Empoderamento Social versus Espaço Local: Uma abordagem a partir da Teoria Politica do reconhecimento de Charles Taylor

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Resumo: No Estado Democrático contemporâneo um dos maiores desafios enfrentados e que comprometem a caracterização de democracia é a baixa participação da sociedade nos assuntos públicos. Atualmente o discurso do reconhecimento pode ser interpretado e efetivado em duas esferas: na esfera individual e na esfera social. O reconhecimento em âmbito individual pode ser traduzido como a compreensão de que a formação da identidade é moldada pelo diálogo constante que temos com os outros. O objetivo do presente artigo é estudar a relação entre o empoderamento (empowerment), enquanto capacidade de decidir, de libertar-se, e o capital social enquanto uma capacidade de obter bens tangíveis através da confiança, reciprocidade e solidariedade da sociedade civil. A hipótese central afirma que o capital social impulsiona o desenvolvimento, cuja determinação ocorre proporcionalmente ao empoderamento. Justifica-se a escolha da presente temática pela sua compreensão e exercício para a legitimação dos Estados Democráticos de Direito ocidentais. Logo, de grande relevância demonstra o tema abordado, visto as linhas de pesquisa adotadas pelo Mestrado em Direito, nas áreas das Políticas Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, o qual prioriza o enfoque interdisciplinar, buscando uma integração em diversas áreas do conhecimento, tais como o direito, a filosofia, política, história e sociologia. Neste trabalho foi utilizado como método de abordagem o indutivo e o dialético, visto que o primeiro parte do estudo de dados particulares para inferir uma verdade geral, não contida nas partes examinadas, enquanto que o segundo almeja que o objeto do trabalho seja obtido através da contradição de idéias.


Palavras-chave: Empoderamento – Espaço Local – Teoria Política do Reconhecimento – Políticas Públicas.


Sumário: 1.  Introdução. 2. Empoderamento social a partir do espaço local. 3. Teoria política do reconhecimento de Taylor. 4. Relação entre empoderamento, espaço local e a política do reconhecimento. 5. Considerações finais. Referências bibliográficas.


1.  Introdução


O Estado Democrático contemporâneo enfrenta o desafio da baixa participação da sociedade nos assuntos públicos. Ocorre que para ser democrático, a participação da sociedade, em diferentes esferas de decisão política, faz-se necessária, sob pena de perder a caracterização democrática. Assim, o estudo da participação política da sociedade nas decisões do Estado Democrático, no sentido de que a sociedade contribua de forma ativa e efetiva na organização e dinamização da esfera pública estatal, adquire uma atualidade inconteste, sobretudo diante da prática contemporânea dos descasos dos cidadãos pelos assuntos políticos.


Pergunta-se, então, que contribuições podem apresentar a “Teoria Política do Reconhecimento”, de Charles Taylor, à efetiva participação dos cidadãos nos Estados Democráticos de Direito? Através desse estudo, vislumbrou-se que a contribuição principal da “teoria política do reconhecimento” é de apresentar uma fundamentação teórica consistente à exigência premente de participação política nos Estados Democráticos de Direito contemporâneos em virtude de dois motivos principais: esclarecer que a ausência do reconhecimento, ou sua presença e, em certos casos, um reconhecimento errôneo, são elementos decisivos na afirmação da individualidade contemporânea; e que o contexto público exerce um papel legitimador nas decisões políticas dos Estados.


Atualmente o discurso do reconhecimento pode ser interpretado e efetivado em duas esferas: na esfera individual e na esfera social. O reconhecimento em âmbito individual pode ser traduzido como a compreensão de que a formação da identidade é moldada pelo diálogo constante que temos com os outros. O objetivo é estudar a relação entre o empoderamento (empowerment), enquanto capacidade de decidir, de libertar-se, e o capital social enquanto uma capacidade de obter bens tangíveis através da confiança, reciprocidade e solidariedade da sociedade civil. A hipótese central afirma que o capital social impulsiona o desenvolvimento, cuja determinação ocorre proporcionalmente ao empoderamento.


