Entre facticidade e validade: A legitimação do direito à luz da razão comunicativa

logo Âmbito Jurídico

Resumo


A presente resenha versa sobre o capítulo III da obra “Direito e Democracia: entre facticidade e validade”, de autoria do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, grande defensor e propulsor da teoria da razão comunicativa.  Habermas nasceu em 1929, em Düsseldorf. Doutorou-se na Universidade de Bonn, em 1954. Lecionou nas Universidades de Heidelberg (1961-1964) e Frankfurt (1964-1971). De 1971 a 1983, dirigiu o Instituto Max-Planck. Em 1982, retornou à Universidade de Frankfurt, aposentando-se em junho de 1994.[1]


A legitimação do Direito à luz da razão comunicativa


Habermas busca reconstruir a autocompreensão entre pretensões normativas democrático-constitucionais e a facticidade de seu contexto social e, para tanto, toma como ponto de partida, os direitos que os cidadãos têm de atribuir uns aos outros a fim de regular de forma legítima sua convivência com os meios do direito positivo, inferindo, pois, que esta é uma formulação que deixa transparecer a existência de uma tensão entre facticidade e validade que permeia o sistema dos direitos.


Em elaborado histórico acerca do dogma dos direitos subjetivos, Habermas estabelece diálogos preliminares entre os teóricos idealistas Savigny, Puchta e Kant, referindo que, conforme Savigny e Puchta, o direito, entendido como direito negativo garantidor da vontade/liberdade individual, legitima-se por si mesmo, ao passo que na concepção kantiana o direito privado só pode legitimar-se por si mesmo se a autonomia privada estiver apoiada na autonomia moral.


Neste percurso histórico, o direito, ao perder sua fundamentação idealista, passou a afirmar-se sob o enfoque positivista, ou seja, como a forma que reveste determinadas decisões e competências com a força da obrigatoriedade fática. Mais tarde, a interpretação utilitarista de Ihering, entendeu que o proveito e não a vontade constitui a substância do direito. Por fim, Habermas refere a concepção kelseniana, que separa o conceito de direito do conceito de moral, bem como o conceito de pessoa natural do de pessoa moral, cedendo passagem, portanto, para uma interpretação funcionalista dos direitos subjetivos.


Nesse ponto, Habermas refere a concepção funcionalista de Coing, segundo a qual, no âmbito do direito subjetivo, o direito privado afigura-se em um direito dos indivíduos, independentes entre si, agirem de acordo com as suas próprias decisões. O autor refere que, contra tal reinterpretação funcionalista, tentou posicionar-se Raiser, corrigindo o princípio individualista com o auxílio de uma sociologia do direito e reintroduzindo no direito privado o seu conteúdo moral.


Contudo, tais discussões não permitiram esclarecer de onde o direito positivo obtém sua legitimidade. Habermas acredita que a fonte de toda legitimidade está no processo democrático de legiferação e que esta se apóia no princípio da soberania do povo. Entretanto, o modo como o positivismo jurídico introduz esse princípio não preserva o conteúdo moral independente dos direitos subjetivos.


Segundo Habermas, Savigny supôs que o direito privado se legitima a partir de argumentos da razão, e Kant não conseguiu responder claramente à questão da legitimação de leis gerais, pois não esclareceu a relação entre princípio da moral, do direito e da democracia.


Habermas entende o princípio do direito enquanto mediador entre o princípio da moral e o princípio da democracia, contudo, constata a falta de clareza na relação entre esta tríade principiológica, que, no seu entender, deve-se a Kant e a Rousseau, eis que, em ambos, há uma relação de concorrência entre os direitos humanos fundamentados moralmente e o princípio da soberania.


O autor assevera que a tensão entre facticidade e validade, entre a positividade do direito e a legitimidade pretendida por ele não pode ser menosprezada nem ignorada. Ressalta que os argumentos favoráveis à legitimação do direito devem ser compatíveis com os princípios morais da justiça e da solidariedade universal, e também com os princípios éticos de uma conduta de vida auto-responsável, projetada conscientemente.


