Resumo: Este artigo é resultado de uma pesquisa científica realizada no Presídio Feminino de Florianópolis, cujo objetivo é abordar a criminalização da mulher por tráfico de drogas. Os discursos apresentados pelas criminalizadas transcorrem realidades intramuros e extramuros, acompanhando as desigualdades sociais, além dos entraves que se constitui na execução penal. O PFF é uma instituição que abriga um numero muito superior que sua capacidade, quando voltado às criminalizações a predominância é o tráfico de drogas, sendo que esta instituição “abriga” indivíduos em condições peculiares, num ambiente que envolve amor, ódio, sofrimento e desejos, observa-se um ciclo de violência e disciplina, uma nua vida. [1]
Palavras-chave: Criminalização da Mulher. Tráfico de drogas. Sistema Prisional.
Abstract: This article is the result of a scientific research conducted at the Female House Arrest in Florianopolis (PFF), whose focus is to board the criminalization of women for drug trafficking. The speeches made by criminalized elapses internal and external realities, following social inequality, beyond the barriers that constitutes the criminal enforcement. The PFF is an institution that shelters a number that far exceeds its capacity, this institution homes individuals in the peculiar conditions in an environment involving love, hate, suffering and wishes, there is a cycle of violence and discipline.
Keywords: Criminalization. Traffick drug. Violence
INTRODUÇÃO
O presente artigo é fruto de uma pesquisa acadêmica, realizada pelo Núcleo de Estudos Sobre Preconceito e Intolerância (NEPI) no Presídio Feminino de Florianópolis, entre os anos de 2006 até 2008. Buscamos ampliar o olhar empírico e acadêmico, no que diz respeito à criminalização do gênero feminino, uma vez que o mundo da mulher encarcerada é quase desconhecido e pouco visualizado, não se dando muita ênfase a mulher/presidiária e fazendo-as esquecidas em muitos aspectos, pois encontramos poucos estudos que abordam a prisão feminina e suas particularidades, especificamente numa visão mais critica ao sistema penal.
Para se adentrar por este mundo quase que intocável, é necessário se despir de preconceitos, julgamentos e cargas ideológicas decorrentes de um senso comum criminalizador – mídia e discurso punitivo – para entender as peculiaridades que envolvem um presídio feminino, buscando um outro olhar deste lugar e da situação que as mulheres criminalizadas vivem. Queremos salientar que no decorrer da pesquisa os relatos foram expostos de forma muito natural, misturados com lágrimas e sorrisos. Ressaltando que os nomes das entrevistadas serão trocados, a fim de preservar as identidades das frases utilizadas neste.
O tema proposto deste artigo nasceu da angustia de constatar que a grande maioria das mulheres criminalizadas estavam aprisionadas por suposto envolvimento com o tráfico de drogas, fato este que superlota o Presídio Feminino de Florianópolis.
Levando em consideração a construção histórica na qual se formou uma ideologia de domesticação da mulher é necessário, sem dúvida, entender a condição da mulher em determinado espaço social, fazendo um paralelo com o tratamento sócio punitivo e toda carga valorativa voltada à mulher em virtude do encarceramento. O tratamento penal frente a figura feminina está ligado intimamente com os valores morais e sociais de determinados tempos e espaços.
1 MULHERES E TRÁFICO DE DROGAS
No inicio da pesquisa no Presídio Feminino de Florianópolis (agosto/2006) existiam encarceradas um total de 146 mulheres, condenadas e não condenadas[2]. As faixas etárias alcançavam idades variadas, desde mulheres com 18 anos até 60 anos. Trabalhamos especificamente com as mulheres condenadas, das quais buscamos informações. As conversas se davam a partir de um roteiro elaborado em forma de questionário com perguntas objetivas e subjetivas, além de informações externas, como o colhimento de dados da ficha cadastral e entrevistas extras (delegada, policial e ex-presidiárias).
Iniciamos as entrevistas seguindo os nomes registrados no Boletim Mensal de Informações do próprio presídio, que continham 66 nomes de mulheres processadas e condenadas, com as quais trabalhamos. Logo de inicio nos deparamos com uma imensa quantidade de criminalizadas[3] (já condenadas) pelo Art.12 da Lei 6.368/76 (tráfico ilícito de drogas)[4], chegando a uma porcentagem de aproximadamente 71%.