Assim, o presente artigo pretende examinar as contribuições que a Teoria Política do Reconhecimento oferece à efetiva participação nas decisões políticas no Estado Democrático de Direito contemporâneo. Para tanto, analisou-se a origem da Teoria Política do Reconhecimento, assim como sua história, principais autores e contribuições para seu correto entendimento. Da mesma forma identificou-se os elementos que constituem os Estados Democráticos, evidenciando aspectos relacionados à efetiva participação dos seus membros em suas decisões políticas. Por fim, demonstrou-se e evidenciou-se as contribuições que o Discurso do Reconhecimento, através do estudo da abordagem realizada por Charles Taylor, realizam em relação à identidade dos cidadãos e sua participação legitimadora nas decisões no Estado Democrático de Direito no contexto do debate entre liberais e comunitaristas.


Justifica-se a escolha da presente temática pela sua compreensão e exercício para a legitimação dos Estados Democráticos de Direito ocidentais. Logo, de grande relevância demonstra o tema abordado, visto as linhas de pesquisa adotadas pelo Mestrado em Direito, nas áreas das Políticas Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, o qual prioriza o enfoque interdisciplinar, buscando uma integração em diversas áreas do conhecimento, tais como o direito, a filosofia, política, história e sociologia. Assim, percebe-se que o estudo insere-se na área de pesquisa, quando se atenta para a hodierna questão da falta de legitimação dos Estados frente à exclusão social e política de grande parcela da sociedade.


Sendo a ciência do Direito um estudo que não trabalha com a hipótese de verdade absoluta, e sendo o mundo um conjunto de processos dinâmicos, analisa-se o objeto da pesquisa a partir do debate de idéias que este possui e da interação com outros fenômenos e estudos, não olvidando das constantes mudanças que ocorrem nas estruturas sociais e humanas. Neste trabalho foi utilizado como método de abordagem o indutivo e o dialético, visto que o primeiro parte do estudo de dados particulares para inferir uma verdade geral, não contida nas partes examinadas, enquanto que o segundo almeja que o objeto do trabalho seja obtido através da contradição de idéias. No primeiro caso, o método foi empregado na perspectiva do marco teórico da teoria da política do reconhecimento de Taylor para examinar o debate contemporâneo sobre o Estado Democrático de Direito. Quanto ao segundo, auxiliou na reflexão geral da temática, pois procedeu-se de modo que o confronto das distintas idéias produzissem uma síntese que espera-se expor com acuidade na conclusão da investigação.


2. Empoderamento social a partir do espaço local


O conceito de empoderamento assemelha-se com o de autonomia, pois se refere à capacidade dos indivíduos e grupos poderem decidir sobre as questões que lhes dizem respeito, escolher, enfim entre várias formas de agir em múltiplas esferas – política, econômica, cultural, psicológica, entre outras. Desse modo, trata-se de um atributo, mas também de um processo pelo qual se aufere poder e liberdades negativas e positivas. Pode-se, então, pensar o empoderamento como resultante de processos políticos no âmbito dos indivíduos e grupos.


Ao mesmo tempo em que se reconheceu a importância dos poderes locais na história das sociedades para a efetivação do poder régio em muitos de seus domínios, se descobriu que a vitalidade do mesmo era indissociável da constituição de poderosas elites locais. Sendo assim, o conceito de esfera (espaço) pública,  largamente  retomado como  ponto  de  partida  para  compreender  as  democracias  contemporâneas  tem sua  base  em Habermas,  que  ao  longo  dos  anos  tem  sido  tema  de  debate  nos meandros intelectuais de todos os cantos do mundo.


