Célebre frase[1] foi dita por um estudante de Direito: “temos um modelo próprio de sistema jurídico que poderia ser designado, sem ironia ou chiste, como o brazilian law”.[2] Com efeito, o modelo jurídico brasileiro reside em bases não usuais se o combatermos com outros tão conhecidos como o civil law ou o common law. A posição intermediária que ocupamos neste plano estrutural não é produto apenas das inovações doutrinárias correntes acerca da função do Direito e suas implicações na vida de um modo geral, com base, mormente, num princípio de efetividade dos direitos fundamentais, como nos assegura que tal peculiar edificação tem uma conotação deveras ligada à cultura acadêmica presente na grande maioria das universidades brasileiras, sobretudo naquelas onde a prevalência da formação humana em detrimento do exercício utilitarista da profissão ainda é o requisito capital para a formação do jurista.
Neste sentido, o due process of law (devido processo legal) enquanto evidência autêntica da criatividade humanista do pensamento jurídico contemporâneo, positivado no texto constitucional (CF, art. 5º, LIV), é a cláusula geral cuja funcionalidade precípua é assegurar o cumprimento efetivo dos direitos fundamentais, na medida em que constitui o recipiente balizador no que respeita a conduta da tutela jurisdicional frente ao caso concreto. Ainda, abandonamos meramente sua acepção formal, de tal sorte que não basta apenas a possibilidade garantida de participar do processo de maneira equânime, como, principalmente, a cláusula permite que a suficiência destes atos esteja fundada numa potencialidade de ações capazes de produzirem resultados satisfatórios sob a ótica da razoabilidade e sob o manto da dignidade da pessoa humana. Este, portanto, é o substantive due process of law (devido processo legal substantivo), onde a dimensão da eficácia do ato processual formal é agora elemento indispensável, íntimo e prejudicial à justa apreciação da lide.
Todavia, não é apenas na seara processual que o princípio em voga representa, no campo dos fatos, os direitos fundamentais, mas em todos os demais ramos da atividade pública do Estado, assim como nas relações privadas, que se encontre necessidade de observância de prerrogativas constitucionais relativas à proteção da pessoa humana.
Seja no âmbito legislativo, executivo ou judiciário, o devido processo legal, sendo o termo legal expressão do Direito e não da legalidade estrita em si (lei somente),[3] tornou-se o caminho mais adequado quando nos referimos à multiplicidade de fatores da vida em sociedade, haja vista a existência de um Estado provedor e garantidor de direitos e que estabelece os princípios como fonte do Direito mesmo. Tende, assim sendo, à inclusão dos princípios no rol de fontes do Direito, ao ponto que, a partir da segunda metade do século XX não ocupa mais posição subsidiária, entretanto, como é pertinente à proteção do ser humano em situação de integralidade, está no topo da lista, outorgando, par excellence, a si mesmo, o imperativo de prevalência e observância antes mesmo de cogitarmos da mera e tradicional subsunção do fato à norma. Agora, o princípio, porque humano, é naturalmente uma norma cuja importância não se afasta pela existência de regras postas tampouco por normas morais irracionais a partir desta perspectiva.
Tudo o que foi até agora exposto serve, nos dias atuais, à consolidação de uma terceira dimensão do princípio do substantive due process of law, a sua dimensão educacional (educational). Vimos, ainda que brevemente, que nele estão contidas a dimensão formal e substancial, por outro lado, nosso objetivo ao longo deste texto está também em informar o leitor sobre a influência que tem exercido na constituição do ensino de classe brasileiro, tendo em vista a irradiação multilateral de toda e qualquer circunstância relativa aos direitos humanos e, sobretudo, às questões morais e políticas envolvidas no novel direito universal ou doutrina universalista dos direitos humanos.
De certo, as relações de ensino perpetradas no âmbito superior são envoltas de diversificadas intensidades de pensamento, percepção social e bagagem cultural dos então acadêmicos; por conseguinte, a postura assumida diante da aprendizagem jurídica mostra-se, paulatinamente, rumo às discussões acerca de princípios ao invés do restrito e monótono estudo da lei. Cada vez mais, a filosofia do Direito e a filosofia de um modo geral nos permitem estabelecer um diálogo transdisciplinar entre os mais diversos campos epistemológicos, buscando alcançar a totalidade da compreensão dos fatos humanos interrelacionados na conturbada dinâmica política desta pretensa pós-modernidade.
