Efeitos da coisa julgada nas ações coletivas

1. Intróito

A concepção de defesa
judicial duelística vem sendo substituída, desde a
época da Revolução Industrial, em que deu-se início à
real modificação do pensamento liberal clássico, de que ao Estado contrapõe-se
apenas e tão-somente o indivíduo, e não a massa de indivíduos, pelo chamado
“processo transindividual” ou “metaindividual”,
onde os interesses coletivos são levados a juízo em corpo único, pela figura do
substituto processual.  Dá-se a introdução, nos dizeres de Carlos Alberto
de Salles1, de um novo tipo
de litigância, onde o sentido do interesse público ganha nova significação, eis
que inserido em um novo contexto, agora não mais entendida a palavra “público”
na velha dicotomia outrora existente entre direito público e privado, mas, sim,
conforme ensinamentos de Marcelo Navarro Ribeiro Dantas2, em um sentido mais amplo, de verdadeira
defesa de interesses privados, mas que atingem toda uma coletividade, a exemplo
da public interest
litigation
, presente no processo judicial
norte-americano.

Nesse
diapasão, surgem os instrumentos processuais de proteção aos interesses
difusos, coletivos e individuais homogêneos, destacando-se, notadamente, por
sua maior aplicação, as ações coletivas de consumo, disciplinadas nos artigos
81 e seguintes do Código de Defesa e Proteção do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), e inspiradas nas leis
criadoras da Ação Popular (Lei nº 4.717/65) e Ação
Civil Pública (Lei nº 7.347/85), mas que, conforme
posicionamento de Paulo Valério Dal Pai Moraes3, em monografia tratante do assunto, com
estas não se confundem, sendo ambas, segundo Thereza
Arruda
Alvim4,
espécies do gênero “ações coletivas”.

2. Diferenças
entre eficácia da sentença e efeitos da coisa julgada

Especial
atenção merece o disciplinamento da tutela destes
interesses pela comunidade estudiosa do Direito Processual Civil, pois que há
um verdadeiro rompimento dos antigos padrões de aplicação de conceitos da
ritualística civil, principalmente no tocante ao objeto deste breve
estudo:  a coisa julgada e seus efeitos.  Coisa julgada, na definição
da Escola Clássica de Liebman, e introduzida em nosso
ordenamento pelo art. 467 do CPC (vide também o § 3º, art. 6º, do Código
Civil), é a “eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença”,
constituindo-se, na lição de Walter Nunes da Silva Júnior5, “…à
semelhança da prescrição, antes uma exigência de ordem política do que
propriamente jurídica, em razão da necessidade de se obter, com o
pronunciamento jurisdicional, a certeza do direito, no desiderato de conferir
aos indivíduos a segurança para o desenvolvimento de suas relações
jurídicas”.  Não confunde-se a coisa julgada com nenhuma das outras
eficácias da sentença (declaratória, condenatória, executória, constitutiva, e,
para alguns, mandamental), sendo ela, na verdade, segundo a visão de Nelson
Nery Júnior
6, “…a
qualidade que torna imutável e indiscutível o comando que emerge da parte
dispositiva da sentença de mérito não mais sujeita a recurso ordinário ou
extraordinário, nem à remessa necessária do CPC 475”, destacando José
Ignácio Botelho de Mesquita
7,
que  “…os efeitos da sentença podem produzir-se antes do trânsito em
julgado e não só não são necessariamente imutáveis, como também podem
perfeitamente beneficiar ou prejudicar terceiros”.

Assim,
resta esclarecido que, conforme a disciplina do CPC, a coisa julgada tem como
efeitos a imutabilidade (excepcionando-se as hipóteses de ação rescisória) e a indiscutibilidade do teor da parte dispositiva da sentença,
operando-se tais efeitos, via de regra, apenas entre as partes litigantes (com
a ressalva da parte final do art. 472).  Esta é a lição básica assinalada
pelo legislador de 1973.  Vejamos o que agora se passa com as modificações
introduzidas pelo Código Consumerista.

