Resumo: O estudo da efetivação judicial dos direitos sociais assume alta relevância, atualmente, face aos graves índices de desigualdade e miserabilidade em nosso país. Examinando, pois, a doutrina e jurisprudência que abordam a questão, o presente trabalho analisa a natureza dos direitos sociais e sua sujeição à tutela judicial, em virtude da supremacia das normas constitucionais. A monografia aborda, ainda, questões relativas à legitimidade democrática e capacidade técnica do Judiciário para implementação de políticas públicas. Ademais, observando a escassez de recursos públicos, examinam-se temas como a cláusula da reserva do possível, princípios orçamentários, direito ao mínimo existencial e à segurança social, princípio da vedação do retrocesso. Por fim, discute-se, brevemente, a utilização das ações coletivas e individuais, em relação à efetividade da tutela judicial dos direitos fundamentais sociais, com observância do princípio da igualdade e universalização dos direitos sociais.
Palavras-chave: direitos fundamentais sociais, separação de poderes, cláusula da reserva do possível, mínimo existencial, ação coletiva.
Abstract: The study of the judicial effectiveness of social rights is currently under the spotlight, in view of serious levels of inequality and misery in our country. Under such context, this work addresses the nature of social rights and its submission to judicial review, in view of constitutional supremacy, reviewing doctrine and case law on the matter. This work also addresses issues regarding the democratic legitimacy and technical expertise of Courts to implement public policies. Moreover, taking into account the limitations to public resources, this work reviews issues such as “under reserve of possibilities clause”, budgetary principles, “minimal existential rights”, social legal security rights, and the “rights setback prohibition principle”. Finally, the author engages on a brief discussion on the use of class actions and individual actions vis-à-vis the effectiveness of judicial protection of fundamental social rights, taking into account principles of equality and universality of social rights.
Keywords: fundamental social rights, checks and balances principle, under reserve of possibilities clause, minimal existential rights, class actions.
Sumário: Introdução. 1. A Qualificação dos Direitos Sociais: Direitos Fundamentais, Subjetivos Prima Facie, Prestacionais? 2. A Tutela Judicial dos Direitos Sociais. 2.1 Legitimidade Democrática do Judiciário. 2.2 Capacidade Técnica do Judiciário e Autocontenção Judicial. 3. A Escassez de Recursos Públicos e a Cláusula da Reserva do Possível 3.1 Cláusula da Reserva do Possível e os Princípios Orçamentários. 3.2 Mínimo Existencial e Direito à Segurança Social. 3.3 O princípio da Vedação do Retrocesso. 3.4 A Sociedade Civil Pouco Atuante ou Politizada e os Altos Graus de Miserabilidade da População. 4. Os Instrumentos Jurídicos Adequados. 4.1 A Universalização e o Princípio da Igualdade. 4.2 As Demandas Coletivas e Individuais. Conclusões. Referências Bibliográficas.
A proteção judicial dos direitos sociais constitui, atualmente, questão da mais alta relevância e vem sendo discutida tanto na doutrina como na jurisprudência.
Na história recente de nosso país, houve grande evolução no tratamento dos direitos previstos na Constituição da República, porquanto não se reconhecia, outrora, a efetividade das normas constitucionais.
Ao contrário, existe número significativo de decisões judiciais, inclusive do Supremo Tribunal Federal[1] (guardião máximo da supremacia constitucional), que condenam o Estado lato sensu, aí considerados a União, os Estados-membros e os Municípios, à concretização de determinado direito social com previsão na Constituição da República, em especial, direitos à saúde e à educação.
Todavia, as referidas decisões judiciais provocam o surgimento de alguns questionamentos teóricos como a efetiva caracterização dos direitos sociais como direitos prestacionais, subjetivos e fundamentais, as supostas ausência de legitimidade democrática e incapacidade técnica do Poder Judiciário para intervenção na hipótese de omissão estatal na implementação de políticas públicas dispostas constitucionalmente, além da possível violação do princípio da separação dos Poderes.
Além disso, face à escassez de recursos públicos, são analisados temas como a cláusula da reserva do possível, princípios orçamentários, direitos ao mínimo existencial, à segurança social e o princípio da vedação do retrocesso.
Ademais, a doutrina[2] examina os parâmetros para o controle judicial dos direitos sociais, sustentando que as ações coletivas seriam mais adequadas que as demandas individuais para efetivação das políticas públicas em consonância com o princípio da igualdade.
Sendo assim, o tema escolhido oferece indagações teóricas, bem como repercussão prática de grande importância para o contexto histórico de nosso país na atualidade.
A QUALIFICAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS: DIREITOS FUNDAMENTAIS, SUBJETIVOS PRIMA FACIE, PRESTACIONAIS?
Inicialmente, uma concepção brasileira tradicional entendia que os direitos sociais estavam contidos em normas meramente programáticas.
Contudo, a previsão dos direitos sociais no art. 6º da Constituição da República, Capítulo II, sob o Título II, referente aos “Direitos e Garantias Fundamentais”, promoveu o reconhecimento, por grande parte da doutrina[3], dos direitos sociais como direitos fundamentais.
Ingo Wolfgang Sarlet[4] preleciona que os direitos sociais são autênticos direitos fundamentais[5].
Nesse sentido, visão mais moderna identifica a efetividade das normas constitucionais, em consonância com o disposto no art. 5º, parágrafo 1º da Constituição da República, que prevê a aplicabilidade imediata de todos os direitos fundamentais.