Nesse espaço público predomina o controle e a dependência em relação ao soberano. Uma esfera com essa configuração, centrada na corte, não regida pelos princípios de acessibilidade, discursividade e racionalidade, teve o seu ocaso com a  ascensão  da  burguesia,  que,  paulatinamente,  foi  se  fortificando,  acumulando capital e  exigindo menos  intervenção  estatal nos assuntos de particulares. Esse desenrolar dos  fatos  fez  com  que  essa  nova  camada  reivindicasse  uma organização sócio-política mais razoável. Assim, na concepção de Carvalho:


“A  esfera  pública  é  dominada  por  um  critério  de  racionalidade coletiva, apesar de nesse espaço se apresentarem e competirem racionalidade e interesses particulares. Para que a esfera pública seja presidida por essa racionalidade coletiva é preciso que ela seja construída num processo de democratização,  constituindo-se  num exercício  democrático  de interlocução e expressão pública, de confronto, de afirmação de direitos, de  construção  de  consensos. A  esfera  pública,  antes  de  tudo,  é  um espaço  aberto  no  qual se  exprimem  todos  aqueles  que  se  autorizam  a falar publicamente.  É  o  reino  da  crítica,  instaurando  a  submissão dos fatos públicos ao controle de um público crítico.”[1]


  Numa perspectiva emancipatória, empoderar é o processo pelo qual indivíduos, organizações e comunidades angariam recursos que lhes permitam ter voz, visibilidade, influência e capacidade de ação e decisão. Nesse sentido, equivale aos sujeitos terem poder de decisão nos temas que afetam suas vidas. Como o acesso a esses recursos normalmente não é automático, ações estratégicas mais ou menos coordenadas são necessárias para sua obtenção.


Como os sujeitos que desejam tornarem-se empoderados muitas vezes estão em desvantagem e dificilmente obtiveram os referidos recursos espontaneamente, intervenções externas de indivíduos e organizações são necessárias.  A exemplo, a promoção de direitos e desenvolvimento, sobretudo em âmbito local e regional, mas com vistas à transformação das relações de poder de alcance nacional e global. Trata-se, portanto, da promoção de direitos de cidadania, como a decisão de adquirir um bem de consumo e ter a capacidade de fazê-lo é sinal de empoderamento, maior ou menor, dependendo dos desejos e da capacidade aquisitiva do consumidor.


Na síntese de Friedmann o objetivo do processo é reequilibrar a estrutura de poder na sociedade, tornando a ação do Estado mais sujeita a prestação de contas, aumentando os poderes da sociedade civil na gestão dos seus próprios assuntos. Um desenvolvimento alternativo consiste na primazia da política para proteger os interesses do povo, especialmente dos setores disempowered (sic), das mulheres e das gerações futuras assentes no espaço da vida da localidade, região e nação.[2]


O empoderamento vem-se transformando uma categoria analítica e empírica de diversas disciplinas – administração, economia, saúde pública – incluindo a sociologia política, além de constituir uma ferramenta com que governos, organizações da sociedade civil e agências de desenvolvimento buscam, a princípio, transformar a vida de pessoas e comunidades. Com essa conotação, são ações com “capacidade de gerar processos de desenvolvimento auto-sustentável, com a mediação de agentes externos – os novos educadores sociais – atores fundamentais na organização e o desenvolvimento de projetos”. [3]


A noção de empoderamento ressurge no século XX impulsionado pelos “novos movimentos sociais”, que possuem como características fundamentais a luta contra opressão, preconceito e cidadania e a articulação de interesses. Na América Latina e no Brasil os movimentos sociais ressurgem durante o período de abertura política nos anos 1980, lutando por democracia. A partir da redemocratização muitos movimentos se consolidam no sentido de lutar por direitos sociais como o Movimento Sem Terra – MST, Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Sindicatos urbanos e rurais ligados, principalmente, a Central Única dos Trabalhadores– CUT. Mais recentemente surgem movimentos sociais que retomam temas já realizados nos países desenvolvidos no âmbito dos “novos movimentos sociais” e outros relacionados aos direitos de existência como os ambientais.


Observa-se que a emergência dos movimentos sociais no Brasil está relacionada a existência e / ou desenvolvimento de relações de confiança, reciprocidade e solidariedade, pelo menos entre os iguais e, não raro identifica-se movimentos que tem claramente uma articulação maior, seja de classe, seja temática, que permite identificar o capital social.


