Resumo: trata-se de estudo experimental sobre as ´tutelas de urgência´. Traz breve narrativa da evolução histórica dos procedimentos sumários, em especial, o processo cautelar, sua depuração na doutrina italiana do século XX, e o desenvolvimento das técnicas de antecipação da tutela satisfativa no ordenamento pátrio, até o modelo concebido no novo Código de Processo Civil. Propõe o estudo analítico das ‘tutelas de urgência’ por meio da teoria da linguagem, abordando sua dinâmica sob três perspectivas: da semântica, da sintaxe e da pragmática.
Palavras-chaves: Direito Processual Civil. Tutelas Diferenciadas. Tutelas de Urgência. Tutela Antecipada. Tutela Cautelar.
Abstract: this essay will analyze the ‘tutelas de urgência’ (which holds some similarities with the system of injunctions). It brings a brief narrative of the historic developments of the summary procedures, with focus on the figure of the precautionary measures, which passed through a very relevant depuration phase throughout the 20th century specially due to the Italian Studies in Law, reflecting on the development of jurisdictional provisions in Brazil such as those intended to prevent high risk situations, coming to its current concept – ‘tutelas de urgência’ – brought by the new Code of Civil Procedure from 2015. The purpose of this essay will be, thereafter, to approach the main theme – ‘tutelas de urgência’ – from the semantics, syntax and pragmatics aspects.
Keywords: Civil Procedure Law. Specific Performance. Tutelas de Urgência. Injunctions. Precautionary measures.
Sumário: Introdução – 1 Desenvolvimento I: Dos Provimentos Cautelares à Técnica Antecipatória: as Tutelas de Urgência – Esboço Semântico. 1.1. A Influência da Doutrina Clássica Italiana do Século XX. 1.2 Notas sobre a Antecipação dos Efeitos da Tutela – Lei n. 8.952/1994. 1.3 O Novo Código de Processo Civil – Lei n. 13.105/2015. 2 Desenvolvimento II: Das ‘Tutelas de Urgência’- Esboço Sintático e Pragmático. 2.1. Análise da Estrutura Sintática das ‘Tutelas de Urgência’- art. 300, do CPC/15. 2.2. Análise das ‘Tutelas de Urgência’ – Esboço Pragmático. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Vivencia-se fase instrumentalista do processo orientada por normas axiológicas insculpidas a partir da Constituição da República.
Ada Pellegrini Grinover ensina que o desencadeamento desse novo método, crítico por excelência, dependeu em grande parte do florescer do estudo das grandes matrizes constitucionais do processo.[1]
Desde cedo, na Constituição Republicana de 1891, transpareceu a vontade do constituinte em impor avanço científico aos institutos jurídico-processuais. A partir dela, o ordenamento jurídico nacional teve incorporado institutos avançados importados do direito norte-americano, presentes até os dias atuais, v.g., o princípio da unidade da jurisdição, passando pelas garantias do due process of law e culminando nos instrumentos constitucionais de defesa das liberdades.
Ante o desenvolvimento dos estudos do direito processual constitucional e, posteriormente, com a formulação de uma teoria geral do processo de matriz constitucional, pavimentou-se caminho para a superação das colocações puramente técnico-jurídicas da fase autonomista do direito processual.
A compreensão do processo pelo método instrumentalista pretende suplantar a noção antecedente do processo como mero instrumento técnico e o direito processual como ciência neutra em face das opções axiológicas do Estado.[2]
A partir desta perspectiva a doutrina processual brasileira tem se debruçado no mais amplo e variado espectro de temas ligados ao processo, sendo relevante destacar os seguintes: (i) a viabilização do acesso à ordem jurídica justa,[3] que dentre as perspectivas de modificação está o desenvolvimento da concepção do direito à pré-ordenação de instrumentos processuais capazes de promover a objetiva tutela dos direitos; e (ii) a efetividade do processo, que visa a superação do problema da efetividade e eficácia no processo.
O que se busca é um sistema processual efetivo que proporcione técnicas adequadas à tutela dos direitos, individuais e meta-individuais, visando a solução dos conflitos em tempo razoável e com a observância ao devido processo legal, tendo por finalidade última o alcance do valor justiça.
Portanto, para fins de delimitação do presente trabalho, será dado enfoque ao tipo de tutela diferenciada que tem por fundamento a urgência, regulada pelo Código de Processo Civil sob a denominação de “tutelas de urgência” (artigos 294 a 310).