Todavia, há juristas como Ricardo Lobo Torres[6], que restringe os direitos fundamentais sociais ao núcleo correspondente ao mínimo existencial, ou seja, apenas àqueles vinculados às condições mínimas para manutenção da dignidade da pessoa humana.
Fábio Konder Comparato[7] sustentou que os direitos sociais não possuiriam uma dimensão subjetiva. Desse modo, seus titulares não fariam jus à exigibilidade de prestações positivas, mas teriam direito apenas a um controle judicial da razoabilidade das políticas públicas para sua formalização.
Há quem considere os direitos sociais como direitos subjetivos definitivos. No entanto, face à escassez de recursos e ao princípio da separação dos poderes, somente alguns direitos sociais, dispostos em regras e não princípios, podem ser qualificados como direitos subjetivos definitivos, como, por exemplo, o direito ao ensino básico obrigatório (art. 208, I, CRFB).
Robert Alexy[8], Ingo Wolfgang Sarlet[9] e Paulo Gilberto Cogo Leivas[10] defendem que os direitos sociais são direitos subjetivos garantidos prima facie, ou seja, são direitos abarcados por princípios jurídicos, impondo-se uma ponderação no caso concreto para seu reconhecimento em definitivo.
Sendo assim, com base no princípio da proporcionalidade (subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito[11]), proceder-se-á à ponderação no caso concreto, verificando-se o núcleo essencial do direito social que se pretende proteger, bem como o direito fundamental que sofrerá restrição, desde não seja violado seu núcleo essencial[12].
O subprincípio da adequação equivale à aptidão dos meios em alcançar os fins visados. A necessidade corresponde à inexistência de outros meios que restrinjam em menor intensidade os direitos para atingir os fins pretendidos. O subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito “consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva.”[13]
Desse modo, deve ser eleito o meio menos gravoso para restrição a determinado direito fundamental e, portanto, adequado e necessário para os fins visados. Além disso, faz-se mister que se obtenha maior benefício com a proteção do núcleo essencial de um direito fundamental social do que sacrifício gerado pela restrição do outro direito fundamental (proporcionalidade em sentido estrito)[14].
Ressalta-se, entretanto, que, ainda que os direitos sociais não sejam considerados como direitos fundamentais, não se pode negar que os direitos sociais agrupam direitos prestacionais e direitos defensivos. Os primeiros apresentam uma dimensão positiva, ou seja, sua efetivação demanda uma atuação positiva do Estado e da sociedade, como, por exemplo, os direitos à saúde e à educação. Os segundos, chamados direitos negativos, impõem uma proteção contra a atuação do Estado e também de particulares.
No entanto, observa-se que muitos direitos possuem uma dimensão positiva e outra negativa como, por exemplo, o direito à moradia, que demanda proteção de não intervenção do Estado ou por terceiros, mas também pode ser exigido como uma prestação material do Estado.
Além disso, destaca-se que tanto os direitos subjetivos negativos como os direitos de caráter positivo apresentam custos[15]. O direito à liberdade, por exemplo, é um direito tipicamente defensivo, exigindo, porém, prestações relacionadas à segurança pública e os custos correspondentes.
Ricardo Lobo Torres[16] corrobora o entendimento acima mencionado, acrescentando novo aspecto à distinção entre direitos positivos ou prestacionais e negativos ou defensivos:
“Parece-nos, contudo, útil a distinção, por permitir o delineamento dos limites do status positivus libertatis, no que concerne às liberdades básicas e ao mínimo existencial, e ao seu contraste com o status positivus socialis.” (grifos nossos)
Ademais, sustenta-se a existência de uma dimensão objetiva dos direitos sociais, equivalente à sua força irradiante, transformando-os em diretrizes para interpretação do ordenamento jurídico. Nessa linha, há deveres do Estado de proteção e realização dos valores conexos aos direitos sociais.
A TUTELA JUDICIAL DOS DIREITOS SOCIAIS:
Legitimidade Democrática do Judiciário:
Atualmente, na maior parte das democracias adotadas globalmente, apenas o Legislativo e o Executivo são poderes legitimados pelo voto popular, na medida em que os juízes não são eleitos. Nesse sentido, sustenta-se o caráter antidemocrático do controle dos direitos sociais pelo Judiciário.
No entanto, a legitimação[17] do Judiciário se dá pela tutela dos direitos fundamentais, com fulcro na Carta Magna, bem como na motivação de suas decisões, com explicitação e desenvolvimento dos argumentos escolhidos para fundamentar determinado resultado.
Outrossim, adotando-se a corrente que qualifica os direitos sociais como direitos subjetivos prima facie, faz-se mister a aplicação da ponderação no caso concreto, considerando-se, de um lado, os princípios constitucionais formais restritivos, quais sejam, os princípios democrático e da separação de poderes e de outro, os princípios materiais correspondentes aos direitos fundamentais sociais.
Nessa linha, preleciona Paulo Gilberto Cogo Leivas[18]:
“No modelo aqui desenvolvido, que segue a teoria externa das restrições, os princípios democrático e da separação dos poderes, que efetivamente conferem, aos Poderes Legislativo e Executivo uma legitimação privilegiada para a conformação e execução dos direitos fundamentais sociais, são princípios constitucionais que restringem amiúde os direitos fundamentais sociais prima facie, porém não funcionam como obstáculos à efetividade destes direitos em caso de omissão ou ação insuficiente, inadequada ou desnecessária dos Poderes Legislativo e Executivo.