Com o decorrer das visitas ao presídio, questões que envolvem criminalizações por tráfico de drogas tornaram-se cada vez mais acentuadas, uma vez que as fichas de dados, os processos e as próprias entrevistas, basicamente giravam em torno deste crime; o qual ajudava de forma significativa a povoar o referido presídio.
A partir de então surgiu a necessidade de entender o processo de criminalização feminina por tráfico de drogas. Porém, no decorrer das entrevistas, as indagações foram dando lugar às respostas, levando-nos a reflexões sobre a realidade social em que viviam, quem eram, e de onde vieram, além do tratamento jurídico que lhes foi destinado.
É possível fazer uma análise do último decênio em relação à massa carcerária e o tráfico de entorpecentes – especificamente no Presídio Feminino de Florianópolis – que é o bojo da nossa pesquisa, a partir de alguns trabalhos científicos que expõem dados sobre o tema. Estes ilustram a evolução da criminalização e o aumento do número de encarceradas.
Em 1996 encontravam-se presas no Presídio Feminino de Florianópolis 40 mulheres, sendo quase 62% por tráfico (SILVA, 1998, p.56). Já no ano de 2007 quase dez anos após, existiam cerca de 150[5] mulheres encarceradas, destas 66 foram julgadas e condenadas, chegando a um percentual de 71% por tráfico de drogas. O percentual de criminalizadas por tráfico tem acompanhado a porcentagem do último decênio, quando fala-se nos mais altos índices de encarceramento por este crime.
Entrevistamos um Policial Militar[6] que nos disse que a mulher está envolvida no tráfico hoje, muito mais que cinco anos atrás, e que a maioria das ocorrências estão envolvidas com o tráfico, tudo gira em torno do tráfico. É perceptível que, com o passar dos anos, desenvolveu-se uma ampliação da criminalização secundária quanto às condutas de tráfico de drogas envolvendo mulheres, passando a serem estigmatizadas, alcançadas, e selecionadas pelo sistema punitivo, de forma freqüente.
1.1. O alcance da Legislação
A intensificação na repressão ao narcotráfico – que trata o problema das drogas como um problema criminal – se deu há alguns anos. A tendência legislativa contra as drogas aconteceu em grande parte dos países e, inclusive no Brasil, por influências norte-americanas. Rosa Del Olmo (1990, p.27) elucida que a luta contra o tráfico de drogas se tornou uma guerra mundial. Como resultado as experiências dos Estados Unidos se tornaram mais importantes para os outros países como lições para o futuro (grifo do autor).
Diante disso os traficantes se tornaram inimigos numero um, seres com representatividade altamente perigosa, que corrompiam as/os meninas/os de bem, vendendo a famosa “erva assassina”. Temas como “cocaína e a maconha, em sua produção-distribuição, alcançaram dimensões demoníacas na maior parte dos países da América do Sul” (DEL OLMO, 1990, p. /13), intensificaram-se cada vez mais a caça aos supostos traficantes.
No Brasil o combate às drogas tomou dimensões legislativas concretas quando em 1976 foi publicada a Lei 6.368, criminalizando usuário (art.16) e traficante (art.12) de entorpecentes, penalizando este último com pena de 3 (três) à 15 (quinze) anos. Com o passar dos anos, a guerra ao tráfico se intensificou. Muito contribuiu o movimento de Lei e Ordem, que clamava pela ampliação da repressão, ou seja, esse movimento necessitava “criminalizar mais, penalizar mais, aumentar os aparatos policiais, judiciários, e penitenciários. É necessário incrementar mais e mais a engenharia e a cultura punitiva, fechar cada vez mais a prisão, e suprimir as garantias penais” (ANDRADE, 2005, p.15).
Este talvez seja um dos fatores que contribuiu para surgir uma nova lei em agosto 2006, Lei 11.343, determinando tratamentos diferentes quanto ao usuário/as e o/a traficante. A Lei que antes penalizava os dois (uso e tráfico), com a mudança passou a não mais penalizar os/as usuários/as de entorpecentes e passou a penalizar com mais rigidez os/as traficantes.
