Resumo: O presente trabalho trata do estudo do conceito de imóvel rural, à luz do direito agrário, e busca evidenciar a autonomia desse direito em relação ao civilista, além de enaltecer o aspecto da continuidade econômica na forma de exploração e a importância da aplicação do conceito para fins de elaboração de laudo agronômico de fiscalização e classificação fundiária do imóvel com vistas à desapropriação para reforma agrária.
Palavras-chave: Imóvel rural. Conceito. Direito Agrário. Autonomia. Unidade de exploração econômica.
Sumário. 1. Introdução. 2. Da autonomia do Direito Agrário. 3. Da conceituação de imóvel rural. 3.1. Imóvel rústico X imóvel agrário. 3.2. Imóvel rústico X imóvel rural. 3.3. Imóvel urbano X imóvel rural. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. 3.4. Área contínua e unicidade de exploração. Doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Aplicação do conceito de imóvel rural e consequências em caso concreto. 5. Conclusões. 6. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O presente trabalho trata do estudo do conceito de imóvel rural, à luz do Estatuto da Terra e do direito agrário, e busca evidenciar a autonomia desse direito em relação ao civilista. Traça as diferenças entre imóvel rústico e agrário, bem como entre rural e urbano de acordo com os critérios eleitos pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, além de enaltecer o aspecto da continuidade econômica na forma de exploração para identificação do imóvel, entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal. Realça a importância da aplicação do conceito para elaboração de laudo agronômico de fiscalização (mais conhecido como laudo de vistoria) e classificação fundiária do imóvel rural para fins de desapropriação para reforma agrária, elegendo caso concreto em que a interpretação do conceito foi fundamental para a orientação da Administração Pública no sentido de agir dentro da legalidade e da autonomia científica do direito agrário.
2. Da autonomia do Direito Agrário
O direito agrário pode ser definido como um ramo autônomo da ciência jurídica dotado de autonomia legislativa, científica e didática, composto de normas e institutos oriundos do direito público (desapropriação, discriminatória) e do direito privado (contratos) que objetiva a regulamentação das relações jurídicas do homem com a terra, os direitos e obrigações concernentes à propriedade, posse e uso da terra, as relações jurídicas entre as pessoas que a ela estão vinculadas e as formas, direta e indireta, de sua exploração, com base no cumprimento da função social da terra e no respeito à legislação trabalhista e ambiental[1].
Assim, a terra que interessa ao direito agrário é aquela vista como “bem produtivo”, não como um mero “bem patrimonial”. O objetivo fundamental do direito agrário é alcançar o ideal da justiça social no campo, pelo cumprimento do imperativo constitucional da função social da propriedade, com igual oportunidade para todos. Portanto, ao direito agrário não interessa a propriedade privada em si, mas a propriedade rural que é cumpridora da sua função social, pois aquela que não cumpre a sua função social não merece a proteção jurisdicional e terá que ser submetida a processo de desapropriação, para fins de destinação à reforma agrária.
A partir do momento em que a terra rural não é mais vista como um mero bem a ser contabilizado como patrimônio de uma pessoa ou de uma empresa (quase que como se fosse uma extensão de sua personalidade que pode ou não ser utilizada para satisfazer seus interesses pessoais), mas é apresentada como um meio de produção sujeito ao bem comum, ao cumprimento de sua função social, a referência legal deixa de ser o direito civil e passa a ser o direito agrário.
Nessa perspectiva, o direito agrário nasceu como uma resposta dos governos militares às pressões por reforma agrária presentes na sociedade da época[2].
É um direito eminentemente social, pois visa a proteger o homem do campo em detrimento dos grandes proprietários rurais e resgata o direito de todos em detrimento do direito de apenas um.
Passou-se a se reconhecer as enormes desigualdades sociais entre trabalhadores e proprietários. Em razão disso, o direito agrário apresenta forte intervenção estatal, impondo medidas protetivas ao trabalhador rural.
Enquanto o direito civil do Código de 1916 buscava manter o equilíbrio entre as partes e zelava para que predominasse a autonomia da vontade dos contratantes, o direito agrário já impunha limitações a esta liberdade. Enquanto aquele direito civil zelava pela lógica igualitária (baseada na igualdade formal), o direito agrário já zelava pela proteção do interesse dos mais fracos – social e economicamente.
