Elemento normativo do tipo e legalidade cerrada no crime de uso indevido de informação privilegiada: considerações sobre a instrução 358 da Comissão de Valores Mobiliários

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Resumo: A partir do estudo doutrinário e de documentos normativos, o presente artigo pretende questionar a possibilidade ou não de a Instrução 358 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) apresentar conceitos e exemplos de condutas enquadradas no insider trading, tendo em vista que na égide criminal rege o princípio da legalidade cerrada.


Palavras-chave: Informação privilegiada. Elemento normativo. Legalidade.


Sumário: 1. Introdução. 2. Mercado de Capitais e informação privilegiada. 3. Elemento normativo do tipo, legalidade cerrada e informação privilegiada. 4. Conclusão. Referências.


1. Introdução


No atual cenário contemporâneo, caracterizado pela confluência de informações e pela interdisciplinaridade, é indubitável a interligação da ciência jurídica com os outros ramos do saber, em especial com as finanças, as ciências contábeis e econômicas. Inclusive, é justamente nessa esfera de interligação que se encontram os crimes contra a ordem econômica, financeira e tributária.


Antes do advento da Lei n. 10.303/01, a manipulação de mercado, o uso indevido de informação privilegiada e o exercício irregular de cargo, profissão, atividade ou função eram condutas sancionadas apenas na esfera cível-administrativa, inexistindo quaisquer intervenções do Direito Penal. Contudo, em razão de experiências mundiais vivenciadas especialmente pelos Estados Unidos, o legislador brasileiro percebeu a importância de se conferir uma tutela jurídica mais ampla a tais situações, acarretando seu tratamento também pelo Direito Penal.


Pautadas em perspectivas micro e macrojurídicas, verificou-se que tais fenômenos financeiros e econômicos podem ter efeitos entre as partes e influir no mercado, merecendo atenção do Direito. Eis que, assim, a Lei n. 10.303/01 acrescenta, respectivamente, esses três tipos penais nos artigos 27-C, 27-D e 27-E da Lei n. 6.385/76, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários – CVM.


O presente trabalho se centra tão-somente no crime de uso indevido de informação privilegiada, conhecido também por insider trading, previsto no art. 27-D da Lei n. 6.385/76, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 10.303/01, que dispõe:


“Art. 27-D. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários: 


Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime”. 


 A partir de uma leitura do referido tipo penal, percebe-se a necessidade de um maior conhecimento do ambiente econômico-financeiro, dos termos técnicos e da estrutura fática que lhe são próprios para a conceituação de informação relevante e, logo, para a concretização do crime de uso indevido de informação privilegiada. A grande dificuldade que se impõe ao operador do Direito é justamente o emprego de elementos normativos que remetem a um conhecimento de outras áreas do saber, implicando na imprescindível visão multidisciplinar para melhor compreensão do tema que se propõe.


2. Mercado de capitais e informação privilegiada


O mercado de capitais apresenta uma sistemática interessante para o desenvolvimento da economia por permitir a captação de recursos pela sociedade empresária a partir de títulos por ela mesma emitidos. Assim, Pinheiro leciona que:


“o mercado de capitais pode ser definido como um conjunto de instituições e de instrumentos que negociam com título e valores mobiliários, objetivando a canalização dos recursos dos agentes compradores para os agentes vendedores, ou seja, o mercado de capitais representa um sistema de distribuição de valores mobiliários que tem o propósito de viabilizar a capitalização das empresas e dar liquidez aos títulos emitidos por elas.” (PINHEIRO, 2008)


Diz-se, então, que quando uma sociedade empresária precisa de recursos financeiros para algum investimento, ela negocia seus títulos no mercado, passando a pagar aos investidores juros e dividendos sobre o capital investido. Como exemplos de títulos negociados no mercado de capitais brasileiro, destacam-se as debêntures, os commercial papers, os bônus de subscrição, os certificados de depósitos de valores mobiliários e os índices representativos de carteira de ações.


Nesse contexto, a percepção de informação privilegiada no mercado de capitais implica em reflexos tanto econômicos, voltados à indeterminação dos valores dos títulos negociados, quanto ético-jurídicas, relacionados ao descrédito no mercado, de sua maculação por práticas que tratam os investidores de forma desigual.