Os direitos fundamentais sociais somente serão restringidos, contudo, se, após submetidos à análise da proporcionalidade em sentido estrito, concluir-se que os chamados princípios formais (princípio democrático e separação de poderes) e os princípios materiais (v.g., os direitos fundamentais sociais de terceiros) apresentarem-se como mais importantes no caso concreto, segundo a lei da ponderação, que os próprios direitos fundamentais sociais.” (grifos nossos)
Destaca-se, ainda, que a Constituição da República consagrou os direitos sociais como direitos fundamentais, bem assim, previu, no art. 5º, XXXV, o princípio, segundo o qual, a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
A alegação de que a atuação do Judiciário seria antidemocrática pode ser, segundo Daniel Sarmento[19], relativizada, ou mesmo afastada, com a apresentação de três argumentos.
O primeiro fundamento seria a existência de uma crise da democracia representativa, agravada, em nosso país, na medida em que o povo tem baixa ou nenhuma confiança nos parlamentares e integrantes do Executivo. Desse modo, face à crise de credibilidade das instituições de representação popular, a atuação do Judiciário na proteção dos direitos sociais seria não só legitimada, mas bem-vinda.
Além disso, a liberdade e cidadania somente podem ser efetivamente exercidas se são garantidas condições mínimas para vida com dignidade.
Nesse sentido, ensina Ricardo Lobo Torres[20] que “de nada adianta ser titular da liberdade de expressão se não se possui a educação mínima para a manifestação de ideias”.
Ademais, o Poder Judiciário tem o dever de aplicar as normas constitucionais, inclusive aquelas relativas aos direitos fundamentais sociais. Destarte, faz parte da democracia o controle, pelo Judiciário, do Executivo e do Legislativo, conforme a teoria dos freios e contrapesos[21].
Entretanto, apesar de ser extremamente importante a atuação do Judiciário na proteção dos direitos sociais, não se está advogando a substituição do Executivo e do Legislativo na escolha de políticas públicas e gerenciamento dos recursos públicos correspondentes. Prega-se, na verdade, o seu poder-dever em atuar na garantia de efetividade dos direitos sociais tutelados constitucionalmente.
Capacidade Técnica do Judiciário e Autocontenção Judicial:
Outra importante questão a ser analisada se refere à capacidade técnica do Judiciário para proteção dos direitos sociais, com intervenção nas políticas públicas.
Os juízes não, necessariamente, possuem o conhecimento específico requerido para tomar decisões complexas, em especial, de alocação de recursos públicos.
Ao contrário, os Poderes Executivo e Legislativo estão, em tese, mais bem amparados e aparelhados, possuindo servidores técnicos, especializados, para consultoria e assessoria para formalização de determinadas escolhas, que podem abarcar aspectos políticos e econômicos.
Todavia, a doutrina mais moderna[22] defende que o ato administrativo discricionário pode ser controlado pelo Judiciário, desde que sejam observados os princípios da legalidade, da razoabilidade e proporcionalidade.
Contudo, deve se atentar para o fato de que, como explicitado anteriormente, os principais personagens na gestão das políticas públicas devem ser os Poderes Executivo e Legislativo, considerando-se o preparo técnico de seus quadros de pessoal e a observância dos princípios democrático e da separação dos poderes.
Desse modo, defende-se a contenção de ativismo judicial exagerado, na medida em que os principais destinatários das normas constitucionais para implementação de direitos prestacionais são os Poderes Legislativo e Executivo, que possuem legitimação privilegiada para realização dos direitos fundamentais sociais.
Ressalta-se, ainda, que para a efetivação dos direitos consagrados constitucionalmente, com desenvolvimento da democracia brasileira, faz-se mister a participação ativa da população na área pública para cobrança de promessas eleitorais e até mesmo para fiscalização do orçamento público, da alocação de recursos a determinadas políticas públicas eleitas.
Rogério Gesta Leal[23] conclui, com maestria, a questão analisada, no sentido de que “…o Poder Judiciário (ou qualquer outro Poder Estatal) não tem o condão de make public choices, mas pode e deve assegurar aquelas escolhas públicas já tomadas por estes veículos, notadamente as insertas no Texto Político…”
Ademais, o Ministro Celso de Mello, em caso emblemático do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 45/DF[24], manifestou-se no sentido de que não compete, aprioristicamente, ao Judiciário a formulação e implantação de políticas públicas:
“tal incumbência, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.”
Em face do exposto, destaca-se, mais uma vez, a necessidade de autocontenção judicial na proteção dos direitos sociais, segundo Ingo Wolfgang Sarlet[25]:
“No que diz com a atuação do Poder Judiciário, não há como desconsiderar o problema da sua prudente e responsável auto-limitação funcional (do assim designado judicial self-restraint), que evidentemente deve estar sempre em sintonia com a sua necessária e já afirmada legitimação para atuar, de modo pró-ativo, no controle dos atos do poder público em prol da efetivação ótima dos direitos (de todos os direitos) fundamentais.” (grifos nossos)
Da mesma maneira, sustenta Luís Roberto Barroso[26]:
“Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou de conhecimento específico. Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis podem recomendar uma posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça, sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público.” (grifos nossos)
A ESCASSEZ DE RECURSOS PÚBLICOS E A CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL
Cláusula da Reserva do Possível e os Princípios Orçamentários:
A Cláusula da Reserva do Possível é sustentada, com frequência, pela Fazenda Pública, para argumentar a necessidade de impor limites à efetivação dos direitos sociais.