O Código Civil revogado tratava das normas destinadas ao Direito Agrário de forma
deficiente, em especial no que tange aos contratos de parceria pecuária e arrendamento. Deixava o trabalhador do campo à mercê da própria sorte e, em razão disso, era comum o seu prejuízo nas relações negociais.[3]
A dimensão social do direito agrário é o que o diferenciava do direito civil anterior, antes deste se tornar um verdadeiro direito civil constitucional com o advento do Código Civil de 2002[4].
3. Da conceituação de imóvel rural
3.1. Imóvel rústico X imóvel agrário
O imóvel chamado rural pela legislação agrária é precisamente o imóvel agrário, que encontra seu conceito legal no citado inc. I do art. 4º do Estatuto da Terra, atualizado, após a Constituição Federal de 1988, pelo coincidente inc. I do art. 4º da Lei nº 8.629/93, que o define como o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à atividade agrária.
Quanto à rusticidade do imóvel, Olavo Acyr de Lima Rocha observa que a referência ao termo rústico foi inserida no conceito “mais em razão da tradição de nosso direito, que frequentemente se refere aos prédios rústicos quando se trata de imóveis rurais”. Conforme esse autor, caracterizando-se o imóvel agrário pela sua destinação, tal referência não é indispensável ao conceito, pois o imóvel agrário pode existir “dentro do perímetro urbano dos municípios”, o que retira por vezes a sua rusticidade. Ele conclui, asseverando que o desenvolvimento da técnica agropecuária e a ampliação do universo das atividades agrárias “em decorrência da própria sofisticação do homem em suas exigências de consumo alimentar ou mesmo do vestuário”, faz com que alguns estabelecimentos agrários “ostentem um alto grau de tecnificação, que os aproxima muito mais de um laboratório do que de uma fazenda, sítio ou estância”.[5]
Assim, segundo Gustavo Elias Kallás Rezek[6], predominantemente o imóvel agrário existe em meio rústico. Contudo, a dispensa da rusticidade pode ocorrer, do que são exemplos os imóveis agrários destinados à cultura hidropônica de hortaliças e as granjas de frangos, onde não há contato direto com a terra, uma vez que tais atividades se realizam em galpões e estufas cimentados. Por outro lado, há o imóvel rústico não agrário, a exemplo dos campos de treinamento militares. O ideal é interpretar a expressão prédio rústico como prédio via de regra rústico, para uma correta assimilação das novas realidades agrárias.
3.2. Imóvel rústico X imóvel rural
Há também que se advertir quanto à diferença entre os termos rústico e rural, tidos por muitos como sinônimos. Rústico, do latim rusticus, refere-se ao terreno não edificado, onde a terra se manifesta em sua virgindade, explorada ou não. Um parque verde no centro da cidade é imóvel rústico, mas não é rural.
Segundo ensinamento clássico de Ulpiano[7], a rusticidade é a presença prevalecente no imóvel de elementos naturais: terra, água, vegetais e animais. Não retira a rusticidade a ação humana que altera a disposição desses elementos no fundo, como uma plantação, uma terraplanagem, a feitura de curva de nível na montanha, a construção rudimentar de uma represa ou de um lago. Para identificar um imóvel rústico, deve-se atentar para o grau de artificialidade do meio: se o resultado da ação humana produziu um ambiente preponderantemente natural (assemelhado àquele que pode ser observado na natureza), caso em que o imóvel continuará rústico, ou, pelo contrário, se produziu um ambiente artificial, como galpões, tanques cimentado de piscicultura, estufas, edifícios de criação, onde prevalece a obra humana, caso em que não remanescerá a rusticidade.
3.3. Imóvel urbano X imóvel rural. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
São características preponderantes na zona urbana a edificação e os usos habitacional, cultural, industrial, comercial e administrativo dos imóveis. São características preponderantes na zona rural a rusticidade e o uso agrário, ambiental e mineral dos imóveis. Há, pois, uma relação de afinidade entre o meio rural, rústico e agrário, de um lado, e o meio urbano edificado e não agrário, de outro. Contudo, a destinação efetiva e predominante dos imóveis para certas atividades em um dado local tem poder decisivo na definição da natureza desses imóveis como urbanos ou rurais, ao lado do critério localização.
Essa orientação restou defendida em julgado da relatoria da Ministra Eliana Calmon, o qual estabeleceu que “O critério para a aferição da natureza do imóvel, para sua classificação, se urbano ou rural, para fins de desapropriação, leva em consideração não apenas sua localização geográfica, mas também a destinação do bem. Precedentes do STJ” (REsp 1170055/TO, Segunda Turma, DJ de 24/6/2010).