Sem embargos, não cumpre à pós-modernidade um papel de mera transposição entre um período precedente e outro tempo no presente, todavia, assimila o protagonismo do pensamento social e das ciências correlatas à vida boa, rubricando no nosso cotidiano a necessidade de termos maiores preocupações quanto ao fundamento último da existência humana. Daí porque a ciência jurídica, de per si, não poderia lograr êxito pleno num intento de tamanha complexidade, justamente, apenas mediante a reunião do conhecimento é que podemos tentar ajudar a matéria humana a conviver com as diferenças, dilemas e paradoxos sem entrar numa profunda crise, tão-logo seja este o grave problema existencial trazido pela pós-modernidade, em qualquer sentido.
No discurso da aprendizagem jurídica, malgrado a perpetuação de faculdades de Direito com intuito visivelmente mercadológico, está o vértice da formação humana do acadêmico e não existe óbice a este desiderato, pois que o mercado e a essência das relações sociais contemporâneas têm requisitado, cada vez mais, a inteligência social e emocional do operador do direito, portanto, o círculo vicioso que outrora ouvíamos sobre o utilitarismo das faculdades de Direito acaba por, irremediavelmente, ser excluído do mundo das oportunidades oferecidas pela própria conjuntural social. A dinâmica dos fatos relativos à compensação por parte do Estado Constitucional e Humanista de Direito realizada na busca pela diminuição das discrepâncias sociais, enquanto marco do conceito de igualdade, representa todo um esforço empreendido em conjunto pelo intelectualismo social brasileiro cujo objetivo é humanizar o serviço público, podendo-se falar, perfeitamente, numa pós-modernidade onde o ponto decisivo de sua perfeição prática foi (e ainda é) a grande insatisfação com os modelos liberais e neoliberais. Certamente, que a influência que tais considerações exercem na formação acadêmica do jurista constitui a base de que não basta, para compreender a complexidade, observar os fenômenos através de ângulos afastados, como agrupá-los num todo construído pelos resultados particulares posteriormente colocados no debate de reflexão e reciprocidade, estabelecendo, assim, uma razão de identidade e compatibilidade para o discurso sustentável do progresso.
De tudo isto, surge na emergência da pós-modernidade uma terceira dimensão do due processo of law. Em primeiro lugar o fato de este princípio ser aproveitado pelos demais ramos do Direito, como ciência e didática, implica na consideração de que o modo com que encaramos o ordenamento cada vez mais se aproxima da horizontalização das prerrogativas ligadas à viga mestra do princípio da dignidade. Esta tendência indica que tem havido uma educação com base em princípios em todos os estudos referentes ao Direito. Quer dizer, pois, a abrangência do due process enquanto um postulado axiomático do Estado Humanista de Direito, na medida em que o conceito de processo não apenas se restringe à seara do procedimento formal, como se exterioriza e se irradia para o meio pelo qual são perfeitos no mundo dos fatos os direitos humanos, agora observados em todas as esferas e sob múltiplas considerações, mas que, por outro lado, preservam como baliza o corolário do devido processo conforme o Direito, logo, consoante a evolução do pensamento essencialmente principiológico. Isto se denomina educational and substantive due process of law, ou seja, além de formal, substantivo e devido, o processo conforme o Direito é acima de tudo, prejudicialmente às demais circunstâncias, educacional – vale dizer, assume um posto moral em relação a operação prática do Direito, valendo, de per si, como fundamento mesmo de validade e eficácia da ordem jurídica quando eivada do desiderato de busca, perseguição e concretude do direito pressuposto, portanto, do direito enquanto pertença ao mundo dos princípios.
A relação existente entre as dimensões formal, substantiva, material e educacional do due process é dialética e circular quanto ao plano dos fatos sociais, estando completamente imersas neste contexto. Desta maneira, o due process além de um dado do Estado Humanista em relação ao processo, é um dado contido na noção de prevalência irrestrita dos princípios, agindo como pressuposto informativo para se alcançar êxito na concretização da justiça.
Numa época onde encontramos grandes debates relativos à guerra e à corrupção, cresce o clamor por uma maior efetividade das leis, no entanto, não se trata de um caráter efetivo ligado à noção positiva do Direito, mas na emergência de um modelo onde seja conferida maior certeza à possibilidade de modulação do posto em função da complexidade do fato que lhe compete a incidência. Com efeito, a tensão de validade horizontal do due process of law está incluída numa noção de participação conjunta dos atores políticos dentro do Estado, na medida que há uma co-responsabilidade em prol da luta pela soberania dos princípios fundamentais e a dimensão educacional nos traz a baila a concepção de que o sujeito enquanto cidadão ativo no cenário político-social é também um co-protagonista na difusão da jurisdição constitucional e, além disto, da jurisdição dos direitos humanos, implicando, por conseguinte, no novel direito universal dos direitos humanos, rompendo com a concepção unilateral do Estado na prestação do bem-comum.