A referida cláusula apresenta um aspecto fático e outro jurídico. O aspecto fático da reserva do possível corresponde à limitação quanto à efetiva existência de recursos públicos para fazer frente aos custos dos direitos, tanto os positivos ou prestacionais, como os negativos ou defensivos. O aspecto jurídico diz respeito à necessidade de previsão orçamentária para o Estado realizar despesas.
Ingo Wolfgang Sarlet[27] sustenta que a reserva do possível apresenta dimensão tríplice.
A reserva do possível estabelece limites fático e jurídico à concretização dos direitos sociais. Contudo, poderá ser utilizada como garantia dos direitos fundamentais, em hipótese de conflito de interesses, em que, em virtude da escassez de recursos, verificados critérios de proporcionalidade e razoabilidade, elege-se determinado núcleo essencial de um direito fundamental para proteção em detrimento de outro[28].
Diante da escassez de recursos públicos, impõe-se a fundamentação e fixação de critérios objetivos para escolha de determinadas políticas públicas e não de outras.
Como explicitado no Capítulo 3, os principais personagens para estabelecimento de critérios e formalização de escolhas, no que concerne a políticas públicas, são os Poderes Executivo e Legislativo, além da saudável atuação da sociedade civil em um Estado Democrático de Direito.
O princípio da legalidade da despesa impõe a previsão orçamentária para realização de despesas, bem como a previsão das receitas correspondentes.
Nesse sentido, compete, prioritariamente, ao Legislativo dispor, por meio da lei orçamentária, quanto aos recursos a serem despendidos para implementação de alguns direitos sociais.
Faz-se mister ressaltar, contudo, que a ampla liberdade e discricionariedade do legislador são limitadas pelas disposições contidas na Constituição da República.
Nessa linha, caberá ao Judiciário exercer o controle das escolhas realizadas pelos outros poderes. Esse controle deve se dar no caso concreto, com fulcro na ponderação de interesses[29]. Deve ser utilizado o princípio da proporcionalidade, verificando-se o núcleo essencial do direito fundamental que se pretende proteger e o grau de restrição a que se sujeitará o outro direito, desde que não seja atingido seu núcleo essencial[30].
Na hipótese de colisão entre direitos fundamentais, utiliza-se a técnica de ponderação[31], no caso concreto, com base no princípio da razoabilidade-proporcionalidade. Destarte, o aplicador do direito deve realizar, segundo Luís Roberto Barroso, “concessões recíprocas” entre os valores em conflito, preservando-se o máximo de cada um.
Ademais, impõe-se a preservação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, sob pena de criação de restrições inconstitucionais[32].
Nessa linha, manifestou-se o Ministro Celso de Mello[33] do Supremo Tribunal Federal:
“Entendo que a superação dos antagonismos existentes entre princípios constitucionais há de resultar da utilização, pelo Supremo Tribunal Federal, de critérios que lhe permitam ponderar e avaliar, ‘hic e nunc’, em função de determinado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta, qual deva ser o direito a ponderar no caso, considerada a situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto, a utilização do método da ponderação de bens e interesses não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, tal como adverte o magistério da doutrina.” (grifos nossos)
Busca-se, desse modo, garantir o mínimo existencial, ou seja, as condições mínimas para a vida do ser humano, de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Daniel Sarmento[34] apresenta observações importantes quanto à cláusula da reserva do possível, a previsão orçamentária e o controle judicial:
“Penso, em síntese, que a ausência de previsão orçamentária é um elemento que deve comparecer na ponderação de interesses que envolve a adjudicação dos direitos fundamentais sociais previstos de forma principiológica. Trata-se de um fator relevante, mas que está longe de ser definitivo, podendo ser eventualmente superado de acordo com as peculiaridades do caso.”
Além disso, o referido jurista sustenta, com razão, que, na hipótese de utilização da reserva do possível, pela Fazenda Pública, como matéria de defesa, em processo judicial, o ônus probatório quanto à inexistência de recursos públicos deveria recair sobre o ente público, porquanto somente este teria a possibilidade fática de provar o alegado[35].
Ademais, o Ministro Celso de Mello, no julgamento, mencionado anteriormente, da ADPF nº 45/DF[36], foi enfático:
“Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese, mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa, criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, deste modo, que a cláusula da reserva do possível, ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível, não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido essencial de fundamentalidade.” (grifos nossos)
Mínimo Existencial e Direito à Segurança Social:
O mínimo existencial consiste nas condições mínimas de existência humana, com dignidade, como, por exemplo, o direito à saúde, à alimentação, à moradia, à educação.
Destarte, as condições mínimas de sobrevivência do homem não podem ser objeto de intervenção por parte do Estado, exigindo-se, ainda, prestações estatais positivas.
Nesse sentido, ausentes as condições mínimas de vida digna, nas palavras de Ricardo Lobo Torres, “cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais de liberdade.”[37]
Ricardo Lobo Torres[38] preleciona sobre o mínimo existencial, sustentando que “a retórica do mínimo existencial não minimiza os direitos sociais, senão que os fortalece extraordinariamente na sua dimensão essencial”.
O constitucionalista Luís Roberto Barroso[39] conceitua o mínimo existencial como “as condições elementares de educação, saúde e renda que permitam, em uma determinada sociedade, o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida no processo político e no debate político.”