No entanto, o art. 4º, I, do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64), deixa em segundo o plano o critério localização para definir imóvel rural, colocando em evidência a forma de exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através da iniciativa privada. Eis o teor do dispositivo:
“Art. 4º Para os efeitos desta Lei, definem-se:
I – “Imóvel Rural”, o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada;” (grifamos)
Nesse sentido, o acórdão seguinte da lavra da Ministra Denise Arruda deixa clara a posição da Primeira Seção do STJ de que a classificação do imóvel como urbano ou rural independe de sua localização na respectiva zona, mas sim da forma de vocação econômica, o que significa dizer que um imóvel, ainda que situado em zona urbana, pode ter natureza rural em face de sua destinação. Confira-se:
Ação rescisória procedente.” (AR 3971/GO, Primeira Seção, DJ de 7/5/2010)
O critério da destinação já havia sido definido também na legislação tributária, por meio do Decreto 57/66, que consolidou a prevalência do critério da destinação econômica. O assunto foi tema do acórdão proferido no REsp 472628/RS, da lavra do Ministro João Otávio de Noronha:
5. Recurso especial a que se nega provimento”. (Segunda Turma, DJ de 27/9/2004)
Portanto, “não incide IPTU, mas ITR, sobre imóvel localizado na área urbana do Município, desde que comprovadamente utilizado em exploração extrativa, vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial (art. 15 do DL 57/1966)” (REsp 1112646/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Primeira Seção, DJ de 28.8.2009).
No mesmo sentido foi o julgado da lavra da Min. Denise Arruda, ao afirmar que a incidência de IPTU ou ITR sobre o imóvel vai depender da destinação econômica que lhe é empregada:
3. Agravo regimental desprovido”. (AgRg no REsp 679173 / SC, Primeira Turma, DJ de 18/10/2007)
Portanto, hoje resta consolidada a orientação acerca de que o critério da destinação econômica é fundamental para definir a natureza do imóvel, independentemente de sua localização em zona urbana ou rural, seja para fins de desapropriação e pagamento da indenização em metro quadrado ou hectare, seja para fins tributários de incidência de IPTU ou ITR.
3.4. Área contínua e unicidade de exploração. Doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
Quanto à expressão área contínua citada na definição estatutária, ela designa mais a continuidade econômica, isto é, a possibilidade de exploração singular do imóvel como um todo, do que a mera continuidade física. Nessa perspectiva, a descontinuidade física gerada pela presença de uma estrada ou rio, desde que não atrapalhe a livre circulação entre os dois lados da propriedade, não caracteriza descontinuidade para os efeitos do conceito de imóvel rural. A existência de pontes, passagens e outras formas de ligação entre áreas próximas é forte indício de continuidade econômica de uma propriedade[8]. Nesse sentido é a lição de Oswaldo e Silvia Optiz, ao prescreverem que a continuidade querida pela lei refere-se à utilitas da área, ou seja, “deve haver continuidade na utilidade do imóvel, embora haja interrupção por acidente, por força maior, por lei da natureza ou por fato do homem”[9].
Sobre o tema, é importante trazer ao conhecimento o Ato Declaratório 9/98 da Secretaria da Receita Federal, de caráter normativo, o qual, ao interpretar a atual legislação do Imposto Territorial Rural, incorporou o conceito de imóvel rural advindo do direito agrário. O texto é expresso:
“I – a expressão “área contínua” de que trata o § 2º do art. 1º da Lei 9.393, de 19.12.1996, tem o sentido de continuidade econômica, de utilidade econômica e de aproveitamento da propriedade rural; II – considera-se imóvel rural de área contínua a área do prédio rústico seja ela um todo único, indivisível, seja ela dividida fisicamente por estrada, rodovia, ferrovia ou por um rio.”
Sobre a expressão “área contínua”, outro não foi o posicionamento consignado no livro recentemente publicado “Lei 8.629/93 comentada por Procuradores Federais”, quando dos comentários ao art. 4º, I, da Lei 8.629/93, feitos pela Procuradora Federal Dra. Dayseanne Moreira Santos, conforme se confere:
“O art. 4º, I, da Lei nº 8.629/93 sub examen também reprisou o conceito de continuidade do imóvel rural previsto no Estatuto da Terra.