3. A
res iudicata
no código de defesa do consumidor

Primeiramente,
o CDC elenca, no inciso I do art. 103, a eficácia erga omnes, estendida para todos os titulares de direitos
difusos, quais sejam, aqueles que não possuem definição quanto aos seus
titulares (CDC, art. 81, I).  Tal eficácia, contudo, deixará de ser válida
para todos à medida em que for julgada a ação
improcedente por insuficiência de provas.  É de bom alvitre ressaltar-se
que a expressão “todos” compreende apenas aqueles legitimados do art. 82 do CDC8, sendo para eles destinada tal
norma.

Em
seguida, o Código do Consumidor, no inciso II do artigo acima citado, nomeia
como sendo ultra partes o efeito estendido para
aqueles titulares de direitos chamados pela doutrina de “coletivos”, cujo
titular é encontrado na expressão de um grupo, categoria ou classe de pessoas
determinadas (CDC, art. 81, II).   Na verdade, esta eficácia ultra
partes
deve ser entendida como uma espécie de eficácia erga omnes, abrangendo, contudo, um agrupamento determinado,
onde a coisa julgada encontra o seu limite, valendo para este caso, também, a
regra da não-extensão da imutabilidade por julgamento improcedente fundado em
insuficiência de prova.

Por
último, o legislador, no inciso III do mencionado artigo do diploma legal já
exaustivamente citado, atribui efeito erga omnes
(retornando agora com o nomen iuris primeiramente utilizado), e apenas em caso de
procedência do pedido, para as hipóteses de defesa de interesses individuais
homogêneos, constituindo-se seus titulares por pessoas cujos interesses possuam
origem comum (CDC, art. 81, III).

Tratam-se
tais mudanças, portanto, de verdadeira evolução do Direito Processual Civil
brasileiro, que, é certo, comporta suas falhas, conforme vem asseverando a
doutrina, sendo, contudo, em seu conjunto, uma poderosa arma de proteção a
direitos que, pela via processual tradicional, talvez restasse duvidosa a
efetividade da tutela dos mesmos.  Parte da doutrina vem apontando, ainda
que timidamente, para uma questão de relevo em relação à extensão erga omnes dos efeitos da coisa julgada nas ações
coletivas.  É que a Lei nº 9.494/97 (antiga
Medida Provisória nº 1.570/97), tratante da Ação
Civil Pública, em seu art. 16, preconiza a extensão da coisa julgada apenas nos
limites da competência territorial do órgão prolator.
Desta feita, em hipótese de sentença transitada em julgado na Justiça Federal
do Rio Grande do Sul, determinando-se a retirada de determinado medicamento
que, por qualquer motivo, não estivesse em condições de ser consumido, tendo
sido o processo iniciado por meio de Ação Civil Pública, de acordo com a norma retro
referida, a eficácia desta sentença seria restrita apenas àquele Estado, sem
maiores alcances, revelando-se, deste modo, um total absurdo.

A
mesma doutrina que vem levantando esta hipótese, contudo, vem também rechaçando-a com argumentos convincentes.  O primeiro é
no sentido de que a realidade de natureza material não pode nunca confundir-se
com a realidade de natureza processual, sendo os interesses difusos, coletivos
e individuais homogêneos absolutamente indivisíveis.  Segundo Paulo
Valério Dal Pai Moraes9, “…jamais uma regra instrumental terá o condão de
dispor, por exemplo, que os efeitos de uma publicidade enganosa veiculada por
televisão ou rádio não engloba interesses difusos, pois isto é uma realidade em
si mesma, independentemente de qualquer ficção que tenha o objetivo de dispor
em contrário”, concluindo, por fim, que “…a extensão do julgado será
comandada pelo direito material, cuja realidade em si é suficiente para o
delineamento dos limites subjetivos e objetivos da res
iudicata
”.