Desse modo, o Ministro Celso de Mello, no julgamento da ADPF nº 45/DF[40], defendeu a tutela jurisdicional das políticas públicas na hipótese em que os Poderes Legislativo e Executivo atuarem visando ao estabelecimento da ineficácia dos direitos sociais:
“como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo.” (grifos nossos)
O mínimo existencial apresenta fundamentos instrumentais, como a proteção da liberdade material e da democracia, consubstanciada na participação efetiva dos cidadãos no espaço público. Todavia, o argumento não-instrumental é o principal, na medida em que se considera um fim em si mesmo a garantia das condições mínimas de existência para a vida digna.
Daniel Sarmento[41] faz algumas considerações quanto à cláusula da reserva do possível face ao mínimo existencial:
“Sem embargo, discordo daqueles que afirmam que o direito ao mínimo existencial é absoluto, não se sujeitando à reserva do possível. (…)
Em suma, não me parece que o mínimo existencial possa ser assegurado judicialmente de forma incondicional, independentemente de considerações acerca do custo de universalização das prestações demandadas. (…)
Em outras palavras, a inserção de determinada prestação no âmbito do mínimo existencial tende a desequilibrar a ponderação de interesses para favorecer a concessão do direito vindicado. Mas não existe um direito definitivo à garantia do mínimo existencial, imune a ponderações e à reserva do possível.”(grifos nossos)
O direito ao mínimo existencial está intimamente ligado à ideia de segurança social, porquanto aquele garante as condições mínimas para uma vida digna em sociedade. Há quem faça referência, inclusive, a um Estado de Segurança, fundado no princípio da solidariedade.[42]
A justiça social é traduzida por necessária distribuição de rendas, com fulcro nos princípios da igualdade e solidariedade para formação de uma sociedade equilibrada, impondo-se a intervenção estatal, com efetivação das normas constitucionais.
Ingo Wolfgang Sarlet[43] manifestou-se acerca da segurança social:
“Da mesma forma, inquestionável a conexão direta entre a segurança jurídica (nas suas diversas manifestações) e as demais dimensões referidas, notadamente da segurança social e pessoal, tal qual sumariamente delineadas, já que a segurança social – aqui destacada pela sua relevância para o presente ensaio – também envolve necessariamente um certo grau de proteção dos direitos sociais (acima de tudo no âmbito dos benefícios de cunho existencial) contra ingerências dos órgãos estatais, assim como contra violações provindas de outros particulares.” (grifos nossos)
O princípio da Vedação do Retrocesso:
O princípio da vedação do retrocesso tem sua aplicação mais significativa nas chamadas “cláusulas pétreas”, em consonância com o disposto no art. 60, parágrafo 4º, IV da Constituição da República.
Desse modo, o dispositivo precitado dispõe que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (…) os direitos e garantias individuais.”.
A doutrina[44] interpreta o referido artigo como proteção ao núcleo essencial de todos os direitos fundamentais, incluídos, naturalmente, os direitos sociais.
Destarte, o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais é garantido até mesmo contra eventual reforma constitucional.
Além disso, o princípio da vedação do retrocesso envolve considerações a respeito dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança. Dessa forma, os atos do Poder Público deveriam se sujeitar a patamares mínimos de continuidade da ordem jurídica, bem como deveriam preencher requisitos de confiabilidade, clareza, racionalidade e transparência para garantir a segurança jurídica do cidadão, com manutenção de suas próprias posições jurídicas[45].
A vedação do retrocesso abrange não só a reforma constitucional, como referido anteriormente, mas a alteração legislativa, com retroação e exclusão de determinados direitos, bem como a atuação administrativa do Estado, com extinção de certos programas e consequente ineficácia de direitos sociais garantidos em momento prévio.
Há vinculação do legislador ao núcleo essencial efetivado no âmbito dos direitos sociais, haja vista que o contrário equivaleria à violação dos mandamentos constitucionais que dispõem sobre os direitos fundamentais sociais.
Ingo Wolfgang Sarlet[46] reforça a adoção do princípio da vedação do retrocesso pela doutrina brasileira:
“No plano doutrinário, valemo-nos da lição de Luís Roberto Barroso, que, de certo modo, representa o entendimento que (a despeito de algumas posições reticentes) tem – cada vez mais – dominado o nosso cenário jurídico. Para o notável constitucionalista carioca, “por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido”.” (grifos nossos)
A vedação do retrocesso tem como fundamentos[47]: o princípio do Estado Democrático de Direito, que pressupõe, por sua vez, a garantia dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança; o princípio da dignidade da pessoa humana, com efetivação das condições mínimas de vida digna; o princípio da máxima eficácia e efetividade das normas constitucionais, em especial, dos direitos fundamentais; a proteção constitucional contra retroatividade, prevista no art. 5º, XXXVI da CRFB, o qual dispõe que a “lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”; a proteção da confiança equivalente à exigência de boa-fé subjetiva e objetiva na relação com particulares; a vinculação dos órgãos estatais a atos administrativos anteriores; a efetividade das normas constitucionais; aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, como, por exemplo, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[48], no sentido da progressiva implementação dos direitos sociais, em consonância com o art. 5º, parágrafo 2º da Constituição da República.
A Sociedade Civil Pouco Atuante ou Politizada e os Altos Graus de Miserabilidade da População:
O estágio de desenvolvimento em que se encontra nosso país revela graves desigualdades sociais, altos graus de miserabilidade e, por consequência, uma sociedade civil pouco atuante, porquanto a população não tem, na prática, a garantia das condições mínimas de existência de vida digna.