Por ‘área contínua’, entende-se a continuidade da exploração econômica exercida pelo titular, a continuidade do empreendimento, da utilidade econômica extraída do bem, e não apenas continuidade do imóvel sob aspecto puramente físico, material, de indivisibilidade do bem.”(grifamos)
Mais uma vez socorre-se ao magistério agrarista:
“A palavra ‘contínuo’, aqui, tem um sentido que transcende todos os sentidos apontados. É a utilitas da área, isto é, deve haver continuidade na utilidade do imóvel, embora haja interrupção por acidente, por força maior, por lei da natureza ou por fato do homem. Há unidade econômica na exploração do prédio rústico. A vantagem é econômica e não física, como aparenta a expressão legal. Se a propriedade é dividida em duas partes por uma estrada ou por um rio, embora não haja continuidade no espaço, há continuidade econômica, desde que seja explorada convenientemente por seu proprietário. É o proveito, a produtividade, a utilidade que se exige da continuidade da área que constitui o imóvel rural.”[10]
A importância prática da aplicação do conceito de imóvel rural à luz do direito agrário como ramo autônomo do direito é em especial quanto à forma de elaboração do laudo de vistoria pelos técnicos agrícolas, que deverão identificar a unicidade do imóvel, para fins de elaboração de um único laudo, ao invés de vários para cada gleba ou para cada imóvel identificado por matrícula diferenciada.
Com efeito, o Supremo Tribunal Federal[11] já sedimentou entendimento de que o imóvel rural está associado à noção de unidade de exploração econômica voltada ao desenvolvimento de atividades agrárias, podendo ser formado por uma ou mais propriedades rurais. A propriedade rural é que está relacionada à matrícula única definida. O imóvel pode ser formado por mais de uma matrícula, inclusive de proprietários diferentes, desde que digam respeito a áreas contínuas e contíguas que estejam exploradas de forma singular.
Assim, a identificação de várias propriedades rurais como sendo um único imóvel rural em razão da singular forma de exploração econômica é essencial para a classificação fundiária do imóvel em pequena, média ou grande propriedade improdutiva para fins de desapropriação por interesse social para reforma agrária. Como já decidiu o STF, “A existência de condomínio sobre o imóvel rural não impede a desapropriação-sanção do art. 184 da Constituição do Brasil, cujo alvo é o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social” (MS n. 24.503, Relator o Ministro MARCO AURÉLIO, DJ de 05.09.2003).
Dessa forma, impede-se que os laudos sejam elaborados de forma separada para cada propriedade, subterfúgio muitas vezes utilizados pelos proprietários rurais que não empregam função social às suas propriedades e insistem que se trata de pequenas e médias propriedades imunes à desapropriação pela redação do art. 185, I, da Constituição Federal[12].
4. Aplicação do conceito de imóvel rural e conseqüências para caso concreto
Em caso concreto objeto de processo administrativo[13] em trâmite no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, surgiu divergência acerca da necessidade de elaboração de um Laudo Agronômico de Fiscalização único para todas as propriedades objeto de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, ou se seria um para cada gleba. É questão que dependia da interpretação jurídica a ser dada ao conceito de imóvel rural, tema este já consolidado no âmbito da Autarquia Agrária, tendo sido objeto de Notas Técnicas orientativas da Procuradoria Federal Especializada e da área técnica.
Naquele caso, tinha-se informação clara da área técnica da Superintendência Regional do INCRA no Estado de Tocantins no sentido de que todas as cinco glebas, com várias matrículas e um único proprietário, contemplavam a mesma forma de exploração econômica, a pecuária, com um centro administrativo único localizado em uma das Fazendas, onde ficavam os empregados.
Aplicou-se então pela Procuradoria Federal Especializada do INCRA/Sede (PFE/Incra/Sede) a orientação contida na NOTA TÉCNICA/AGU/PGF/PFE-INCRA/G/Nº 05/2008 (ACRH) no sentido de que “a expressão área contínua é entendida pela doutrina como sendo a continuidade do empreendimento, da utilidade econômica extraída do bem, e não do aspecto puramente físico, material, de indivisibilidade do bem. É por isso que o Decreto declara o interesse social, para fins de reforma agrária, sobre o imóvel rural, ainda que composto por distintas matrículas, pois a unidade de produção é uma só.” (grifamos)
A referida Nota fundamentou-se em manifestações anteriores emitidas no âmbito do Incra, a exemplo do parecer do Procurador Augusto José de Souza Ferraz, dotado de caráter normativo por ato do então Presidente do Incra Raul David do Valle Junior, que aprovou o Despacho/PJ-12/nº 207/95 da Procuradora-Geral da Autarquia à época, Dra. Othilia Baptista Melo de Sampaio, e ainda em vigor nos dias de hoje, o qual já concluíra que:
“16 – (…) O sentido jurídico que o legislador atribuiu à expressão “área contínua” é exatamente o de utilidade econômica que reside intrinsecamente no conceito de imóvel rural, diz respeito ao empreendimento agrícola, pecuário, extrativo vegetal, florestal ou agroindustrial, que se emprega no imóvel.”