O
segundo argumento, de ordem processual, repousa na interpretação que deve ser
dada ao Código do Consumidor, em seu art. 90, cujo teor informa-nos que a
aplicação de normas referentes à Ação Civil Pública (como é o caso da Lei nº 9.494/97), deve ser realizada apenas naquilo que não
contrariar o CDC, restando inatingíveis, pelo comando do art. 16 da Lei nº 9.494/97, as ações coletivas de consumo, cujo tratamento
é diferenciado das Ações Civis Públicas, possuindo ambas, como ponto comum,
apenas o fato de serem espécies do gênero “ação coletiva”, conforme mais acima
aduzido.
Deve esta corrente de não-aplicação de tal restrição territorial à coisa
julgada prevalecer, uma vez que a Medida Provisória antecessora da Lei nº 9.494/97 foi editada apenas com o fulcro político de
procurar deter os bons resultados obtidos pelas Ações Civis Públicas que vinham
obtendo, na Justiça, o restabelecimento de diferenças salariais para o setor do
funcionalismo público, assim como atravancando os procedimentos de leilão
público, amargando o Estado, em decorrência disto, diversas derrotas judiciais,
as quais iniciavam a, financeiramente, preocupar o Poder Executivo, que,
decerto, à míngua de qualquer estudo jurídico-científico, acabou por editar a
teratológica Medida fundada no art. 62 da CF/88.

4. Conclusão

Estas
são, em breves comentários, algumas das nuanças relativas aos efeitos
originados da coisa julgada nas ações coletivas, principalmente no que tange ao
Direito do Consumidor (mas com possibilidade de extensão do raciocínio para
outras áreas), cujas poucas linhas aqui expostas, longe da pretensão de esgotar
o tema discorrido, tão empolgante ante o seu grande potencial de aplicabilidade
diante da realidade social brasileira, apenas querem, isto sim, enriquecer os
debates acerca do assunto e buscar uma operacionalização de nossos instrumentos
processuais, combatendo-se toda sorte de leis que tolham as perspectivas e os
anseios da população pela efetividade da justiça, pois, na célebre lição de
Mauro Capelletti10, “o acesso à Justiça pode, portanto, ser encarado
como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um
sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas
proclamar, os direitos de todos”.

 

Notas

(1)
SALLES, Carlos Alberto de.  Direito Processual Público:
A Fazenda Pública em Juízo.  Coord.
Carlos Ari Sundfeld e Cassio
Scarpinella Bueno, p. 47.

(2)
DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro.  Mandado de Segurança
Coletivo:  Legitimação Ativa
, p. 30.  Para este autor,
“esta summa divisio
entre privado e público deixou de existir”.

(3)
MORAES, Paulo Valério Dal Pai.  A Coisa
Julgada Erga Omnes Nas Ações Coletivas (Código do
Consumidor) e a Lei 9.494/97
, in Revista Jurídica, Outubro/1999.

(4)
ALVIM, Thereza Arruda.  Apontamentos sobre as Ações Coletivas,
in Revista de Processo, v. 75, p. 273.

(5)
JÚNIOR, Walter Nunes da Silva.  Coisa Julgada:  Direito
Facultativo ou Imperativo?,

in Revista de Processo, v. 95, p. 23.

(6)  JÚNIOR, Nelson Nery.
Código de Processo Civil Comentado,
p. 676.

(7)
MESQUITA, José Ignacio Botelho de.  Processo
Civil:
  Estudo em Comemoração aos 20 anos de Vigência do CPC.
Coord. José Régio Cruz e Tucci,
p. 142/143.

(8)  Art. 82 – Para os fins do art. 81, parágrafo único,
são legitimados concorrentemente:

I-  o Ministério Público;

II-  a União, os Estados, os
Municípios e o Distrito Federal;

III-  as entidades e órgãos da
Administração Pública, Direta ou Indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interessados e
direitos protegidos por este Código;

IV-  as associações legalmente
constituídas há pelo menos 1 (um) ano e que incluam entre seus fins
institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código,
dispensada a autorização assemblear.

(9)
Obra citada, p. 59.

(10)
CAPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant.
Acesso à Justiça, p. 12.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Felipe Luiz Machado Barros

 

Juiz de Direito em Florânia/RN
Mestrando em Direito Constitucional – UFRN
Membro do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e do IHJ (Instituto de Hermenêutica Jurídica)

 


 

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