1 DESENVOLVIMENTO I: DOS PROVIMENTOS CAUTELARES À TÉCNICA ANTECIPATÓRIA: AS TUTELAS DE URGÊNCIA – ESBOÇO SEMÂNTICO
1.1 A INFLUÊNCIA DA DOUTRINA CLÁSSICA ITALIANA DO SÉCULO XX
Certo de que a tutela cautelar não é uma descoberta do século XX, uma vez que esta função jurisdicional sempre existiu, conforme pontua Ovídio Baptista da Silva, com acentuada importância no Direito Romano, por vezes inseridas em outras formas de tutela processual, e até mesmo em estado puro, sem, no entanto, ser convenientemente compreendida pela ciência jurídica;[4] é inegável que se deve atribuir mérito ao desenvolvimento do estudo das tutelas cautelares à doutrina italiana do século XX, de onde surge a ideia de sistematizar os vários procedimentos preparatórios, preventivos e incidentes sob fórmula geral.
Aduz Eduardo Scarparo que até então não havia uma aproximação entre figuras como o sequestro judiciário, a caução e outros institutos regidos por um procedimento próprio. Todos esses temas eram estudados como incidentes isolados de características extraordinária e provisória, cuja finalidade seria preventiva ou conservativa e, por isso, distintos das medidas executivas.[5]
Em obra de 1923, o jurista italiano Ludovico Mortara sintetizou características essenciais e funcionais dos provimentos referentes ao sequestro, denúncia de dano ou que demandassem o caucionamento; estudo este que, de acordo com Scarparo, foi um passo de incomensurável importância para fins de autonomizar as medidas preventivas e conservativas,[6] conforme transcrição a seguir:
“Si tratta di procedimenti essenzialmente incidentali, perché non servono a ottenere la piena difesa giurisdizionale di un diritto, ma ad integrare le condizioni da cui cotesta difesa è fatta efficace e intera. Quindi suppongono ed accennano alla necessità di un altro procedimento (col quale stanno in rapporto di accessorietà o dipendenza) destinato a svolgere la plenaria cognizione del diritto, allo scopo della sua definitiva dichiarazione. (…)
Carattere comune di tutti i procedimento diretti ad ottenere dal magistrato un provvedimento conservativo o cauzionale è, di regola, la non assoluta certezza, ma la semplice probabilità per quanto prossima [grifei], della esistenza del diritto alla tutela del quale si riferiscono (…) politica inseparabile dai fini della funzione giurisdizionale, quella di prevedere l’eventualità in cui l’esercizio della medesima potrebbe risolversi in vana accademia, se non fossero adottate cautele preventive per rendere sicura a tempo opportuno l’attuazione del giudicato [grifei], cioè la realizzazione del diritto che verrà riconosciuto.”[7]
O trabalho de sistematização de Mortara permitiu o desenvolvimento teórico alcançado por Giuseppe Chiovenda ao trabalhar especificamente com a categoria da cautela sob a perspectiva da teoria da ação.[8]
Por sua vez, a compreensão das medidas cautelares como um terceiro tipo de processo – tertium genus – tem crédito atribuído aos estudos de Francesco Carnelutti[9] que, sustentada por Enrico T. Liebman, exerceu forte influência na estrutura do Código Buzaid.
Inserido neste contexto e, especialmente, diante do advento do novo Código, é reveladora a atemporalidade do estudo de Piero Calamandrei, em seu Introduzione allo Studio Sistematico dei Provvedimenti Cautelari, de 1936.
Ao perquirir sobre os critérios, classificações e características distintivos das cautelares sob a perspectiva do provimento jurisdicional, justapôs-se às doutrinas de Chiovenda e Carnelutti, sustentando o seguinte:
“<<l’attuazione della legge nel processo può assumere tre forme: cognizione, conservazione, esecuzione>>. (…) In questa tripartizione, che esattamente mette in luce la esistenza di una funzione cautelare (<<conservazione>>) come forma autonoma di tutela, non è detto però che il criterio in base al quale i provvedimenti cautelari si differenziano da tutti gli altri provvedimenti sia omogeneo con quello per il quale i provvedimenti di cognizione si differenziano da quelli di esecuzione; mentre al contrario i provvedimenti cautelari possono avere, secondo i casi, effetti dichiarativi o esecutivi [grifei] (e rientrare per questo in uno degli altri due gruppi della tripartizione), o viceversa certi provvedimenti di cognizione o di esecuzione possono, quando si considerino sotto l’angolo visuale del loro scopo, esser compresi nel gruppo dei provvedimenti cautelari.”[10]
A proposta de Calamandrei aparenta ser acertada, considerando que o discriminem que se faz entre processo de conhecimento e execução encontra-se em dimensão diversa daquela em que estão as medidas cautelares.