Taylor propõe uma forma equilibrada para a solução da questão da falta de participação no Estado Democrático. Entende que ele deve fazer com que os cidadãos sintam-se pertencidos ao sistema, de forma que sua participação torne-se necessária para legitimar o mesmo. Dessa forma, Taylor não se situa como um comunitarista extremado, visto que entende que determinados direito individuais, por vezes, devem prevalecer sobre os coletivos. Mas também não se situa no outro extremo, pois entende que em determinadas situações os direitos coletivos devem prevalecer, como, por exemplo, a sobrevivência de uma língua ou de uma cultura.


Assim, em sua visão holística, onde a soma dos “eus” não são apenas um agregado de indivíduos, mas sim o concepção de que os “eus”, em determinados momentos, devem ser entendidos como  “nós” , Taylor propõe uma visão solidária, visto que valoriza o aperfeiçoamento das culturas frente ao horizonte significativo colocado a nossa disposição.


3. Teoria política do reconhecimento de Taylor


Charles Taylor ao discutir a Teoria Política do Reconhecimento, concebe a teoria a partir de duas mudanças fundamentais nas estruturas sociais: o enfraquecimento das hierarquias baseadas na honra  e o deslocamento da ênfase moral externa para o interior, chamado de ideal de autenticidade.


As sociedades hierarquizadas constituíam-se e legitimavam-se pelo dogma da posição social. Dessa forma o indivíduo era reconhecido pela sua honra advinda da procedência familiar: filho de pais nobres ou filho de pais pobres. No entanto tal dogma não é compatível com as sociedades democráticas, sendo necessário o deslocamento da honra para a dignidade, entendida como conceito universalista e igualitário que, na contemporaneidade, vislumbra a participação de todos nas decisões políticas da sociedade.


O deslocamento da ênfase moral externa para a interna ocorre a partir do entendimento e valoração da capacidade do indivíduo de autocompreensão e da originariedade das idéias – o que Taylor denominou  “Ideal de autenticidade”:


“A noção de autenticidade se desenvolve a partir de um deslocamento da ênfase moral nessa idéia. Na concepção original, a importância da voz interior estava em nos dizer a coisa certa a fazer. Estar em contato com os sentimentos morais importa nesse caso como um meio para o fim de agir do modo certo. O que chamo de deslocamento da ênfase moral advém quando estar em contato com os próprios sentimentos assume uma significação moral crucial e independente. Isso passa a ser algo que temos de realizar para ser seres humanos verdadeiros e plenos”.[4]


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Segundo o filófoso alemão Herder, que compõe uma das bases teóricas de Taylor, nunca saberemos o que é tornar-se um ser humano se apenas imitarmos a vida dos outros. Dessa forma, devo descobrir e seguir minha originalidade a partir do próprio indivíduo, definindo a própria identidade, tanto na esfera íntima como na cultura dos povos[5].


A existência humana é pautada pelo caráter dialógico, ou seja, os significados e sentidos criados, bem como a identidade se constroem pela interação com o discurso do outro – e este é sempre um processo simbólico de trocas. Assim essas mudanças mencionadas acontecem no plano social pelo diálogo aberto – através de uma política constante de reconhecimento, ampliando as possibilidades de igualdade. Com isso, Taylor aponta que a origem de sociedades tidas como democráticas não está somente relacionada ao autorreconhecimento dos indivíduos em sua função ou seu papel no Estado. Com a cultura democrática, os cidadãos passam a reivindicar outra modalidade de reconhecimento: o de suas identidades – fenômeno que não pode ocorrer de forma monológica e atomizada e sim através do caráter dialógico. 