Ao tipificar o uso indevido de informação privilegiada, o que se quis, portanto, foi garantir o acesso à informação pela generalidade dos investidores em condições de igualdade, bem como afastar operações fraudulentas do mercado de capitais, garantindo sua eficácia e credibilidade.


Na égide jurídica brasileira, compete à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) fiscalizar o mercado de capitais, verificando o vazamento e uso indevido de informação privilegiada. São suas funções, dentre outras: assegurar o funcionamento eficiente e regular dos mercados de bolsa e de balcão; proteger os titulares de valores mobiliários contra emissões irregulares e atos ilegais de administradores e acionistas controladores de companhias ou de administradores de carteira de valores mobiliários; assegurar o acesso do público a informações sobre valores mobiliários negociados e as companhias que os tenham emitido; promover a expansão e o funcionamento eficiente e regular do mercado de ações e estimular as aplicações permanentes em ações do capital social das companhias abertas.


Ao se verificar o uso indevido de informação privilegiada, ocorrerá um intercâmbio entre a atuação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o Ministério Público, no sentido de aquela fornecer a este documentos e informações necessários ao oferecimento da ação penal.


3. Elemento normativo do tipo, legalidade cerrada e informação privilegiada


Diante da impossibilidade de prever todas as condutas de possível ocorrência na sociedade que causem lesão ou perigo de lesão a bens jurídicos tutelados, o legislador penal brasileiro cria tipos abertos, nos quais não descreve de forma precisa e completa a conduta indesejada; trabalha com elementos normativos do tipo que necessitam de valoração e complementação pelo aplicador do Direito.


Segundo Cezar Roberto Bitencourt, “os elementos normativos são aqueles para cuja compreensão é insuficiente desenvolver uma atividade meramente cognitiva, devendo-se realizar uma atividade valorativa” (BITENCOURT, 2006, p. 328). Implicam, portanto, num juízo de valor.


Vê-se que o art. 27-D da Lei n. 6.385/76 estabelece como elemento do tipo a existência de “informação relevante ainda não divulgada ao mercado”, permitindo ao aplicador do Direito uma valoração de juízos do que seja informação privilegiada. A grande dificuldade é que tal elemento normativo remete a um conhecimento de economia e finanças, na maioria das vezes, não dominado no meio jurídico, fazendo com que essa conduta não sofra a incidência do Direito Penal.


Nas palavras de Rodrigo de Grandis, citado por Edemilson Mendes da Silva, o uso de informação privilegiada é um crime extremamente difícil de ser demonstrado: as provas são sempre indiretas, indiciárias e acabam por resvalar nos obstáculos da interpretação ainda tradicional do Direito Penal Econômico. É uma criminalidade moderna: um fenômeno novo” (GRANDIS apud SILVA, 2011).


Com o objetivo de garantir maior concretude ao que se entende por informação privilegiada no insider trading, os Estados Unidos da América, por sua Comissão de Segurança e Câmbio – SEC, acrescentou em seu regramento exemplos de condutas ilegais, dentre os quais se encontram: 1) a venda de informações de segurança por oficiais incorporados, diretores e empregados, após aprenderem o seu significado; 2) a venda de informações por amigos, associados do negócio, membros da família e outros profissionais, tais como oficiais, diretores, e empregados, após tê-las recebido; 3) a venda das informações por empregados das empresas, da operação bancária, da agência corretora e da impressão, que a receberam com o objetivo de proporcionar serviços à entidade; 4) a venda das informações por empregados do governo que as aprenderam em razão do desempenho de suas funções; 5) outras pessoas que se apropriaram e aproveitaram as informações confidenciais de seus empregadores.


No Brasil, com o objetivo de também conferir maior concretude ao tipo legal elencado no art. 27-D da Lei n. 6.385/76, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) dispôs no art. 2º de sua Instrução 358/02, de 03 de janeiro de 2002, o que se entende por informação relevante:


“Art. 2º. Considera-se relevante, para os efeitos desta Instrução, qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembléia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-administrativo, técnico, negocial, ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável:


I – na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta ou a eles referenciados;


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II – na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter aqueles valores mobiliários;


III – na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titulares de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a eles referenciados.”