A atemporalidade do estudo de Calamandrei mencionado em linhas anteriores refere-se não apenas à expansividade e influência de seu estudo nos diversos ordenamentos jurídicos e doutrina especializada – em especial, na América Central e do Sul –,[11] mas, também, em razão da maior aproximação de sua investigação à realidade atual. Assim o é, que a vigente norma processual parece suprimir aquela perspectiva anterior do processo cautelar como um tertium genus.
1.2 NOTAS SOBRE A ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA – LEI N. 8.952/1994
Por longo período, ao lado de todo o debate que circundava a tutela cautelar estava a tutela antecipada (satisfativa).
A previsão explícita no CPC/73 dos mecanismos de antecipação dos efeitos da tutela se deu somente a partir da modificação e inclusão dos artigos 273 e 461, § 3o., no CPC/1973, por meio da lei n. 8.952/1994.
Até então, persistia na doutrina e na jurisprudência divergência sobre a possibilidade de se conceder medidas de cunho satisfativo em momento anterior à prolação da sentença. Discorre José dos Santos Bedaque que o modelo ordinariamente adotado era aquele em que somente após a cognição completa e exauriente da situação substancial era possível a tutela satisfativa.[12]
Ovídio Baptista relata que a divergência doutrinária acerca da distinção entre ‘tutela cautelar’ e ‘entrega provisional e antecipada do pedido’ remonta desde o nascimento do Código de 73, in verbis:
“En la doctrina brasileña la divergencia surgió después de la promulgación del Código de Procedimiento Civil de 1973. (…) En el fondo de toda esta cuestión aparece como punto polémico, responsable por el conflicto doctrinario, el problema conceptual en el que se contraponen dos concepciones antagónicas, entendiendo algunos juristas que la tutela cautelar debe ser considerada una forma de protección jurisdiccional de la apariencia, en tanto que tutela de un eventual derecho subjetivo o de algún interés legítimo no subjetivado contra el riesgo de daño inminente, mientras que la doctrina dominante la define como instrumento de ‘protección de la actividad jurisdiccional’.”[13]
Encerrada a controvérsia sobre a possibilidade da concessão de medidas urgentes de caráter não estritamente conservativo com o advento da lei de 1.994, a experiência prática destes dois institutos logo evidenciou a inviabilidade da persistência de dois regimes estanques – cautelar e antecipatório-satisfativo.
As incertezas transbordavam aos limites dos debates doutrinários e jurisprudenciais, chegando a atingir textos legais. Exemplo disso foi o enunciado do artigo 489, do CPC/73, que previa que os efeitos da sentença rescindenda excepcionalmente poderiam ser suspensos por medidas de natureza cautelar ou antecipatória da tutela.
Relata, Eduardo Talamini, que mais do que uma questão de ordem prática, o impasse doutrinário (e jurisprudencial, e legislativo) tinha em si mesmo relevo científico,[14] consoante o seguinte:
“Quando Ovídio Baptista da Silva afirma ser cautelar a medida que suspende deliberação assemblear, e Barbosa Moreira a considera tutela antecipada; quando Watanabe reputa conservativa a sustação de protesto, e Bedaque toma-a por antecipatória, fica evidente que a tutela cautelar e a tutela antecipatória urgente não têm como ser providências essencialmente diversas. Não se está a falar de coisas distintas entre si como água e vinho. A divergência entre processualistas tão argutos só se põe precisamente porque estão tentando classificar objetos muito próximos entre si – situados em zona cinzenta, de fronteira”.[15]
À época, Humberto Theodoro Jr. sustentava que não haveria sentido lógico do ponto de vista prático uma regulamentação separada da tutela antecipatória visando restringir a tutela de urgência; mas, sim, teria o escopo de ampliá-la, de modo a propiciar aos litigantes em geral a garantia de que nenhum risco de dano grave, seja ao processo, seja ao direito material, se tornasse irremediável e, por conseguinte, se transformasse em obstáculo ao gozo pleno e eficaz da tutela jurisdicional.[16]
A marcha para unificação das tutelas de urgência teve início com a reforma do CPC de 1.973, operada pela lei 10.444/2002, ao introduzir o critério da fungibilidade no artigo 273, § 7º. A seguir, veremos as modificações trazidas com o novo Código de Processo Civil.