A Lei 11.343/06 veda liberdade provisória às/os criminalizadas/os por crime de tráfico (art.33); a pena mínima é de cinco anos (quase a pena mínima de um homicídio), e a máxima de 15 anos; o tratamento penal alcança um ciclo de 18 verbos (importar, transportar, remeter, preparar…); a progressão de regime[7] para ré/réu primária/o é de 2/5 e reincidente 3/5 da pena. Importante salientar que o aumento da pena mínima impossibilitou a conversão/substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.
Por outro lado, se oficializou mais uma imunidade para a classe hegemônica, pois a nova Lei não trata mais a/o usuária/o da mesma forma em que identifica os considerados traficantes – culminado-lhes uma pena. Sabemos que a imagem típica do traficante, para nos atermos no básico, será a do jovem de classe pobre, preferencialmente negro ou mulato, fazendo ressurgir o discurso médico-sanitário:
“O pequeno distribuidor, seria visto como o incitador ao consumo, o chamado Pusher ou revendedor de rua. Este indivíduo geralmente provinha dos guetos, razão pela qual era fácil qualificá-lo de “delinqüente”. O consumidor, em troca, como era condição social distinta, seria classificado de “doente” graças à difusão do estereotipo da dependência, de acordo com o discurso médico que apresentava o já bem consolidado modelo médico-sanitário.” (DEL OLMO, 1997)
A lei 11.343/06 aplicará ao usuário que se enquadrar num dos cinco verbos nucleares (adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar e trazer consigo) a advertência sobre os efeitos da droga; prestação de serviços a comunidade; medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Assim, a nova lei busca controlar os inimigos (pobres), criminalizando quem vende (droga), e concede um tratamento curativo aos que compram (classe média/alta) essas drogas ilícitas, certamente enquanto anestesiam-se uns, metralham-se outros (MALAGUTI, 2003, p. 87).
Toda essa busca incessante àqueles que vendem drogas ilícitas, parece não ligar para o gênero, tanto que o numero de mulheres encarceradas por tráfico de drogas, no Presídio Feminino de Florianópolis e em muitos outros Presídios e Penitenciarias Femininas pelo Brasil ilustram o quanto elas comportam uma massa significante de encarceramento, como em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, 86% das detentas estão presas por venda de drogas[8] no ano de 2008. Já em todo território nacional em 2006 se chegou a uma estimativa de 10 mil mulheres presas por tráfico de drogas[9].
Thiago Rodrigues explica que a proibição da droga interessa a muita gente, alguns faturam muito com o mercado ilícito de drogas, como a indústria farmacêutica (que evita a concorrência das drogas ilegais com seus narcóticos e euforizantes patenteados), a indústria bélica (que também ganha muito com a proibição), além do sistema financeiro internacional (que depende de bilhões de dólares provenientes do negócio ilegal – com parceria no tráfico de armas) e a “indústria do controle do crime”, que vende seus sistemas de segurança e vigilância, cercas elétricas, etc. (RODRIGUES, 2007, p.266). Portanto, os interesses políticos e econômicos ligados a permanência da tendência quanto a repressão ao tráfico de drogas parece ainda ter um longo caminho.
1.2. Mudanças na Legislação: Crime Hediondo
Houve, durante a pesquisa no Presídio Feminino de Florianópolis, uma grande agitação e curiosidade por parte das mulheres criminalizadas em virtude de uma mudança da Lei no que concerne a progressão de regime para crimes hediondos. Como a mídia transmitiu este fato de uma maneira ambígua para elas, a ansiedade em saber o que estava acontecendo era imensa, pois a grande maioria estava encarcerada por tráfico (equiparado a crime hediondo).
Visto que, para os crimes desta natureza existia o dispositivo da Lei 8.072/90 (crimes hediondos) que impedia a progressão de regime aos condenados pelos delitos considerados como tais, o STF (Habeas Corpus 82959/2006) no inicio de 2006, declarou inconstitucional a vedação de progressão de regime nos casos de crimes hediondos. A partir daí, os Tribunais iniciaram a concessão de progressão de regime àqueles/as que já teriam completado 1/6 da pena (primária) e ¼ da pena (reincidente) a esses delitos e a grande maioria das apenadas (art. 12, de lei 6.368/76) passou a gozar do direito à saída temporária (“sete dias”), visto que já haviam alcançado o tempo determinado para tanto.