Também no caso concreto foi feita menção ao posicionamento do então Coordenador-Geral Agrário, Dr. Bruno Rodrigues Arruda e Silva, manifestado no Despacho/PGF/PFE/INCRA/SR-03/Nº196/2008 (Processo nº 54140.001331/2006-95):
“Na verdade, o conceito de imóvel rural, para o Direito Agrário, já foi sedimentado em várias decisões do Supremo Tribunal Federal e sua interpretação não comporta os estreitos limites propostos na análise supramencionada.
Isto porque o Excelso Pretório, ao contrário do que pretende o parecer técnico referenciado, distinguiu os conceitos de imóvel e de propriedade rural. O imóvel rural está associado à noção de unidade de exploração econômica voltada ao desenvolvimento de atividades agrárias, podendo ser formado por uma ou mais propriedades rurais. A propriedade rural, esta sim está relacionada à matrícula única definida. O imóvel pode ser formado por mais de uma matrícula, inclusive de proprietários diferentes, desde que digam respeito a áreas contínuas e contíguas que estejam exploradas de forma única”. (grifamos)
Com efeito, a área técnica afirmara tratar-se de áreas não contíguas, mas que possuem a mesma forma de exploração econômica e pertencem ao mesmo proprietário, informando que as áreas de cinco Fazendas, tendo a rodovia Estadual TO nº 477 como referência, estão distantes aproximadamente da BR 040, que liga Natividade – Almas – Dianópolis, em 0,0 km, 20km, 15km, 50km e 70km, respectivamente.
Portanto, não obstante a divergência nos autos do processo administrativo sobre tratar-se de glebas de terras não contíguas, via-se pela informação técnica que se encontravam próximas, distando no máximo 20 km uma da outra. Da análise do mapa à contracapa dos autos, constatava-se que o que distava as duas grandes glebas compostas pelas maiores Fazendas é uma rodovia estadual. As duas grandes glebas perfaziam o total de área registrada de 2.718,6816ha a primeira e 5.913,5884ha a segunda, de forma que as distâncias relatadas de 15, 20, 50 e 70km em relação a determinado ponto de referência não pareciam constituir quebra de continuidade física a ponto de comprometer a assertiva de unidade de exploração econômica existente no imóvel como um todo. Assim, a PFE/INCRA/Sede orientou o setor técnico que elaborasse um único laudo agronômico de fiscalização para todas as propriedades, com fundamento na doutrina e legislação agrária, além da jurisprudência do STF.
5. Conclusões
O direito agrário é dotado de autonomia científica em relação a outros ramos do direito e inclusive do direito civil. Antes de 2002, essa diferença era maior, haja vista que a propriedade regida pelo Código Civil de 1916 não era condicionada ao cumprimento do bem-estar social, sendo dotada de proteção ao direito individual do proprietário e predominava o princípio da autonomia da vontade das partes. Com o advento do Código Civil de 2002, eis que surge o direito civil constitucional, pelo qual a propriedade privada deve ser compreendida a partir da legalidade constitucional, o que significa afirmar a existência de novo conteúdo, tendo a função social como condicionante, fato que aproxima o direito civil do direito agrário, considerado este último como direito eminentemente social.
Porém, o direito agrário não perdeu a sua autonomia e esta pode ser verificada em especial quando da aplicação do conceito de imóvel rural aqui brevemente estudado. Conclui-se que este conceito não se confunde com o de propriedade rural, de forma que várias propriedades rurais, com matrículas e proprietários diferentes, mas em situação de continuidade econômica nos termos explicados no presente trabalho, podem configurar um único imóvel rural para fins de classificação fundiária em pequena, média ou grande propriedade improdutiva e suscetibilidade à desapropriação para reforma agrária, entendimento ratificado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Esse entendimento vai ao encontro dos anseios de centenas de trabalhadores rurais que dependem do sucesso da execução da política nacional de justa distribuição de terras para a própria subsistência, uma vez que evita manobras ardilosas de grandes proprietários rurais cujas propriedades são descumpridoras da função social, no sentido de fracioná-las em pequenas e médias com a finalidade de se furtar à intervenção do Estado por meio da denominada desapropriação-sanção para fins de reforma agrária.
Informações Sobre o Autor
Juliana Fernandes Chacpe
Procuradora Federal. Especialista em Direito Processual Civil.