Desse modo, é afetada a própria liberdade de expressão do povo, bem como o conhecimento necessário quanto a seus direitos para a sua efetivação.
Destarte, esses fatores devem ser considerados quando da análise de alegação da reserva do possível para controle judicial dos direitos fundamentais sociais, como defende Daniel Sarmento[49]:
“Nesta lista de direitos a serem assegurados para a viabilização da democracia não devem figurar apenas os direitos individuais clássicos, como liberdade de expressão e direito de associação, mas também direitos às condições materiais básicas de vida, que possibilitem o efetivo exercício da cidadania. A ausência destas condições, bem como a presença de um nível intolerável de desigualdade social, comprometem a condição de agentes morais independentes dos cidadãos, e ainda prejudicam a possibilidade de que se vejam como parceiros livres e iguais na empreitada comum de construção da vontade política da sociedade. (…)
Contudo, me parece que o argumento é contraditório, já que a maior carência econômica, presente em países do Terceiro Mundo, torna ainda mais evidente a impossibilidade de realização ótima e concomitante de todos os direitos sociais. Por isso, o índice maior de pobreza não afasta a incidência da reserva do possível, mas antes acentua a sua importância.”(grifos nossos)
OS INSTRUMENTOS JURÍDICOS ADEQUADOS:
A Universalização e o Princípio da Igualdade:
A cláusula da reserva do possível poderia ser interpretada de três formas, segundo os ensinamentos de Daniel Sarmento[50].
Uma interpretação radical seria admitir a efetivação de direitos sociais em quase todas as situações, salvo quando restasse comprovada a ausência total de recursos públicos.
Outra possibilidade seria “conceber a reserva do possível como uma avaliação focada na tolerabilidade do impacto econômico da pretensão individual do titular do direito fundamental sobre o universo de recursos públicos.[51]”
Destarte, a efetivação do direito social poderia ser afastada apenas quando verificado impacto elevado sobre as contas públicas, admitindo-se a concessão individual de determinado benefício, ainda que o Estado não tenha recursos suficientes para estender o direito a outras pessoas, consoante o princípio da igualdade.
Todavia, o supracitado autor argumenta que a melhor interpretação é aquela, segundo a qual, “a reserva do possível fática deve ser concebida como a razoabilidade da universalização da prestação exigida, considerando os recursos efetivamente existentes.”
Dessa forma, sustenta-se, com fulcro no princípio da igualdade, que o Estado não deveria conceder a efetivação de determinado direito a um indivíduo se não tiver condições de estender o mesmo benefício a todos que se encontrarem nas mesmas condições fáticas.[52]
Além disso, considerados o princípio da igualdade e a desejável possibilidade de universalização de um benefício para a concessão judicial de um direito social, argumenta Daniel Sarmento[53]:
“Por isso, não concordo com a argumentação aduzida em algumas decisões judiciais em matéria de saúde, no sentido de que, tendo em vista a universalidade deste direito, seria irrelevante analisar se o autor da ação possui ou não os recursos necessários à aquisição da prestação demandada do Estado. Esta dado me parece fundamental, pois, num caso, o sacrifício eventualmente imposto pela denegação da pretensão repercute tão-somente sobre o patrimônio do paciente, enquanto no outro pode estar em jogo a sua própria vida. Temo que este tipo de raciocínio, num contexto de acesso não igualitário à Justiça, possa legitimar um uso enviesado dos direitos sociais que, de instrumentos de emancipação em favor dos mais fracos, acabem se transformando em artifícios retóricos manejados pelas classes favorecidas.”(grifos nossos)
Face à escassez de recursos públicos, impõe-se a observância de tratamento igualitário, admitindo-se a concessão de certo direito social somente quando possível sua universalização, consoante Paulo Gilberto Cogo Leivas[54] “o mandado de igualdade material exige um tratamento desigual quando há razão suficiente para tanto”.
Em processos judiciais, em regra, trata-se de questões bilaterais e, no caso em testilha, observa-se o pedido de um indivíduo de efetivação de um direito social face ao Estado.
Sendo assim, considerada a escassez de recursos públicos, deve ser levada em conta a possibilidade de universalização do benefício, bem como a razoabilidade e essencialidade da concessão do direito social.
Luís Roberto Barroso[55] preleciona que “o benefício auferido pela população com a distribuição de medicamentos é significativamente menor que aquele que seria obtido caso os mesmos recursos fossem investidos em outras políticas de saúde pública.”
Impõe-se, portanto, a reflexão sobre casos em que o Judiciário concede, por exemplo, um tratamento de saúde extremamente caro e sem qualquer comprovação de sua eficácia, enquanto aqueles recursos públicos deixam de ser utilizados para políticas de prevenção da mesma doença relativamente a milhares de pessoas ou em saneamento básico e higiene, que, da mesma maneira, poderiam evitar diversas moléstias de inúmeras pessoas.
Nessa linha, ensina Daniel Sarmento[56]:
“O processo judicial foi pensado com foco nas questões bilaterais da justiça comutativa, em que os interesses em disputa são apenas aqueles das partes devidamente representadas. Contudo, a problemática subjacente aos direitos sociais envolve sobretudo questões de justiça distributiva, de natureza multilateral, já que, diante da escassez, garantir prestações a alguns significa retirar recursos do bolo que serve aos demais. Boas decisões nesta área pressupõem a capacidade de formar uma adequada visão de conjunto, o que é muito difícil de se obter no âmbito de um processo judicial. (…) Na verdade, o processo judicial tende a gerar uma “visão de túnel”, em que muitos elementos importantes para uma decisão bem informada são eliminados do cenário”.(grifos nossos)
Os obstáculos, acima descritos, quanto ao controle judicial das políticas públicas, podem ser reduzidos com a adoção, pelos juízes, de peritos especializados, inclusive no que diz respeito aos efeitos econômicos da decisão, bem assim com a maior participação de terceiros nas demandas judiciais (amici curiae) e realização de audiências públicas.