1.3 O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – LEI N. 13.105/2015
Os ideais do acesso à ordem jurídica justa e da efetividade da jurisdição vêm se destacando como características convergentes e indutoras das diversas reformas e modificações dos sistemas processuais em diferentes países.[17]
O novo Código de Processo Civil, lei n. 13.105/2015, com vigência a partir de 18 de março de 2016, traz inovação importante ao regulamentar a matéria das “tutelas provisórias”, no Livro V, de sua Parte Geral; assim, encontra-se estruturada em três títulos: o primeiro, trazendo disposições gerais – artigos 294 a 299; o segundo, trata das “tutelas de urgência” – artigos 300 a 310; e, o terceiro, dispõe sobre a “tutela da evidência” – artigo 311.
Ao primeiro cotejo entre os textos do atual Código (2015) e do revogado (1973) é fácil notar a alteração no arranjo operado pelo legislador ao organizar topologicamente os enunciados referentes às tutelas ‘cautelares’ e ‘antecipadas’ em um mesmo Livro. Da mesma forma, não passa desapercebida a supressão do rol dos processos cautelares típicos regidos pelo antigo Livro III.
Diferentemente de mero arranjo textual, durante a fase de tramitação legislativa de elaboração do CPC/15, chegou-se a cogitar acerca de possível unificação substancial do regime das ‘tutelas de urgência’, apresentando-se com potencial de operar profunda modificação na dinâmica processual.
Desta nova estrutura projetada, ter-se-ia à disposição instrumento processual antecipatório, fundado em urgência (e, também, em evidência), a partir da comprovação – em sede de cognição sumária – de requisitos genéricos de fumus boni iuris e periculum in mora, que melhor se amoldasse às peculiaridades do caso concreto.
Em um segundo momento, contudo, denota-se que em razão das modificações sofridas na redação dos enunciados referentes a esta matéria durante a tramitação legislativa do projeto-lei, até findar no texto da norma em vigor, arrefeceu-se a expectativa da unificação de regimes.
O resultado do texto final foi no sentido de se agrupar tutelas ‘cautelares’ e ‘antecipadas’ sob a denominação comum ‘tutelas de urgência’; subespécies de ‘tutela urgência’; pertencente ao gênero: ‘tutelas provisórias’.
Ainda que se possa cogitar acerca de uma unificação de regimes, infere-se do texto normativo critérios procedimentais diferenciadores dos dois institutos, como as hipóteses dos artigos 303 e 304 (antecipada), e 305 a 310 (cautelar), que dispõe sobre o requerimento antecedente das tutelas de urgência.[18]
Do até aqui exposto, pode-se concluir que: se o processo civil busca resguardar direitos de modo substancial, cuja tutela pode ser prestada por atividade de cognição e execução, bem como mediante provimentos provisórios, indistintamente; então, a modificação relevante operada pelo legislador de 2.015 foi a de que a técnica antecipatória deve-ser o meio de distribuição isonômica do ônus do tempo no processo, ligando-a tanto à urgência como à evidência.[19]
2 DESENVOLVIMENTO II: DAS ‘TUTELAS DE URGÊNCIA’ – ESBOÇO SINTÁTICO E PRAGMÁTICO
A tutela jurisdicional se apresenta sob variadas formas, com conteúdo diverso, e é regida em função da natureza do direito que necessita ser protegido.[20]
William Santos Ferreira[21] ensina que o termo ‘tutela’ é plurívoco: (i) em sentido amplo, deve ser entendida como a obtenção, pelo litigante que tem razão, daquilo que o direito material lhe assegura; (ii) em sentido estrito, está relacionada ao tipo de provimento que o sistema processual assegura à parte para alcançar o bem da vida pretendido.
A seguir partiremos para a análise da estrutura da norma processual referente às tutelas de urgência sob a perspectiva sintática e pragmática.