Para que o indivíduo possa participar ativamente nas decisões políticas de sua comunidade, entende o também filósofo Hegel, o indivíduo deve passar a reconhecer sua dimensão prática quando da necessidade de coordenar suas ações com os outros; quando necessita se interar com os demais. Logo, torna-se necessário passar do conhecimento cognitivo para o prático a partir da existência de interesses concorrentes no processo de autoconsciência individual. Nesse ponto, Honneth afirma o seguinte sobre os ensinamentos de Hegel:


“O modelo de Hegel tem seu ponto de partida da tese especulativa segundo a qual a formação do Eu prático está ligada à pressuposição do reconhecimento recíproco entre dois sujeitos: só quando dois indivíduos se vêem confirmados em sua autonomia por seu respectivo defrontante, eles podem chegar de maneira que complementaria a uma compreensão de si mesmos como um Eu autonomamente agente e individuado; [logo] no curso da formação de sua identidade e a cada etapa alcançada da comunitarização, os sujeitos são compelidos, de certa maneira transcendentalmente, a entrar num conflito intersubjetivo, cujo resultado é o reconhecimento de sua pretensão de autonomia, até então ainda não confirmada socialmente”.[6]


Assim é que Habermas entende que através das políticas adotadas num Estado Democrático de Direito, é natural que “a partir delas se desencadeiem batalhas culturais nas quais minorias desprezadas passem a defender-se contra a cultura majoritária e insensível”[7]. Logo, o que estimula essas batalhas não é uma neutralidade das políticas de estado, mas sim a natural efetivação dos direitos fundamentais no processo democrático, quando a participação torna-se necessária para sua concretização. Entretanto, não devemos entender o ideal da autenticidade como uma luta de afastamento da família, da religião, das amizades, do estado, dentre outros – como explica Appiah, “o diálogo molda a identidade que eu desenvolvo enquanto cresço, mas o material do qual me formo é fornecido, em parte, pela minha sociedade”.[8]


Logo, os objetivos de vida, as alianças políticas, as estratégias, isto é, nossos reflexos da personalidade e identidade são moldados através do que acreditamos que os outros gostariam de ver em nós – do diálogo que criamos com o outro – fazendo deste, muitas vezes, parte de nossa identidade. Isso se evidencia quando certos objetivos e metas somente podem ser alcançados a dois, ou seja, “se algumas das coisas que valorizo mais são acessíveis só em relação com a pessoa a quem amo, essa pessoa se torna parte de minha identidade”[9]. Como percebe Taylor, “minha identidade não implica uma produção minha de minha própria identidade no isolamento; significa que eu a negocio por meio do diálogo, parte aberto, parte interno, com o outro”.[10] Assim, corrobora-se a idéia de que as identidades dependem das relações dialógicas com as outras identidades.


Em relação aos processos dialógicos, Mattos compreende que:


“Esse processo de entrar em contato com linguagens através dos outros é infinito. Mesmo quando rompemos com as idéias de nossos outros significativos, ainda assim, estamos dialogando com elas. São elas que nos servem de base para nos definirmos, nem que seja pela negação de nossos outros significados. […] Se, reconhecemos que construo a minha identidade dialogicamente, daí fica fácil de entendermos por que o tema do reconhecimento é tão importante”.[11]


Assim, ninguém duvida que a política do reconhecimento exige um esforço das maiorias dominantes em prol das minorias oprimidas. Exige-se uma luta por aceitar as diferenças, exige, no dizer de Appiah, “que a nossa cor de pele, o nosso corpo sexual, seja reconhecido politicamente de maneira difícil para aqueles que querem tratar a sua pele e o seu corpo sexual como dimensões pessoas do eu. E pessoal não significa secreto”.[12] Outrossim, somente nas sociedades modernas é que a política do reconhecimento vem a ocupar lugar central na luta pela inclusão social de determinados grupos minoritários nos estados democráticos. Antes também existia a necessidade de reconhecimento, só que não era importante pensar e refletir a respeito, visto que o mesmo era advindo da classe social ocupada por sua família. Diferentemente é a situação atual, onde a falta de reconhecimento ou sua distorção podem ocorrer, vindo a deformar identidades individuais e coletivas e aprisionando indivíduos em suas próprias identidades.


Tendo-se em vista a valorização da autenticidade – originariedade – das identidades, a teoria política do reconhecimento pode ser dividida em duas esferas: íntima e pública. Na primeira, a formação da identidade se dá através do caráter dialógico dos seres humanos – no contínuo diálogo e enfrentamentos com as outras identidades, relevando, então, os relacionamentos como a chave para a autodescoberta e auto-afirmação. Assim, Charles Taylor retoma a tradição hegeliana, entendendo que as relações íntimas não são importantes apenas pelo atendimento de necessidades comuns, mas são fundamentais para a definição de minha identidade.