Em contraposição, a entrada em vigor da Lei 11.464/2007 mudou o sistema de progressão de regime estabelecido pela LEP, passando a cominar novo prazo para a concessão do benefício aos presos por crimes hediondos e equiparados. Assim, conforme a nova redação do art. 2° da Lei de Crimes Hediondos (8.072/90): “a progressão de regime no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente”. Como conseqüência disso, aquelas que haviam progredido, tiveram medo de regredir de regime, por conta das informações que tinham obtido através da televisão. De início, criou-se até uma discussão no meio jurídico acerca do entendimento se a nova Lei (11.464/2007) seria mais benéfica ou se a antiga disposição (com os efeitos dados pela decisão do STF) poderia ser interpretada para favorecer os apenados.
Para resolver a angústia da maioria, era necessário esperar um pouco, para ver algumas decisões sobre o tema, ou até mesmo se cogitar da possibilidade de se impetrar um habeas corpus[10]. Porém, o que as impossibilitou de utilizar estes instrumentos de garantia contra a restrição da liberdade, foi a falta de advogado constituído. Este é um fato fundamental para o entendimento da realidade daquele universo prisional feminino, uma vez muitas não possuem um advogado contratado por não terem condições financeiras para arcar com os honorários. O Estado fornece advogado dativo[11] – ou deveria fornecer -, este deveria atuar na causa até o termino da pena. Entretanto, muitos desses advogados tornam-se praticamente fantasmas e assim o abandono em que às encarceradas ficam submetidas torna-se um fato bastante visível e concreto. Uma entrevistada criminalizada por tráfico de drogas nos disse que “tive um advogado até ser condenada, depois não sei…” [12].
Neste sentido, convivemos intensamente com os dramas em decorrência de questões formais da execução penal, onde o desespero de viver num sistema que é negligenciado revela aquilo que na teoria se legitimaria pela função correcional, mas que funciona, na prática, como a cristalização e estigmatização do incorrigível.
1.3. Quadro de encarceramento do PFF
“Porque cadeia só tem pra pobre, pra rico não tem, se tivesse era castelo!”(Laura, Tráfico de drogas)
As mulheres que fazem parte do quadro de encarceradas do Presídio Feminino por tráfico de drogas geralmente são oriundas de localidades marginalizadas, não que esta seja uma causa do crime, mas, pelo contrário, essas mulheres são presas fáceis da seleção do sistema punitivo. A população marginalizada e excluída do mercado de trabalho, do consumo e da sociedade, tendo no sistema punitivo o funcionamento de uma “instituição total”[13] para fazer com que “as prisões sejam máquinas de exclusão”[14]. Zaffaroni e Pierangeli desenvolvem a idéia de que “o sistema penal seleciona pessoas ou ações, como também criminaliza certas pessoas segundo sua classe social” (2007, p. 69).
Chamou-nos atenção o local de residência das mulheres criminalizadas no PFF, uma vez que, em suas fichas de dados, era comum o local de domicilio ser situado em morros de Florianópolis, como Morro do 25, Morro do Mocotó, Morro da Penitenciária, Morro da Bina, dentre outras localidades em situações de vulnerabilidades, reforçando a idéia da seletividade do sistema penal. Esses espaços costumam ser mais “policiados”, tendo esta uma atuação muito forte quanto à repressão daqueles moradores de favelas ou morros da Capital.
Toda essa busca da repressão aos estranhos[15] pode ser compreendida em virtude da necessidade de disseminar o medo, incidindo a culpa sobre aqueles que causam uma ameaça pelo seu estereótipo ou rótulo prontamente estabelecido, reiterando a necessidade da força punitiva e do poder constituído. Os perseguidos, em sua maioria empobrecidos, distante da sociedade de “bem”, produtora e consumidora, devem estar contidos e circunscritos em espaços subalternos, socialmente demarcados. Vera Malaguti Batista argumenta que,
“O sistema de justiça criminal da sociedade capitalista serve para disciplinar despossuídos, para constrangê-los a aceitar a “moral do trabalho” que lhes é imposta pela posição subalterna na divisão de trabalho e na distribuição da riqueza socialmente produzida. Por isso, o sistema criminal se direciona constantemente às camadas mais frágeis e vulneráveis da população: para mantê-la – o mais dócil possível – nos guetos da marginalidade social ou para contribuir para sua destruição física. Assim fazendo, o sistema sinaliza uma advertência para todos os que estão nos confins da exclusão social.” (BATISTA, 2003a, p. 15)
Podemos afirmar que o presídio acaba se tornando uma extensão da favela[16], uma vez que abarca todos/as aqueles/as estigmatizados e ideologicamente tratados como perigosos. A classe menos favorecida sobrevive de alguma forma, diante dos espaços que as esmagam e as tornam escravas do trabalho servil, passando a viver muitas vezes, do mercado informal, que acaba por criminalizar pessoas não-qualificadas para o mercado formal, como o tráfico de drogas, por exemplo.