2.1 ANÁLISE DA ESTRUTURA SINTÁTICA DAS ‘TUTELAS DE URGÊNCIA’ – ART. 300, DO CPC/15
O direito positivo, fixado a partir de um sistema de linguagem, é objeto cultural; ou seja, consoante teoria propugnada por Husserl, encontra-se na região ôntica[22] dos objetos culturais.
Lourival Vilanova aduz que o direito positivo se não é, tende a ser um sistema. Não é mero agregado de proposições normativas, simples justaposição de preceitos, caótico feixe de normas.[23]
Partindo-se da premissa de que onde há sistema há relações e elementos que se articulam segundo leis; e de que: se os elementos são proposições, sua composição interior obedece a leis de formação ou de construção; conclui, Vilanova[24], que o legislador pode selecionar fatos para sobre eles incidir as hipóteses, pode optar por estes ou aqueles conteúdos sociais e valorativos, mas não pode construir a hipótese sem a estrutura (sintática) e sem a função que lhe pertence por ser estrutura de uma hipótese.
Paulo de Barros Carvalho[25] afirma que o direito positivo apresenta-se fechado sintaticamente e aberto semântica e pragmaticamente. Explica que é fechado sintaticamente porque sua dinâmica operacional reduz-se na estrutura (H “lícito/ilícito”→ C “proibido, permitido e obrigatório”). E, é aberto semântica e pragmaticamente porque colhe informações e incide sobre a linguagem social.
De modo análogo, Aurora Tomazini,[26] sustenta que com relação à Ciência do Direito, verifica-se também um fechamento operacional e uma abertura cognitiva. A dogmática jurídica recolhe informações do sistema jurídico (e somente dele) e as processa na forma descritiva, para seu interior, com a produção de enunciados jurídico-científicos, que acabam por influir no conteúdo de outras comunicações (sociais).
A formalização do texto normativo em estruturas sintáticas assume grande relevância ao permitir uma melhor análise do direito positivo. Saliente-se, todavia, a advertência de Lourival Vilanova no sentido de que a lógica jurídica não pode dizer qual o conteúdo que há de preencher a forma: é tema extralógico.[27]
A partir deste referencial teórico, a possibilidade de se analisar a estrutura proposicional da norma atinente às ‘tutelas de urgência’.
A disposição geral contida no caput do art. 300, do CPC/15, é a seguinte:
Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
Assim, tem-se tutela de urgência: espécie; cujas subespécies são (i) tutela cautelar e (ii) tutela antecipada; podendo-se perquirir sobre algumas situações, como a seguir:
Situação 1 – Diferenciação pela causa
Tutela cautelar: problema instrumental
a. probabilidade do direito + risco ao resultado do processo
Tutela antecipada: problema material
b. probabilidade do direito + perigo de dano
Normas:
Tutela de urgência à tutela cautelar v tutela antecipada
D(H à C’ v C”) ou
D{H à [(H’ . H”) à C’ v (H” . H’”) à C’’)]}
– em que: probabilidade do direito “.” risco ao resultado útil do processo à tutela cautelar:
D[(H’ . H”) à C’]
– em que: probabilidade do direito “.” perigo de dano à tutela antecipada:
D[(H’ . H”’) à C’’]
Situação 2 – Diferenciação pelos efeitos
A tutela requerida, fundada em urgência, possui natureza instrumental: tutela cautelar
a. probabilidade do direito + perigo de dano; ou
b. probabilidade do direito + risco ao resultado do processo
A tutela requerida, fundada em urgência, possui natureza satisfativa: tutela satisfativa antecipada
a. probabilidade do direito + perigo de dano; ou
b. probabilidade do direito + risco ao resultado do processo
Normas:
Tutela de urgência à tutela cautelar v tutela satisfativa antecipada
D(H à C’ v C”) ou
D{H à [H “” . H’ . (H”’ v H”) à C’] v [H “”’ . H’ . (H”’ v H”) à C”]}
– em que: natureza instrumental da tutela “.” probabilidade do direito “.” (perigo de dano v risco ao resultado útil do processo) à tutela cautelar
D[H “” . H’ . (H”’ v H”) à C’]
– em que: natureza satisfativa da tutela “.” probabilidade do direito “.” (perigo de dano v risco ao resultado útil do processo) à tutela satisfativa antecipada
D[H “”’ . H’ . (H”’ v H”) à C”]
Sendo:
H: tutela de urgência
H’: probabilidade do direito
H”: risco ao resultado útil do processo
H”’: perigo de dano
H””: natureza instrumental da tutela
H””’: natureza satisfativa da tutela
C’: tutela cautelar
C”: tutela satisfativa antecipada
Passemos, agora, à análise do aspecto pragmático da norma das tutelas de urgência.