Já na esfera pública – social – o reconhecimento manifesta-se através da política do reconhecimento igual, que, como veremos, é a alternativa mais viável para a efetivação dos estados democráticos de direito, visto que ao projetar para outros grupos ou povos uma imagem inferior, a partir do momento em que essa imagem distorcida é internalizada, pode se tornar instrumento de opressão e manipulação.


4. Relação entre empoderamento, espaço local e a política do reconhecimento


À medida em que o empoderamento torna-se termo de uso corrente, apresenta-se como um leque conceitual, que se presta a vários usos, por diferentes perspectivas intelectuais, políticas e de intervenção na realidade. Na perspectiva que adotamos, empoderamento traz como resultado o aprofundamento da democracia, por várias razões. Para que o empoderamento signifique pessoas e comunidades sendo “protagonistas de sua própria história”. Dessa forma, na visão de Macpherson (1982), em seu modelo piramidal, são prementes o aumento da cultura e da sofisticação política, o adensamento do capital social e o aperfeiçoamento da democracia representativa, incluindo, em seu desenho institucional, instâncias diretas e semidiretas de participação e deliberação.


A entrada neste tema demanda um esclarecimento: não se pode tratar participação, capital social e empoderamento como sinônimos ou termos intercambiáveis. Na realidade, conforme o ponto de vista que se tome, participação e capital social são requisitos, meios, enfim, para se atingir o empoderamento que, assim, não é um novo nome para categorias tradicionais. Entretanto, a presença daqueles só irá garantir que isso ocorra quando as pessoas e grupos considerados tiverem, de fato, poder de decisão sobre suas vidas e assuntos de seu interesse.


O papel da participação no empoderamento não tem alcance ilimitado: restrições de recursos impostas pela legislação, imperfeições na representação (não há garantias de que os representantes da sociedade civil de fato levem a perspectiva dos representados, pois raramente a delegação ou o mandato são imperativos), conflitos de interesse são alguns dos fatores limitantes. Vários são os exemplos disso. Um deles é o do Orçamento Participativo. Nos locais em que este funciona a parcela do orçamento, objeto de discussão e alocação para a população, é bastante reduzida em face das vinculações orçamentárias preexistentes.


Parcela da literatura defende a necessidade de descentralização de poderes, de governança no nível das comunidades locais, de modo que essas estejam mais próximas dos canais decisórios. O problema é que a descentralização pode significar, também, a redução de recursos estatais e a delegação para organizações e comunidades do enfrentamento de questões sociais. Nesse sentido, as propostas de empoderamento podem servir a projetos neoliberais 


Habermas reintroduziu a dimensão social no debate democrático contemporâneo. “Para Habermas, a esfera pública é um espaço no qual indivíduos – mulheres, negros, trabalhadores, minorias raciais – podem  problematizar  em público uma condição de desigualdade na esfera privada”[13]. Com isso, as ações em público  dos  cidadãos  permitem-lhes  questionar  a  sua  exclusão  de  arranjos políticos  por  meio  de  um  princípio  de  deliberação  societária.  Desta  forma, Habermas  recoloca  no  interior  do  debate  da  democracia  um  procedimentalismo social e participativo. 


Existem  duas  formas  de  combinação  entre  democracia  participativa  e democracia  representativa:  coexistência  e  complementaridade.  A  primeira,  quer dizer  uma  convivência,  em  vários  níveis,  das  diversas  formas  de procedimentalismo,  organização  administrativa  e  variação  de  desenho institucional.  A  democracia  representativa  no  âmbito  nacional  e/ou  subnacional coexiste com a democracia participativa no nível local. 