O bem-comum, pois, ganha teor universal perante o círculo de atuação do cidadão, de tal sorte que suas ações representam a juridicidade dos princípios e o exemplo de validade evidente de uma ética principiológica tida como vencedora do paradigma legalista do Estado de Direito, sobretudo, interagindo dinamicamente com uma ética das virtudes, restabelecendo como aspecto íntimo da classe subjetiva do cidadão a inferência de dar efetividade à conduta social lastreada no bom e no justo, não mais itens metajurídicos, mas percepções inequívocas e lógicas da presença da moralidade no interior do Direito, do Estado e das relações intersubjetivas.
A jurisdição-participação é, portanto, um modelo em que se busca a colaboração do cidadão diante dos casos judicializados, respeitando e legitimando os direitos humanos ao longo deste processo. A proposta de Jürgen Habermas[4] é justamente neste sentido, onde o sujeito que antes buscava apenas a tutela jurisdicional perante o Estado-juiz, ficando conformado ao fim com um ou outro provimento, seja positivo ou negativo, agora busca a participação efetiva e racional dentro do processo e da relação processual.
É insuficiente identificar as garantias/princípios constitucionais. A preservação de direitos fundamentais é tarefa que cabe à jurisdição na sua concretização. Ressalte-se que no processo, instrumento de solução de conflitos sociais, método de instrumentalização das demandas, teremos que considerar a dimensão social no sentido de permitir ao sem-voz e sem-vez a possibilidade de ser ouvido no processo e dele participar. [5]
A tutela imediata é alcançar o discurso racional dentro da relação processual, haja vista que é condição pressuposta para a correta fixação da sentença e do mandamento judicial. E a tutela mediata é conseguir o provimento adequado ao seu pedido. Afinal, vivemos numa sociedade onde existe a dominação e detenção do poder pleno, quer dizer, da capacidade de falar e produzir resultados, por parte de um pequeno número de pessoas, representando a mais profunda desigualdade e talvez a mais preocupante. A prerrogativa de busca, de acesso e participação dentro da atividade jurisdicional certifica o poder da pessoa de dizer exatamente aquilo que a aflige; só então é que os princípios serão sopesados – nunca antes do debate franco estabelecido entre as partes.
O Direito não pode representar uma consolidação abstrata de mandamentos de ordem coercitiva, visto que, acima da coerção enquanto caráter pedagógico da regra impõe-se observar a conjuntura do ordenamento como parte integrante de um sistema social complexo, caracterizado pela presença de diversas origens e estruturas culturais. A então tradição legalista do Direito indica com clareza um paradoxo da democracia. Como é possível participar legitimamente no Estado se, no campo da jurisdição, buscamos apenas um mandamento legal e uma imposição correta para o caso prático que apresentamos em juízo?
No modelo positivista a democracia se resume à participação política na eleição dos representantes do povo, não se estendendo à totalidade dos serviços e discussões envolvidas no Estado. A tendência, pois, está em fazer valer a tese cardinal da democracia, qual seja, a da interação com todos os liames relativos ao domínio do público e quando as relações privadas devem ser submetidas à análise do corpo de normas validado dentro do Estado soberano. Agora, discutimos as regras não apenas como ápice do momento legislativo da criação destas, como no momento da incidência no caso prático, já em sede processual. A discussão democrática é ampla e perfaz-se em todos os níveis da prestação estatal: seja no âmbito público, seja no privado.
O paradoxo da democracia se resolve nesta superação e o due process of law constitui justamente a prova de que o amadurecimento político no Brasil está apenas começando, mas, sem dúvida, deu um importante passo para a efetividade dos direitos humanos, visto que a simples permanência desta orientação na doutrina, na jurisprudência e, especialmente, na conduta do cidadão ativo representa a busca pela real horizontalização da jurisdição dos direitos humanos, tornando o processo, o Direito e a justiça objetos de um novo panorama democrático, onde a operação dos temas jurídicos desloca-se do privativo uso dos profissionais da área, passando a ser prerrogativa do sujeito social e tecnicamente leigo.
O Direito é, assim, garantia mesma de si mesmo. O problema agora se volta para um novo paradoxo: como fazer com que os sujeitos utilizem o Direito para discutirem racionalmente os problemas da vida? Pensemos…
Informações Sobre o Autor
Luiz Felipe Nobre Braga
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Advogado especialista em Direito Público. Autor dos livros: Direito Existencial das Famílias da dogmática à principiologia Ed. Lumen Juris 2014; Metapoesia Ed. Protexto 2013; Educar Viver e Sonhar dimensões jurídicas sociais e psicopedagógicas da educação pós-moderna Ed. Publit 2009. Professor da Pós-graduação em Direito da Faculdade Pitágoras em Poços de Caldas