2.2 ANÁLISE DAS ‘TUTELAS DE URGÊNCIA’ – ESBOÇO PRAGMÁTICO
Calamandrei ensinava que por meio da cognição sumária busca-se um giudizio di probabilità e di verosimiglianza.[28]
Percebe-se, da leitura das normas de direito processual em vigor, que nos juízos proferidos por meio de cognição sumária a hipótese antecedente referente à ´probabilidade´, pela perspectiva sintática, mantém-se quase como uma constante.
Esta observação poderia ser recebida com estranheza, tendo em vista que até não muito tempo atrás muito se discutia sobre as diferenças e semelhanças entre o fumus boni iuris do processo cautelar (art. 798, caput, do CPC/73) e a verossimilhança com suporte fático em prova inequívoca da tutela antecipada (art. 273, caput, do CPC/73).
A esse respeito, assevere-se a crítica de Ovídio Baptista, de acordo com quem: se investigada a genealogia dos conceitos que a doutrina moderna se vale para definir a tutela cautelar (fumus boni iuris e periculum in mora) veremos que essas duas categorias não definem em absoluto a cautelaridade.[29]
Ovídio afirma, ainda, que a categoria técnico-processual denominada ‘fumus boni iuris’ é comum a todos os processos sumários e a outras formas de decisões judiciais.[30]
Em linha uniforme, Luiz Guilherme Marinoni[31] aduz que a técnica antecipatória sempre trabalha nos domínios da ‘probabilidade do direito’ (art. 300, do CPC/15) – e, nesse sentido, está comprometida com a prevalência do direito provável ao longo do processo.
Probabilidade e certeza não estão em um mesmo plano, não podem ser consideradas valências equivalentes. A aferição da hipótese (H) em sede de cognição rarefeita se faz por meio de um juízo de probabilidade (e graus de probabilidade); já a aferição da hipótese (H) em sede de cognição exauriente se faz por meio de certeza (e graus de certeza).
Michele Taruffo apresenta um interessante estudo epistemológico do processo com sua atenção voltada para o conhecimento dos fatos com base nas provas, em uma relação interacional das partes. A partir da valoração epistêmica buscou por métodos de validação a descoberta da verdade.[32]
Tal estudo parte da análise das narrativas dos fatos da causa – teoria do story-telling –, segundo o qual narrativas podem ser do tipo: boa/ruim; verdadeira/falsa. Essas distinções não se equivalem; podem, pelo contrário, estar cruzadas, obtendo um conjunto de quatro situações diferentes. São elas:
a) narrativa boa e falsa;
b) narrativa ruim e falsa;
c) narrativa boa e verdadeira;
d) narrativa ruim e verdadeira.
No âmbito do processo, narrativas do tipo (c) seriam certamente as mais apreciadas, mas as narrativas do tipo (d) também poderiam ser levadas em consideração, na medida em que verdadeiras.
De acordo com esta teoria, as narrativas construídas no processo são conjuntos ordenados de enunciados que descrevem as modalidades e as circunstâncias relativas aos fatos que originaram a controvérsia.[33]
As partes constroem e narram suas histórias com o escopo de justificar suas versões dos fatos de modo a induzir o juiz a satisfazer suas pretensões. [34] Por outro lado, o juiz encontra-se em uma situação completamente diferente: ele não deve persuadir alguém e não tem qualquer tese preconcebida a demonstrar. Além disso, espera-se que ele não construa na motivação uma narrativa qualquer dos fatos da causa, mas sim uma narrativa <<verdadeira>>.[35]
A narrativa construída pelo juiz pode ser entendida como um conjunto ordenado de enunciados, em que um fator importante de ordem é constituído pela distribuição desses enunciados em quatro níveis distintos, sendo que a ligação entre os vários níveis de narrativa construída pelo juiz tem natureza inferencial: [36]
“- no primeiro nível encontram-se enunciados que descrevem fatos principais;
– no segundo nível encontram-se enunciados que descrevem os fatos secundários (que é eventual);
– no terceiro nível da narrativa do juiz inclui os enunciados que resultam das provas produzidas;
– no quarto nível, cuja presença é, em linha de princípio, somente eventual (apesar de muito frequente), inclui as circunstâncias a partir das quais se podem fazer inferências sobre a credibilidade e confiabilidade dos enunciados do terceiro nível (e referem-se, por exemplo, à credibilidade de uma testemunha ou à autenticidade de um documento).”