As Demandas Coletivas e Individuais:
Os problemas apontados no item 5.1 têm melhores chances de serem resolvidos ou, ao menos, atenuados, com escolha preferencial de ações coletivas em detrimento de individuais para efetivação dos diretos fundamentais sociais.
Nas demandas coletivas, o juiz pode perceber, com maior clareza, o impacto financeiro de sua decisão nas finanças públicas e promover a macrojustiça.
Ademais, seria facilitada a reflexão quanto à possibilidade de universalização do benefício requerido.
Além disso, as ações coletivas abrangem toda uma categoria de pessoas, inclusive os mais pobres e miseráveis, diversamente do que sói ocorrer nas demandas individuais. Isso porque, as ações individuais ficam restritas, em regra, à classe média, que possui maior conhecimento sobre seus próprios direitos e, portanto, maior acessibilidade efetiva à justiça.[57]
Luís Roberto Barroso[58] esclarece quanto à escolha entre as demandas individuais e as ações coletivas:
“As políticas públicas de saúde devem seguir a diretriz de reduzir as desigualdades econômicas e sociais. Contudo, quando o Judiciário assume o papel de protagonista na implementação dessas políticas, privilegia aqueles que possuem acesso qualificado à Justiça, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem arcar com os custos do processo judicial. Por isso, a possibilidade de o Judiciário determinar a entrega gratuita de medicamentos mais serviria à classe média que aos pobres. (…)
Por fim, há ainda a crítica técnica, a qual se apoia na percepção de que o Judiciário não domina o conhecimento específico necessário para instituir políticas de saúde. O Poder Judiciário não tem como avaliar se determinado medicamento é efetivamente necessário para se promover a saúde e a vida. Mesmo que instruído por laudos técnicos, seu ponto de vista nunca seria capaz de rivalizar com o da Administração Pública. O juiz é um ator social que observa apenas os casos concretos, a microjustiça, ao invés da macrojustiça, cujo gerenciamento é mais afeto à Administração Pública.” (grifos nossos)
No mesmo sentido, defende Ingo Wolfgang Sarlet[59] que estaria, por meio da ação coletiva, “assegurado, por esta via um tratamento mais isonômico e racional, além de evitar ao máximo o casuísmo”.
Luís Roberto Barroso[60] sustenta que a discussão abstrata, em ação coletiva, permite uma análise do contexto geral, diversamente do que ocorre nas ações individuais, na medida em que os legitimados ativos terão maior possibilidade de trazer, aos autos, elementos necessários para análise do caso, como “as dimensões da necessidade” e a “quantidade de recursos disponível como um todo[61].”
Ademais, o precitado autor defende que, nas demandas coletivas, será possível a realização da macrojustiça, com prévia análise de “alocação de recursos ou a definição de prioridades em caráter geral”[62]. Pode ser examinado, pelo Judiciário, “o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis”[63] de uma decisão, o que não se alcançaria em uma ação individual.
Outrossim, o referido autor preleciona que, nas ações coletivas, com efeitos erga omnes, poderão ser garantidas “a igualdade e universalidade no atendimento da população”. Dessa maneira, “a atuação do Judiciário não tende a provocar o desperdício de recursos públicos, nem a desorganizar a atuação administrativa, mas a permitir o planejamento da atuação estatal.[64]”
Os direitos sociais são direitos fundamentais, com fulcro no art. 6º da Constituição da República, impondo-se a incidência do art. 5º, parágrafo 1º da CRFB, que dispõe sobre a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.
Ademais, considera-se que os direitos sociais são direitos subjetivos prima facie, abarcados por princípios jurídicos. Nesse sentido, faz-se necessária uma ponderação de interesses, no caso concreto, com base no princípio da razoabilidade-proporcionalidade, para seu reconhecimento definitivo.
Em regra, defende-se que os direitos sociais seriam direitos prestacionais, exigindo uma prestação material do Estado.
Contudo, verifica-se que tanto os direitos prestacionais ou positivos como os direitos defensivos ou negativos acarretam custos, havendo a necessidade de previsão orçamentária para as receitas e despesas correspondentes.
Os principais personagens na implementação das políticas públicas são os Poderes Legislativo e Executivo, legitimados pelo voto popular. Ademais, deve ser incentivada, no Estado Democrático de Direito, a saudável participação da sociedade civil na esfera pública.
Todavia, admite-se o controle judicial da efetivação dos direitos sociais nas hipóteses de omissão, ação insuficiente ou inadequada do Executivo e Legislativo, de acordo com a teoria dos freios e contrapesos.
Tratando-se os direitos sociais como direitos subjetivos prima facie, faz-se mister a aplicação da técnica de ponderação no caso concreto, considerando-se, de um lado, os princípios constitucionais formais restritivos, quais sejam, os princípios democrático e da separação de poderes, e de outro, os princípios materiais correspondentes aos direitos fundamentais sociais.
A legitimação do Judiciário se fundamenta na tutela das normas constitucionais relativas aos direitos fundamentais, na motivação das decisões judiciais, bem assim na existência de uma crise de credibilidade, junto ao povo, das instituições de representação popular.
