foi prevista no art. 1.790. Em meio ao impasse sobre a melhor maneira de solucionar a questão, alternando posicionamentos ora em defesa da aplicação isolada do inciso I, ora do inciso II, Gabriele Tusa propôs a chamada “Fórmula Tusa”, ultimamente a solução que vem ganhando a preferência dos doutrinadores, e que consiste na utilização dos elementos que se encontram à disposição, ponderando-se as situações descritas nos dois incisos através do emprego do juízo de eqüidade. Transcrevemos, assim, a explicação de Tusa (2007, p. 338, grifo do autor) à sua proposta: “Sempre atendendo à premissa de cunho interpretativo já apontada, propõe-se o emprego simultâneo de normas como solução da controvérsia jurídica alarmada. Assim, acredita-se, melhor solução seria no sentido de atender aos dois incisos do art. 1.790, ao mesmo tempo, o que só é possível por meio do critério da proporcionalidade. Assim, havendo, por exemplo, três filhos comuns e dois apenas do autor da herança, a companheira não receberá nem igual (inciso I), nem metade (inciso II). Ou, em outras palavras, não receberá (em termos de quinhão) nem um nem meio, mas um coeficiente que quantifique, justamente, a proporcionalidade entre as duas qualidades, condicionadas pela quantidade de filhos de cada modalidade”.

[3] Art. 2º. As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições:

I – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos deste ou comuns;

II – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;

III – na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.

[4] Art. 7º. […]

Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família. 


Informações Sobre o Autor

Letícia Moreira de Martini

Advogada.


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