Um fator relevante observado na análise dos dados é a constatação da precária escolaridade das mulheres entrevistadas no PFF. Identificamos que 23% não completaram o ensino primário, 27% não completaram o ensino fundamental e 30% não completaram o ensino médio. Ao falar dos fatores socioeconômicos e educacionais, numa perspectiva de criminalização concentrada em determinados indivíduos, Zaccone afirma que
“Os criminosos autuados e presos pela conduta descrita como tráfico de drogas são constituídos por homens e mulheres extremamente pobres, com baixa escolaridade e, na grande maioria dos casos, detidos sem portar nenhuma arma” (ZACCONE, 2007, p.11)
Constatamos através da pesquisa no PFF que, para além das ilicitudes cometidas, as mulheres que ali estavam eram pessoas selecionadas por um sistema punitivo desigual e estigmatizador. Como diria Vera Malaguti Batista, “os consumidores falhos são os novos demônios, isolados em guetos criminalizados e clientes potenciais do poder” (2003b, p.73).
Houve somente dois casos durante as entrevistas que se tratava de mulheres respectivamente criminalizadas por tráfico de drogas, mas que sua condição financeira condizia com a classe média/alta; casos esses, portanto, incomuns. A maioria das entrevistadas relatou outra condição social de vida e quando perguntamos as outras duas sobre como e porque da participação delas no tráfico, responderam que: “eu trafiquei 10 anos, trabalhei fora do país honestamente, tenho uma família estruturada, de educação boa. Acho que foi ‘sem-vergonhice’”[17] e a segunda: “fui presa em Minas, em uma cadeia grande, morei na Alemanha, falo e leio italiano, alemão e aqui convivo com um monte de gente que mal sabe ler e escrever”[18].
Antagônicas as duas exceções descritas acima, as mulheres que se encontram encarceradas no Presídio Feminino de Florianópolis continham em suas fichas de dados[19] extraídos do PFF profissões cujos salários eram extremamente baixos. Vejamos a tabela,
A partir desses dados, podemos inferir que a clientela do sistema prisional feminino de Florianópolis é claríssima, possível de visualizar nos dados levantados, pois são aquelas socialmente controladas, vigiadas e rotuladas, que se encontram fora do mercado de trabalho formal, advindas de localidades marginalizadas, os bodes expiatórios. Muitas das mulheres presas neste período (2006-2007) no PFF, não estavam trabalhando formalmente, ou exercendo a profissão que declararam, por estarem desempregadas. Segundo Malaguti (2003b, p.102) “Estas massas urbanas empobrecidas num quadro de redução de classe operária, de pobreza absoluta, sem um projeto educacional, sem condições sanitárias, sem moradia, são a clientela de um sistema penal através do aumento de presos”.
1.4. O tratamento penal: vítima e criminalizada
Para entendermos toda a estrutura atual em face da criminalização feminina, é indispensável atentarmos que “a mulher detenta é vista como tendo transgredido a ordem em dois níveis: a) a ordem da sociedade; b) a ordem da família, abandonando seu papel de mãe e esposa” (LEMGRUBER, 1983, p.86). Essas mulheres são criminalizadas por sua conduta ilícita e também estigmatizadas pela violação do comportamento socialmente esperado, ou seja, sofrem também um ônus da coação moral social.