A segunda forma, a complementaridade, pressupõe o reconhecimento pelo governo  que  a  participação  social,  as  formas  públicas  de  monitoramento  dos governos  e  os  processos  de  deliberação  pública,  podem  substituir  parte  do processo  de  representação  e  deliberação  do  modelo  de  democracia representativa. Sendo assim, o objetivo é associar ao processo de  fortalecimento de  democracia  local,  maneiras  de  renovação  cultural  incorporadas  a  uma discussão democrática que insira questões que têm como pressuposto a inclusão social.


 A Constituição  Federal  de  1988  estabeleceu  um  conjunto  de  princípios  a partir  dos  quais  impôs  a  transição  de  uma  Administração  Pública  de  viés autoritário  para  outra  que  privilegia  o  cidadão,  permitindo,  desse  modo,  a institucionalização  do  processo  participativo,  definido  por muitos  como  direito  de participação. Constata-se que a legislação em questão  legou papel  fundamental ao Município,  tendo em vista que é no seu  território que os problemas de ordem urbanística despontam e devem ser resolvidos.


 Taylor entende que é imperioso a mudança de paradigma, no sentido que o liberalismo procedimental, da forma como é posta hoje, encontra-se insustentável. Sua rigidez inviabiliza o reconhecimento das individualidades e comunidades que, em tempos atuais, encontram-se cada vez mais diferentes. Sua grande contribuição foi demonstrar um novo modelo que possibilita a inclusão de classes menos favorecidas nas decisões políticas dos Estados Democráticos de Direito, visto a criação de um espaço democrático onde possa existir práticas de reconhecimento isonômico axiológico entre as diferentes identidades e culturas.


Dito de outro modo, as políticas públicas devem efetivamente a defesa de certos direitos, mas “elas se dispõem a sopesar a importância de certas formas de tratamento uniforme com relação à importância da sobrevivência cultural, e optar por vezes por esta última”[14]. Assim, consegue-se um equilíbrio entre as duas doutrinas, não estando somente cuidando da igualdade e lealdade entre os cidadãos e também não se estará fazendo juízos de valor sobre o “bom viver”. Dessa forma, possibilita-se uma maior participação nas decisões do Estado, tornando seus cidadãos legitimados em suas decisões, e ao mesmo tempo, estaremos administrando políticas públicas visando a inclusão da parcela excluída e marginalizada da sociedade.


5. Considerações finais


O presente trabalho objetivou o estudo da Teoria Política do Reconhecimento aplicada ao Estado Democrático de Direito. Através da análise dos pensamentos de Charles Taylor e demais autores dessa teoria verificou-se que a participação da população somente ocorrerá quando o Estado agir, ou seja, adotar políticas públicas no sentido de valorizar a identidade dos indivíduos.


Tal valorização acontece quando os agentes sentem-se parte de um sistema social, quando sua participação torna-se moldadora do espaço social. Assim, não basta assegurar as condições de participação, como sustentam os defensores do Estado Liberal; deve-se valorizar a particularidade dos indivíduos como forma de inclusão social.


Buscou-se estudar os indivíduos a partir de suas identidades singulares no contexto de suas vidas e frente ao Estado Democrático de Direito. Mas não apenas isso. Suas singularidades frente o pano de fundo formado através dos conceitos apreendidos através da cultura em que a identidade encontra-se presente. Dessa forma, Taylor, em toda a sua doutrina, sempre asseverou que o self não existe sozinho, mas sempre em confronto com os “outros significados”. Dessa forma, critica severamente a forma atomista e utilitarista de pensar.


Para tanto, Taylor, quando trata da formação da identidade, mostrou que os desejos são, na verdade, expressão impensadas do meio em que vivemos. Mas, quando interpretamos esses desejos, quando pensamos sobre por que realizar tal ação, na verdade, estamos caracterizando nossa identidade. Isso ocorre através de avaliações fortes. Essas, em primeiro lugar, servem para nos distinguir de meros animais irracionais, pois, em seu entendimento, não é o simples fato de ter desejos que nos separa deles. Na verdade, o que evidencia nossa conceituação de seres humanos, em princípio, é o fato de avaliarmos significativamente o que tais desejos representam para nós.


