Elogio da loucura

Impossível viver os dias de hoje sem se recordar de Erasmo em seu “elogio da loucura”. Para ele a vida é senão uma comédia contínua em que os homens, disfarçados de maneiras diferentes aparecem em cena, desempenham seus papéis até que um diretor os faça mudar de disfarce para aparecer com novo visual. O cenário nos leva a representar situações.

Os que se apresentam como dom-quixote lutando por pobres dulcinéias e disputando com moinhos de vento o espaço em que deviam atuar, relembrando os mais puros ideais do cavaleiro da Idade Média, caem na insanidade de sua loucura atrás de reles vantagens pecuniárias.

A dominação ideológica, dirigida por rótulos de igualdade e pesada intervenção do Estado na economia, cede ante a tentação de uma vida confortável, no interior de residências ricamente decoradas e de viagens das mil e uma noites.

A farsa chega ao fim. O discurso fica tão esvaziado que a realidade o suplanta. A sedução de dólares e euros e a conquista permanente do Estado implicam esquecimento de todo o idealismo dos anos passados, representados por Guevara. Maquiavel ficaria com inveja ao saber quão bem foi aplicada sua teoria. A busca do poder supera o discurso ideológico. A queda das ideologias ocorre ante a realidade de mercado.

A estratégia funcionou tão bem que seus autores, narcisisticamente, ficaram seduzidos pela beleza de suas propostas. O plano foi engendrado de forma a permitir a dominação permanente do Estado. Os caminhos foram abertos pela leitura de Lênin e, talvez, Gramsci.

Só que como diria o filósofo Garrincha, faltou avisar os adversários e também aqueles que seriam os operadores da estratégia de dominação. Quando se buscou arredar do caminho alguém que atrapalhava a maquinação, não se podia supor que haveria recusa em continuar a fazer parte do plano, se o bolo não seria mais repartido. A gula, a ganância, a volúpia do poder, esmaeceu o fim a ser alcançado. Os instrumentos de dominação cederam ante os ideais descritos.

No dizer de Weber, a dominação ideológica, que seduz por códigos de conduta e por rótulos emotivos, foi superado pela dominação econômica, identificada como o controle através de liberação de recursos, cargos e verbas orçamentárias.

A partir daí, destruiu-se tudo, as esperanças foram frustradas, os parceiros ficaram divididos, a base ficou pasma e os militantes olharam sem entender o que se passava. Os ativistas perceberam que os ídolos eram de barro, que todos os discursos feitos nada significavam, que aquilo em que acreditavam já não mais era real. As ilusões foram destruídas, os sonhos tornaram-se realidade e o gosto amargo da desilusão apareceu.

Para tudo há explicação. Havia ou não havia possibilidade de governar para a sociedade? Era imprescindível, então, romper com as estruturas capitalistas que a governavam. Uma sociedade inserida num contexto mundial deve aprender que não está sozinha. Faz parte de um todo. Pode participar ou não, dentro de escolhas legítimas possíveis. Se pretende inserir-se no global, deve ceder diante de tantos interesses econômicos. O mercado passa a ser o fator real e não mais imaginário.

Havia uma opção: governar para o mercado ou para a sociedade. O governo anterior optou pela primeira idéia. Este também o fez. Havia outra saída? É o isolamento internacional e a busca por alternativas internas. Estamos prontos para tomar tal atitude? Há meio termo possível?

O problema é passar da era da ideologia para a do mercado. Este é dinâmico. Para acompanhá-lo você tem que superar a estrutura legal, isto é, não mais pode ficar a reboque de leis que demoram a serem aprovadas. A velocidade da mudança tecnológica, o dinheiro rotativo no mundo, a comunicação instantânea, que nos dá a informação na hora, de qualquer lugar do mundo, tudo gira muito rapidamente. Os interesses não se prendem mais à romântica conquista de universitários, nem de sindicalistas despreparados. A busca, hoje, é do poder econômico.