A clientela do Sistema Punitivo é historicamente constituída consideravelmente por homens[20]. As Mulheres foram sempre tratadas e visualizadas como vitimas de crimes, e não como autoras de crimes, certamente pelo fato de o sistema penal ter fortes resquícios patriarcais, pois na seleção de autores e condutas tipificadas se dirige a parcela masculina e não fortemente a feminina, justamente em virtude também da imagem construída da mulher vinculado-a sempre “ao papel de esposa, mãe, organizadora do lar, guardiã do mundo privado, cabendo ao homem o espaço público” (ALCOLUMBRE, 2009), e ao lugar projetado a ela (esfera privada).
O resultado disso é que a mulher criminosa passa a ser vista como agente de uma transgressão ainda maior, pois a ação criminosa deveria fazer parte do mundo masculino e a mulher que assume esse papel acaba por se transformar numa espécie de monstro, realizando uma dupla transgressão. Michel Foucault procura entender a figura do monstro em nossa sociedade moderna, definindo-a como sendo essencialmente uma noção jurídica. Desta forma, o monstro seria aquele que combina o impossível com o proibido (FOUCAULT,2002, p. 70).
Ainda, quanto à relação de vitimação da mulher, Andrade acentua que “o estereótipo da mulher passiva (…) na construção social do gênero, divisão que a mantém no espaço privado (doméstico), é o correspondente exato do estereótipo da vítima no sistema penal” (ANDRADE, 2003, p.175). Tal estereótipo pode nascer muitas vezes de uma seletividade sutil, até mesmo pela criminalização secundária[21], onde o olhar selecionador do policial é voltado à figura masculina ideologicamente mais propensa a cometer crimes. Já quanto à mulher, esta não é vista como criminosa, sua imagem social está ligada à imagem da passividade e fragilidade, pela ideologia de ser seu lugar o local privado e por estar resguardada na intimidade, onde o sistema penal não opera intensamente, como opera no âmbito público.
Quando selecionadas pelo Sistema Penal, as mulheres são muitas beneficiadas por este, recebendo certo privilégio por sua condição feminina, como “a exculpante de um estado especial (puerperal, menstrual, hormonal, emocional) e à sua espera os manicômios, antes da prisão” (ANDRADE, 2003).
Definiu-se ao longo da história determinadas atribuições, papéis e lugares, que homens e mulheres têm em uma determinada sociedade. Segundo Margareth Rago (2004, p.32), no século XIX a mulher foi projetada para o âmbito privado (Lar), ao contrário dos homens que tinham seus lugares na esfera pública (trabalho). A ideologia da domesticidade e incapacidade vai se configurando para as mulheres, devendo elas “submeter-se à autoridade masculina em casa e fora dela, (…) sob pena de serem olhadas como anormalidades ou monstruosidades” (RAGO, 2004, p.34).
Aquela mulher que resolveu adentrar na esfera pública/masculinizada foi estigmatizada moralmente no senso comum, passou a ser vista como desonesta ou prostituta, podendo até mesmo ser encarcerada e ainda taxada moralmente como uma figura diabólica, passando a ser inimiga da moral e dos bons costumes. Essa mulher (pública) estava fora dos padrões morais, e essa moral era guiada pela religião, fazendo de um suposto pecado um delito.
Existem crimes destinados mais especificamente às mulheres, tanto no papel de criminosas (abortivas) como de vitimas (estupro[22], violência domestica), no caso do aborto não é comum a criminalização. Para o sistema punitivo a figura feminina não é tão visada, simplesmente por estar associada a esfera preservada, e este recinto privado é ideologicamente dotado de submissão e disciplinamento.
Zaffaroni[23] (2008) argumenta que cada vez que na história é inventado um inimigo, volta-se à forma da inquisição, pois eles (inimigos) têm um enorme poder, portanto têm que ser combatidos. O discurso de combate aos inimigos tem como argumento a salvação da humanidade, assim não se pode ter limites na ação, ou seja, a cada construção de um inimigo muitas pessoas morreram ou foram aprisionadas.
Fazendo uma ponte dos fatos, é possível perceber o quão presente estão as delimitações dos espaços sociais e punitivos para mulher (vitima ou criminalizada) como a verificação da sua colocação nos dois espaços já apresentados – público e privado.