A ligação inferencial se faz por meio do instituto denominado <<confirmação>> ou, também: warrant. Abaixo a sua descrição:
“O warrant concerne à conexão que se instaura entre uma afirmação, que tem inicialmente caráter hipotético, e as provas que confirmam sua veracidade, segundo o esquema W=EàH (W indicando o warrant, E as provas disponíveis e H a hipótese em questão). Visto que a amplitude e a qualidade das provas que podem ser referidas à hipótese podem variar de acordo com as circunstâncias, a <<confirmação>> é um conceito de <<grau>>. (…) Por conseguinte, o grau de confirmação depende de quantas e quais provas estão disponíveis em relação a todas as provas possíveis. Todavia, não parece dúbio que no plano epistêmico deva valer a regra segundo a qual o grau de confirmação da hipótese aumenta com a produção de provas ulteriores, visto que a situação ideal é aquela em que todas as provas possíveis são produzidas [37]
Deste modo, a dinâmica para o conhecimento dos fatos segue a seguinte sequência:
A – (…) as hipóteses que se procura confirmar são enunciados concernentes aos fatos principais que constituem o primeiro nível da narrativa do juiz;
B – das provas surgem os enunciados que compõem o terceiro nível da narrativa, que confirmam diretamente os enunciados do primeiro nível, além dos enunciados concernentes aos fatos secundários (que se encontram no segundo nível);
C – esses últimos, de seu turno, atribuem confirmação inferencial aos enunciados sobre os fatos principais;
D – por fim, os enunciados que estão no quarto nível têm função de atribuir confirmação, em termos de confiabilidade, aos enunciados que exprimem os resultados produzidos pelas provas.”
Com relação aos graus de confirmação e standards de prova, Taruffo aduz que os enunciados sobre os fatos principais são originalmente hipóteses que como tal podem ser verdadeiras ou falsas. A decisão final sobre os fatos (ou seja, a narrativa construída pelo juiz) resolve essa incerteza, atribuindo a cada hipótese o grau de confirmação competente com base nas provas que a essa se referem.
Nesse caso, podem se distinguir seis possibilidades para cada hipótese:[38]
“a) H não teve qualquer confirmação;
b) H teve confirmação fraca;
c) H teve confirmação forte;
d) a falsidade de H não teve qualquer confirmação;
e) a falsidade de H teve confirmação fraca;
f) a falsidade de H teve confirmação forte.”
Desdobramentos deste raciocínio seriam os seguintes:
“A: a) e f) não deveriam ser levadas em consideração;
B: não se deveria levar em conta as situações b), d), e e), visto que a veracidade de H não resulta suficientemente confirmada, mas tampouco sua falsidade resulta adequadamente demonstrada pelas provas.”
Observe-se, todavia, tratando-se de ‘tutelas de urgência’, em que a atividade jurisdicional se faz por meio de cognição rarefeita, as situações b), d), e e) não poderiam ser descartadas de plano. Em tese, analisando-se as peculiaridades do caso concreto, tais constatações (b, d, ou e) poderiam ser suficientes para a concessão do provimento provisório.
A distinção entre as seis situações esquematizadas é útil por representar também o quadro das compatibilidades que podem ser confrontadas dependendo dos êxitos probatórios:
“a) H não teve qualquer confirmação – é compatível com:
d) a falsidade de H não teve qualquer confirmação; e
f) a falsidade de H teve confirmação forte.
b) H teve confirmação fraca – é compatível com:
d) a falsidade de H não teve qualquer confirmação; e
e) a falsidade de H teve confirmação fraca.
– não é compatível com:
f) a falsidade de H teve confirmação forte.
c) H teve confirmação forte;
d) a falsidade de H não teve qualquer confirmação;
e) a falsidade de H teve confirmação fraca;
– não é compatível com:
f) a falsidade de H teve confirmação forte.”
