Espionagem eletrônica (Ou a culpa é do garçom?)

Chega aos jornais notícia de
indiscrição correspondente a uma fita sorrateiramente gravada de reunião entre
Ricardo Teixeira e o denominado “Clube dos Treze”, tudo ligado ao futebol
brasileiro. Aquela gravação, segundo consta, teria sido concretizada por um
garçom. Volto, provocado pelo incidente, ao meu tema preferido: espionagem
eletrônica. Não se deve, quanto a isso, fazer muita marola. Poupem-se os
jovens. Há lição não escrita, no livro da vida, educando o moço para a
disciplina, a obediência, a conformação. Os delicados entrelaçamentos da arte
da sobrevivência o conduzem a uma linha tortuosa. A tentativa de seguir sem
desvios põe a juventude dentro de armadilhas sinuosas, ao jeito daqueles jogos
de guerra comuns, hoje, nos computadores. Entretanto, a transparência dos
atentados diários à dignidade do ser humano exige comentário sintético, em
advertência à comunidade anestesiada pelo medo ou convencida pela rotina das
investidas à privacidade.

Dá-se, no mundo moderno, fenômeno posto
adiante da premonição de George Orwell. O “Grande
Irmão” é real. O cidadão perdeu direito à solidão. Não há segredos. Linhas
telefônicas, contas bancárias, exames de laboratório, imagem, relacionamentos,
hábitos, alimentação, relações de emprego, tudo se põe à vista quando houver
razão suficiente para  despertar a atenção do Estado ou de particulares
devotados  à apreensão de intimidades. Ao lado, funcionam estímulos
comerciais instituídos por fabricantes dos produtos adequados ao espiolhamento. A título de corolário, o cidadão foi
convencido – e vem aí a satânica proposição – de que a captação de sua imagem
nos estabelecimentos bancários, supermercados, farmácias, hospitais, halls de entrada e elevadores só pode trazer bem, pois
significa segurança na eterna luta entre Deus e o demônio. Assim, o condômino
coopera na aquisição de cercas eletrificadas e sistemas modernos de gravação
(câmeras de vídeo); os estabelecimentos comerciais se dispõem igualmente a
tanto; as provedoras não se recusam, em várias oportunidades, ao grampeamento
de telefones; a polícia se aparelha a tanto; os juízes autorizam; finalmente, o
povo gosta. Virou moda. Com tudo isso, os seqüestros continuam,
a criminalidade aumenta, a delinqüência parte para a modernidade e o mundo se
enerva mais e mais.

Não pode ser assim, mas é. No fim, a perda da
privacidade pode ser atribuída a burrice de burguês.
Sente-se importante o cidadão com a rede de vigilância  instalada no
condomínio em que vive. Seus badulaques estariam protegidos. Vã esperança. A
probabilidade de ser assaltado dentro do elevador é nenhuma. Entretanto,
humilha-se a ponto de ser alvo da atenção (e às vezes de chacota) do porteiro
do prédio, transformado em espião oficial dos sestros do infeliz morador. Ao
lado, a não resistência, a concordância, o incentivo, desnaturam o próprio
preceito constitucional assegurador do direito ao segredo. Desveste-se
a burguesia miseravelmente, expondo suas vergonhas ao grande e aos pequenos
inquisidores,  satisfeita sim, ignorando que se põe
sob os olhos dos zeladores e porteiros, estes últimos beneficiados, porque são
os únicos não fiscalizados pelo todo. Coisa terrível! Cômica e dramática é a
visão de homens e mulheres caminhando orgulhosos, conspícuos mesmo, entrando e
saindo dos portais de prédios granfinos e edifícios públicos,
filmados e fotografados  de frente e de fundos, espelhados nos seus
defeitos, sapatos, roupas, vestidos, rasgões nas meias, barrigas avantajadas,
tonsuras no alto das cabeças, um dedo descuidado  coçando as entranhas do
nariz ou um comichão no meio das pernas, a  pose
de Marylin Monroe ou de Brad
Pitt no espelho do ascensor
(posto de propósito nos fundos para captar o hall do apartamento), tudo
registrado  pelo espia-mor  (faxineiro)
ou,  se  e quando assim se dispuser, pelos televisores do prédio inteiro.
Não, burgueses envergonhados,  emburrecidos pelo
medo, massificados pelo pavor, convencidos pela mídia ou despersonalizados pelo
“Grande Irmão”, vocês já morreram. E não sabem!

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Paulo Sérgio Leite Fernandes

 

Advogado criminalista em São Paulo e presidente, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado.

 


 

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