Para Habermas, direitos humanos e princípio da soberania formam as ideias sobre as quais ainda é possível justificar o direito moderno. Conforme o autor, as tradições políticas liberais e republicanas concebem os direitos humanos como expressão de autodeterminação moral e a soberania do povo como expressão de auto-realização ética, estabelecendo, portanto, uma relação de concorrência entre estes dois elementos.


Opondo-se a esse pensamento, Rousseau e Kant idealizaram a união prática e a vontade soberana no conceito de autonomia, de modo que a ideia de direitos do homem e princípio da soberania do povo se interpretassem mutuamente, entretanto, não conseguiram entrelaçar simetricamente os dois conceitos, tampouco descobrir o nexo interno entre eles, que, segundo o autor, reside no conteúdo normativo de um modo de exercício da autonomia política, assegurado por meio da formação discursiva da opinião e da vontade.


Na concepção habermasiana, é através dos discursos que se pode formar uma vontade racional, e a legitimação do direito reside, portanto, em arranjos comunicativos. Em derradeira análise, Habermas salienta que a co-originariedade da autonomia privada e pública só é possível mediante o entendimento da autolegislação através da teoria do discurso, que concebe os indivíduos como autores e destinatários de seus direitos.


Ao referir sobre a relação complementar entre direito e moral, Habermas menciona que o direito não está subordinado à moral, mas que ambos encontram-se numa relação de complementação recíproca. Porém, ao comparar o princípio da moral com o princípio da democracia, Habermas situa-os em níveis distintos, salientando que o princípio da democracia “deve orientar a produção do próprio medium do direito”. (p. 146).


Ao analisar a fundamentação dos direitos sob a teoria do discurso, Habermas aduz que os destinatários do direito só poderão ter uma compreensão correta da ordem jurídica mediante uma normatização politicamente autônoma, pois, segundo ele, “o direito legítimo só se coaduna com um tipo de coerção jurídica que salvaguarda os motivos racionais para a obediência ao direito”. (p.157-158) O princípio do discurso introduzido por Habermas é indiferente em relação à moral e ao direito e deve assumir, segundo o autor, a figura de um princípio da democracia, que passa a conferir força legitimadora ao processo de normatização. O autor destaca que o princípio da democracia decorre do nexo entre o princípio do discurso e a forma jurídica, situando-o, portanto, no núcleo de um sistema de direitos.


Em derradeira análise, o autor refere que o surgimento da legalidade a partir da legitimidade não é paradoxal e que a compreensão discursiva do sistema do direito permite olhar em duas direções: de um lado, a legitimação das normas jurídicas volta-se para os procedimentos discursivos institucionalizados juridicamente e, de outro lado, mediante a juridificação da liberdade comunicativa, o direito passa a explorar fontes de legitimação das quais ele não pode dispor.


Em face do exposto, pode-se concluir, por derradeiro, que o ponto central de reflexão do autor reside na reconstrução de partes do direito racional clássico através da teoria do discurso. Para explicar a interação social, Habermas substitui a razão prática pela razão comunicativa, e através da ética do discurso busca entender e fundamentar uma comunicação da qual possa emergir uma razão partilhada pelos sujeitos.


A teoria propugnada por Habermas apresenta, pois, condições de possibilidade à construção de uma nova cultura política que possibilite uma maior inclusão e um maior engajamento dos cidadãos no processo de organização e de tomada de decisões da sociedade. Entretanto, tal construção pressupõe a participação dos cidadãos na produção de um discurso orientado para o entendimento, e pressupõe, sobretudo, um Estado efetivamente democrático, em que os direitos fundamentais e a democracia entrem em um inseparável contexto.


 


Referências

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 2.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, v. 1, p.113-168.

LEAL, Rogério Gesta. Habermas, Jürgen. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.).  Dicionário de Filosofia de Direito: São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. p. 403.

 

Nota:

[1] LEAL, Rogério Gesta. Habermas, Jürgen. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.).  Dicionário de Filosofia de Direito: São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. p. 403. 


Informações Sobre o Autor

Katia Leão Cerqueira

Mestranda em Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Especializanda em Direito Imobiliário com ênfase em Direito Notarial e Registral na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.