O conteúdo principal da narrativa do juiz é constituído pelos enunciados fáticos que receberam confirmação com base nas provas.
Michele Taruffo alerta sobre dois possíveis problemas particularmente importantes: i) o primeiro diz respeito à determinação do grau de confirmação de cada enunciado; e ii) o segundo, ao grau de confirmação que cada enunciado deve obter para poder ser considerado provado. [39]
Com relação ao primeiro problema, parece encontrar abrigo no princípio do livre convencimento do juiz, o que, segundo ele, não implica na desvinculação do juiz a critérios de racionalidade.
Com relação ao segundo, sustenta que o grau de confirmação de um enunciado deriva de inferências lógicas que levam em conta a quantidade e a qualidade das provas disponíveis que se referem àquele enunciado, seu grau de confiabilidade e sua coerência. [40]
A narrativa dos fatos construída pelo juiz compõe-se, por conseguinte, de um conjunto ordenado de enunciados fáticos, tendo cada um desses obtido das provas disponíveis – racionalmente valoradas – uma confirmação probatória suficientemente forte. Nessa situação haverá razões válidas para sustentar-se que, no contexto do processo, tais enunciados possam se considerados verdadeiros. [41]
Ressalte-se, uma vez mais que, tratando-se de ‘tutelas de urgência’, a exigência da confirmação probatória ‘forte‘ pode ser abrandada diante das peculiaridades do caso concreto, o que não induz afirmar que seria desnecessária qualquer confirmação probatória.
Voltando, assim, à análise da probabilidade referida às ‘tutelas de urgência´, tem-se que o conceito de probabilidade pode ser entendido como um enunciado provável a partir do momento em que se dispõe de informações com base nas quais se considera adequado afirmar que aquele enunciado é verdadeiro. [42]
Ainda fazendo referência a Turuffo, tem-se que, substancialmente, a probabilidade é uma função da justificativa que se atribui a um enunciado, com base nos elementos cognoscitivos disponíveis. [43]
Este método deve ser aplicado a cada narrativa, a cada hipótese, a cada enunciado. Em outras palavras, seja pela perspectiva do fumus boni iuris ou do periculum in mora, a análise das alegações das partes deve passar por este método de verificação / confirmação.
CONCLUSÃO
Na parte introdutória foram apresentadas premissas pautadas pelo método instrumentalista com forte apelo aos preceitos constitucionais, com vistas à efetividade do processo por meio do conceito de acesso à ordem jurídica justa.
No segundo capítulo, foram traças linhas gerais e evolutivas dos institutos que hoje encontram-se reunidos sob a nomenclatura ‘tutelas de urgência’. Dispendeu-se especial cuidado à doutrina italiana do século XX a quem se deve crédito pela sistematização e classificação da ação / processo / provimento cautelar; chegando-se a cogitar, a partir do novo Código de Processo Civil, o desaparecimento da figura do tertium genus. Também não se descuidou em traçar uma linha evolutiva tanto das tutelas cautelares como antecipadas nos Códigos de Processo Civil de 1973 e o atual.
No Capítulo 3, partiu-se do conceito plurívoco de ´tutela´, percorrendo por uma rápida noção de aspectos estáticos e dinâmicos do termo, chegando-se ao estudo analítico da estrutura sintática do dispositivo do art. 300, do CPC, apresentado a estrutura formal da norma; assim como, abordou-se a visão pragmática das ‘tutelas de urgência’ a partir da teoria das narrativas de Michele Taruffo.
O tema das ‘tutelas de urgência’ é muito mais amplo do que se buscou tratar no presente estudo. Ainda há anos por vir para se ter um efetivo amadurecimento sobre o tema. Com efeito, não se buscou exaurir o tema, porém percorrer um ensaio experimental sobre esta nova concepção das ‘tutelas de urgência’ trazida com o novo Código de Processo Civil, por meio das três perspectivas da semiótica aplicáveis ao estudo do direito: semântica, sintática e pragmática.
Informações Sobre o Autor
Gustavo N. Kasaoka
Mestrando do núcleo de pesquisa em Direito Processual Civil, da PUC de São Paulo. Especialista em Direito Processual Civil pela COGEAE-PUC/SP. Membro colaborador do Centro de Estudos Avançados de Processo – CEAPRO. Oficial do 13º. Gabinete da 5ª. Turma Recursal/SP – 3a. Região