A partir da hora em que prevalece o marketing e não mais a conquista ideológica do voto, você quebra as estruturas. Política é busca de poder através do confronto de posições. Atualmente, prevalece discurso elisivo da frustração e surgem desculpas, a partir da escusa em não se conseguir atingir objetivos e a explicação por não ter percorrido outro caminho.

O discurso forçado da inclusão social, da distribuição de renda, de melhor educação, do destino de recursos para saúde, da destinação social de verbas, tudo desemboca na desculpa dos objetivos não atingidos.

Neste sentido a economia apenas vai bem em função do mercado. Quando se adquire segurança econômica nos investimentos e na recuperação de capitais, diz-se que o mercado vai bem e que o país está blindado. Só que, não há como se fazer inclusão social sem a repartição de renda, com o que se assegura a liberdade. É possível obter o desenvolvimento, que não pode ser confundido com modernização nem com crescimento econômico. Só se pode falar em desenvolvimento se há inclusão social, no exato dizer de Amartya Sen.

Voltando à pergunta crucial: é possível obter desenvolvimento, estar congraçado internacionalmente deixando o mercado de lado? É possível optar pela sociedade?

As regras de mercado são duras e rigorosas. Elas não perdoam. No entanto, é possível rediscuti-las, sem descumprir as obrigações contratuais. Evidente que não se pensa em rasgar acordos já celebrados e distanciar o país da globalização. Quando se legisla para o mercado, as políticas desaparecem. Segue-se a reboque de suas intenções e seus interesses. Não há escolha possível, uma vez que a sociedade passa para o segundo plano. Daí as alterações da previdência, da estrutura administrativa do Estado, da quebra de monopólios, do controle da pirataria, da quebra de patentes, etc. Não foi possível defender a fabricação de medicamentos sem pagamento de royalties, que ficou sobrepujado pela defesa do pobre povo brasileiro?

O problema, parece-nos, é o sopesamento de valores que possam ser balanceados pelo mundo. É possível pensar-se numa sociedade de famintos? Será que a defesa da saúde de todo um povo não prepondera sobre mesquinhos dólares? Diante de valores em confronto, há de se ponderar o que deseja a população, não como número de censo, mas como sociedade civil organizada.

Ainda é possível reger a sociedade com normas que por ela sejam construídas, desde que haja legitimidade e rapidez nas soluções. O Congresso Nacional deve ser alterado, também em função do mercado, mas atendendo à sociedade. O unicameralismo é uma boa saída para que as leis fluam mais rapidamente, com o que se evita a legislação do Executivo. O débito de juros há que ser pago, dentro de regras discutidas com a sociedade. Não nos esqueçamos da obrigação impossível de ser cumprida, tal como descrita por Shakespeare em “o mercador de Veneza”.

Importante, ainda, para que não se perca a inserção no mercado, é o compromisso do cumprimento das obrigações assumidas, mas dentro de patamares condignos e a liberalização dentro de esquemas econômicos que nos convenham, ao lado da manutenção de política apropriada para a preservação do equilíbrio ecológico.

Tudo é inserção. No entanto, não nos esqueçamos que esta só se opera com um povo vivo e não com molambos e esqueletos vazios vagando por cidades mortas. A sociedade brasileira há se saber buscar caminhos que envolvam a integração no grande complexo das nações, mas também na ressurreição de ideais legítimos de brasilidade. Nada de arroubos anárquico-patrióticos. Mas, a discussão do país que queremos e do país que podemos ter. Nada de pensarmos que somos os melhores do mundo, que Deus é brasileiro. A realidade vivida é menos morta.

Não podemos fazer o elogio da loucura brasileira, mas podemos caminhar para um outro Brasil, sério e decente, com políticos forjados pela triste experiência de nossos trópicos, mas ainda carregados de ideais.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Regis Fernandes de Oliveira

 

Advogado, professor titular da USP e sócio do escritório Regis de Oliveira, Corigliano e Beneti Advogados

 


 

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