Assim, quando realizamos o confrontamento dos significados dos desejos com o nosso “pano de fundo”, na verdade, estamos demonstrando características importantes de nosso self, visto que os atos, agora pensados, representam o que nossa identidade realmente é. Outrossim, isso somente acontece se entender conceitos e princípios do que seria nosso arcabouço moral, ou, em outras palavras, o que seria o agir certo para nós. Mas o que seria o pano de fundo de Taylor? Para o autor, pode-se entender o pano de fundo de sua doutrina como a cultura que foi inserida em nós, visto que ninguém pode moldar-se ou desenvolver-se a partir do vácuo. Dessa maneira, concluí-se que o self presente na obra de Taylor, em realidade, é o espaço em que desenvolvemos nossas articulações sobre os outros significados – panos de fundo.


Procurou-se, também, uma formulação para retirar os cidadãos de sua letargia típica dos estados liberais, eis que nesse pensamento, o que se almeja é garantir apenas a igualdade entre os cidadãos, da mesma forma que o respeito frente as potencialidades dos indivíduos, como sustenta John Haws e seus contemporâneos, tais como Habermas e Dworkin.


Taylor pretende demonstrar que o Estado, entendido como democrático de direito, deve, em alguns momentos, proteger os direitos sociais em prol dos individuais, visto as condições de sobrevivência ou mesmo de garantir o desenvolvimento de determinadas culturas nesse mundo multicultural. Logo, entende que para assegurar o desenvolvimento e a inclusão social, o Estado deve manifestar-se, mais do que apenas assegurar uma linguagem comum e significante ente os cidadãos, mas proporcionar políticas públicas no sentido de valorizar direitos coletivos, como os exemplos trazidos do Québec trazido em sua obra “Argumentos Filosóficos”, mais especificadamente “A Política do Reconhecimento”.


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Portanto, quando entendemos que a identidade é reconhecida através das avaliações fortes que realizamos de nossos desejos em relação à dignidade (Taylor entende que, em tempos contemporâneos, o bem maior buscado é a dignidade) estamos na verdade dizendo que nosso pano de fundo deve ser o Estado Democrático de Direito, ou seja, devemos confrontar e avaliar nossos desejos frente aos significados trazidos através dos tempos, de forma a buscarmos o que entendemos e consideramos uma vida justa e digna de ser vivida.


 


Referências bibliográficas:

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TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos.  São Paulo: Loyola, 2000.

 

Notas:

[1] CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

[2] FRIEDMANN, J.  Empowerment: uma política de desenvolvimento alternativo.Celta: Oeiras, 1996. p. 32-3.

[3] GOHN, M. G. Empoderamento e participação da comunidade em políticas sociais. Saúde Soc, 2004. p.23

[4] TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000. p.243

[5] HERDER, J. G. Herders Sämtliche Werke. Berlim: Bernard Suphan, 1913. p. 13.291 apud TAYLOR, Charles.Idem.Ibidem.p. 245.

[6] HONNETH, Alex. Luta por Reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: 34, 2003. p. 119.

[7] HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002. p. 254.

[8] APPIAH, Anthony. Identidade, Autenticidade e Sobrevivência: Sociedades Multiculturais e reprodução social in Multiculturalismo: examinando a política do Reconhecimento. Lisboa : Princeton University, 1994. p. 170.

[9] TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000. p. 247.

[10] Ibidem, p. 248.

[11] MATTOS, Patrícia. A Sociologia Política do Reconhecimento: As contribuições de Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser. São Paulo: Annablemu, 2006. p. 128.

[12] APPIAH, Anthony. Identidade, Autenticidade e Sobrevivência: Sociedades Multiculturais e reprodução social in Multiculturalismo: examinando a política do Reconhecimento. Lisboa: Princeton University, 1994. p. 179.

[13] HABERMANS. Jürgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002.

[14] TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000. p. 266.


Informações Sobre o Autor

Danielle Soncini Bonella

Advogada, professora universitária, especialista em Processo Civil, especialista em Direito Municipal, mestre em Direito e doutoranda em Direito Público.


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