Seguindo a influência da regulamentação norte-americana, o parágrafo único do art. 2º da referida instrução apresentou exemplos de condutas ilegais aptas a configurarem o insider trading:


“Art. 2º Parágrafo único. Observada a definição do “caput”, são exemplos de ato ou fato potencialmente relevante, dentre outros, os seguintes:


I assinatura de acordo ou contrato de transferência do controle acionário da companhia, ainda que sob condição suspensiva ou resolutiva;


II mudança no controle da companhia, inclusive através de celebração, alteração ou rescisão de acordo de acionistas;


III celebração, alteração ou rescisão de acordo de acionistas em que a companhia seja parte ou interveniente, ou que tenha sido averbado no livro próprio da companhia;


IV ingresso ou saída de sócio que mantenha, com a companhia, contrato ou colaboração operacional, financeira, tecnológica ou administrativa;


V autorização para negociação dos valores mobiliários de emissão da companhia em qualquer mercado, nacional ou estrangeiro;


VI decisão de promover o cancelamento de registro da companhia aberta;


VII incorporação, fusão ou cisão envolvendo a companhia ou empresas ligadas;


VIII transformação ou dissolução da companhia;


IX mudança na composição do patrimônio da companhia;


X mudança de critérios contábeis;


XI renegociação de dívidas;


XII aprovação de plano de outorga de opção de compra de ações;


XIII alteração nos direitos e vantagens dos valores mobiliários emitidos pela companhia;


XIV desdobramento ou grupamento de ações ou atribuição de bonificação;


aquisição de ações da companhia para permanência em tesouraria ou cancelamento, e alienação de ações assim adquiridas;


XV lucro ou prejuízo da companhia e a atribuição de proventos em dinheiro;


XVI celebração ou extinção de contrato, ou o insucesso na sua realização, quando a expectativa de concretização for de conhecimento público;


XVII aprovação, alteração ou desistência de projeto ou atraso em sua implantação;


XVIII início, retomada ou paralisação da fabricação ou comercialização de produto ou da prestação de serviço;


XIX descoberta, mudança ou desenvolvimento de tecnologia ou de recursos da companhia;


XX modificação de projeções divulgadas pela companhia;


XXI impetração de concordata, requerimento ou confissão de falência ou propositura de ação judicial que possa vir a afetar a situação econômico-financeira da companhia.”


A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ressalta ainda a importância de se retomar o art. 155, §1º da Lei n. 6.404 (Lei das Sociedades Anônimas), que dispõe sobre o dever do administrador de companhia aberta de “guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários”, pelo que lhe é vedado se valer “da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários”.


Por isso, reitera em sua instrução n. 358 que:


“Art. 13 – Antes da divulgação ao mercado de ato ou fato relevante ocorrido nos negócios da companhia, é vedada a negociação com valores mobiliários de sua emissão, ou a eles referenciados, pela própria companhia aberta, pelos acionistas controladores, diretos ou indiretos, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária, ou por quem quer que, em virtude de seu cargo, função ou posição na companhia aberta, sua controladora, suas controladas ou coligadas, tenha conhecimento da informação relativa ao ato ou fato relevante.”


A partir desse quadro fático, a questão que urge é a possibilidade ou não de uma instrução conceituar e exemplificar condutas hábeis a configurar o crime de uso indevido de informação privilegiada, tendo em vista o Direito Penal é regido pelo princípio da legalidade.


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Com efeito, o princípio da legalidade “nasceu do anseio de estabelecer na sociedade humana regras permanentes e válidas, que fossem obras da razão e pudessem abrigar os indivíduos de uma conduta arbitrária e imprevisível da parte dos governantes” (BONAVIDES, 1994, p.112), ergueu-se principalmente diante da necessidade de se limitar arbitrariedades praticadas pelos monarcas absolutistas em prol dos direitos individuais.