Outrossim, ressalta-se que a liberdade e a cidadania, num contexto democrático, somente podem ser efetivamente exercidas se garantidos os direitos sociais, em especial, as condições mínimas para vida com dignidade.
No entanto, reconhece-se que os juízes não possuem, em regra, conhecimento específico necessário para tomar decisões complexas, em especial, de alocação de recursos públicos.
Isso porque os Poderes Executivo e Legislativo estão, em tese, mais bem amparados e aparelhados, possuindo servidores técnicos, especializados, para consultoria e assessoria para formalização de determinadas escolhas, que podem abarcar aspectos políticos e econômicos.
Sendo assim, defende-se a autocontenção judicial na proteção dos direitos sociais, com limitação do ativismo judicial exagerado.
Importante questão a ser analisada no âmbito da efetivação dos direitos sociais é a escassez de recursos públicos.
A cláusula da reserva do possível apresenta um aspecto fático, correspondente à limitação quanto à efetiva existência de recursos públicos para custeio dos direitos, e um aspecto jurídico, quanto à necessidade de previsão orçamentária para o Estado efetuar despesas.
O princípio da legalidade da despesa impõe a previsão orçamentária para a realização de despesas, cabendo ao Legislativo, prioritariamente, dispor quanto à existência de receitas correspondentes. Entretanto, a liberdade e discricionariedade do legislador são limitadas pelas normas constitucionais.
Destaca-se, ainda, que, na hipótese de utilização da reserva do possível, pela Fazenda Pública, como matéria de defesa, em processo judicial, o ônus probatório quanto à inexistência de recursos públicos deve recair sobre o ente público, porquanto somente este tem a possibilidade fática de provar o alegado.
O mínimo existencial, conceituado como as condições elementares de existência humana digna, reforça a necessidade da efetivação dos direitos sociais, na medida em que consiste em um fim em si mesmo (argumento não-instrumental), bem como apresenta um fundamento instrumental, equivalente ao acesso aos valores civilizatórios, proteção da liberdade material e da democracia, com participação efetiva dos cidadãos no processo e debate políticos.
O princípio da vedação do retrocesso envolve considerações a respeito dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança. Dessa forma, os atos do Poder Público deveriam se sujeitar a patamares mínimos de continuidade da ordem jurídica, bem como deveriam preencher requisitos de confiabilidade, clareza, racionalidade e transparência para garantir a segurança jurídica do cidadão, com manutenção de suas próprias posições jurídicas.
A cláusula da reserva do possível fática deve ser interpretada como a possibilidade razoável de universalização de determinado direito social, verificados os recursos efetivamente existentes.
Face à escassez de recursos públicos e considerado o princípio da igualdade, defende-se que o Estado não deveria conceder determinada prestação material a um indivíduo se não tiver condições de estender o mesmo benefício a todos que se encontrarem em situações fáticas idênticas.
Impõe-se a observância da possibilidade de universalização de um direito social, bem como a razoabilidade e essencialidade da concessão do benefício.
Sem embargo, diversos problemas podem surgir, em uma demanda individual, dirigida a uma questão bilateral, no controle judicial das políticas públicas.
Isso porque, sob o exame econômico do direito, o juiz pode ficar restrito ao caso concreto apresentado e não ter acesso à visão do conjunto. Desse modo, o Judiciário pode conceder um tratamento extremamente custoso a um indivíduo, retirando a disponibilidade daqueles recursos públicos para saneamento básico, por exemplo, ou políticas de prevenção de doenças relativamente a milhares de pessoas.
Os problemas descritos acima podem ser reduzidos com a adoção, pelos juízes, de peritos especializados, inclusive no que diz respeito aos efeitos econômicos da decisão, bem assim com a maior participação de terceiros nas demandas judiciais (amici curiae) e realização de audiências públicas.
Contudo, as questões referidas poderiam ser solucionadas com a escolha preferencial de ações coletivas em detrimento de ações individuais para efetivação dos direitos fundamentais sociais.
As demandas coletivas permitem ao julgador uma análise do contexto geral, na medida em que os legitimados ativos têm melhores condições de apresentar, nos autos, os benefícios necessários e requeridos pela população, bem como a totalidade dos recursos públicos disponíveis.
Desse modo, o juiz pode examinar, com maior precisão, a possibilidade de universalização do direito social pretendido, o impacto de sua decisão nas finanças públicas, evitando-se o risco de efeitos sistêmicos e indesejáveis. Nessa linha, promove-se a macrojustiça em lugar da microjustiça.
Outrossim, as ações coletivas admitem um tratamento mais igualitário da população, haja vista que são incluídos os mais pobres e miseráveis, diversamente do que sói ocorrer nas demandas individuais, restritas, em regra, à classe média, que tem maior conhecimento de seus direitos e, portanto, acessibilidade efetiva à justiça.
As demandas coletivas, notáveis por seus efeitos erga omnes, tendem, pois, a garantir, de forma mais abrangente, a observância do princípio isonômico e universalização da efetivação dos direitos sociais, porquanto se permite ao juiz um exame, mais próximo da realidade, no que concerne à disponibilidade e alocação dos recursos públicos.
Informações Sobre o Autor
Maria Laura Timponi Nahid
Procuradora Federal do Núcleo de Ações Prioritárias NAP da Procuradoria Regional Federal da 2 Região; Especialista em Direito Constitucional