Em especial na égide criminal, em que se trabalha com o conflito entre o direito à liberdade do indivíduo e o ius puniendi do Estado, a legalidade se destaca como um dos princípios mais fundamentais, de necessária atenção. Assim é que a Constituição da República Federativa do Brasil dispõe expressamente em seu artigo 5º, inciso XXXIX que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.


Rogério Greco, inclusive, defende que “a lei é a única fonte de Direito Penal quando se quer proibir ou impor condutas sob a ameaça de sanção” (GRECO, 2009, p. 94). Por isso, parte da doutrina entende que as instruções administrativas não poderiam regular as condutas a serem incriminadas, tal como a Instrução 358 da CVM. Defende-se que todos os elementos do tipo deveriam vir na lei em sentido estrito, cabendo ao aplicador do Direito a mera subsunção do fato à norma.


Entretanto, prevalece o entendimento de que a Instrução 358 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) não ofende o princípio da tipicidade cerrada do Direito Penal, eis que ela não traz norma penal incriminadora, mas apenas facilita, com a inserção de conceitos e exemplos, a compreensão do elemento normativo pelo aplicador do Direito. Como já ressaltado, para a concretização do crime de uso indevido de informação privilegiada, faz-se imprescindível a confluência de conhecimentos jurídicos, financeiros e econômicos. Por isso, revela-se aconselhável que uma entidade que tenha especialização no tema, com experiência técnica e prática, explicite algumas condutas que realmente afetem a órbita econômico-financeira do Estado, merecendo a proteção do Direito Penal.


4. Conclusão


Para a fluência regular do mercado de ações, imprescindível que as informações sejam ofertadas a todos os investidores de maneira equânime, evitando fraudes e demais ilegalidades. A publicidade é essencial para garantir a confiança que se tem no mercado mobiliário, sendo certo que a ocorrência de insider trading pode acarretar prejuízos que ultrapassam, em muito, o âmbito jurídico. Por isso, adveio a importância de o Direito Penal tipificar tal conduta, cuja regulamentação não mais poderia restar somente na esfera administrativa.


É impossível que o legislador brasileiro preveja todas as condutas hábeis a configurar o uso indevido de informação privilegiada, tendo em vista que as Finanças e a Economia são ciências caracterizadas pela mutabilidade. Daí a necessidade de se trabalhar com tipos penais abertos, especialmente diante do uso de elementos normativos do tipo, que permitam ao aplicador do Direito um juízo de valor condizente às circunstâncias do caso concreto e pertinente ao momento histórico e tecnológico que se vivencia.


Por fim, prevalece que a Instrução 358 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) não ofende o princípio da tipicidade cerrada do Direito Penal, eis que ela não traz norma penal incriminadora, mas apenas facilita, com a inserção de conceitos e exemplos, a compreensão do elemento normativo pelo aplicador do Direito. Não se deve olvidar que a configuração do crime de uso indevido de informação privilegiada exige do aplicador do Direito algumas noções de Finanças e de Economia. Por isso, é importante a atuação de uma entidade que tenha especialização no tema, com experiência técnica e prática, para conceituar e exemplificar condutas que realmente afetem a órbita econômico-financeira do Estado, merecendo a proteção do Direito Penal.


 


Referências bibliográficas:

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1

BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 1994.

BRASIL. Constituição, 1988.

BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976.

COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIO. Instrução n. 358, de 03 de janeiro de 2002.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: IMpetus, 2009.

Pinheiro, Juliano Lima. Mercado de Capitais: Fundamentos e Técnicas. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

SILVA, Edemilson Mendes da. “Insider trading”. Uso indevido de informação privilegiada: modalidade delitiva prevista no art. 27-D da Lei nº 6.385/1976. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2839, 10 abr. 2011. Disponível em:<http://jus.uol.com.br/revista/texto/18869>. Acesso em: 3.jun. 2011.

U.S. Securities and Exchange Comission. Insider trading. Disponível em: <http://www.sec.gov/answers/insider.htm>. Acesso em: 3.jun.2011

 


Informações Sobre o Autor

Ana Flávia Chaves Vaz de Mello

Servidora Pública. Bacharel em Direito pela UFMG. Pós-graduada pela PUC-Minas


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