2. A OCULTA FACE DO SISTEMA PENAL
“O mesmo sistema de poder que fabrica a pobreza é o que declara guerra sem quartel aos desesperados que gera” Eduardo Galeano
O tráfico de drogas é visto como uma prática essencialmente masculina, com a preponderância de figuras masculinas, tanto no consumo como no tráfico. Constatamos através das entrevistas, sentenças analisadas e nos dados das presas preenchidos pela administração do PFF que a participação da mulher no tráfico de drogas é de forma secundária e vinculada.
A primeira diz respeito ao papel passivo das mulheres no tráfico de drogas, à não ocupação da mesma posição que o homem, a não ser em situações excepcionais, e a segunda, em virtude da forma de vinculação delas com pessoas que traficam, gerando uma espécie de ciclo vicioso. Pimentel (2008, p.23) entende que “na complexa rede de sociabilidade do tráfico de drogas, as mulheres, que não ocupam os mesmos lugares que os homens, acabam por reproduzir práticas de assujeitamento nas relações de afeto que vivem com os traficantes”
Tal aspecto se mostra também em relação ao flagrante delito, os quais diversas vezes acontecem no próprio Lar ou próximo dele, na mesma rua ou no mesmo bairro. Para ilustrar esta afirmação mencionamos duas partes de sentenças distintas: “MARINA permitiu a entrada dos policias em sua residência, (…), onde foram encontrados além de vários outros objetos de procedência ilícita: 01 (um) pote plástico contendo 14,7g (quatorze gramas e sete decigramas de ‘cocaína)”’[24], ou ainda, “(…) no morro da caixa, Bairro estreito, nesta Comarca, a denunciada C.G.A.P mantinha em depósito em sua residência, para fins de comércio, 2 (dois) pacotes de substancia vulgarmente conhecida como maconha”[25]
O discurso preponderante das criminalizadas sobre a participação no tráfico de drogas girou em torno da figura masculina, ou seja, a sua efetiva participação aconteceu a partir da união com alguém que trafica. Não queremos afirmar que a mulher trafica somente por influencia dos homens, mesmo sendo este um fato que prepondera no discurso das criminalizadas do Presídio Feminino de Florianópolis, porém há, sem dúvida, mulheres que participam do tráfico de drogas independente de se relacionarem com homens[26]. Falas como estas se destacam: “sou primária e co- autora, não fui pega com as drogas. Só estava acompanhando o meu marido”[27] e, ainda, “eu estava envolvida com o namorado e ele era viciado”[28].
Percebemos ainda que as mulheres criminalizadas por tráfico de drogas apresentavam um discurso muito parecido durante as entrevistas. Os motivos eram semelhantes quanto à entrada delas no tráfico de drogas. Na grande maioria das vezes explicavam que se envolveram com o tráfico através da relação de afeto com uma figura masculina, sendo este marido/companheiro, filho, irmão ou primo, fato também vinculado a outros fatores como a necessidade financeira. Conforme relatos: “Estava apaixonada e quando fui ver, estava presa [havia saído de um casamento recentemente]. A cabeça não pensa o corpo que paga”[29], e: “Entrei no tráfico por desespero, pedi empréstimo no banco Itaú e Lozango, não consegui pagar, nem as dividas do comércio, e nem o empréstimo”[30].
Estes são alguns discursos que condizem com a relação afetiva existente antes da prisão, não descartando outras influências discursivas que elas internalizam dentro da prisão. Relações de afeto. Esse foi um fator que preponderou nos discursos das criminalizadas, uma vez que justificam, em alguns casos, a sua prática de traficar, na sua relação afetiva, ou seja, praticavam o ato de traficância por se envolver com alguém que comete o mesmo ato. Tal aspecto pode ser visualizado na fala da criminalizada Mª Odete[31], que diz ter se envolvido com o tráfico de drogas em virtude do envolvimento prévio de seu filho: “Mataram meu filho, e por uma dívida de R$ 200,00 reais, de uma balancinha, o traficante disse que eu tinha que pagar, fui vender umas pedras e aí fui pega, não tinha passagem nem nada”. Tal relato vai ao encontro do entendimento de Bill e Athayde,
“[…] algumas mães que também estão nessa vida e ajudam os filhos no ‘trabalho’ deles. No inicio são contra isso, mais depois, com o tempo, vão se tornando mais vulneráveis, corroídas pela necessidade ou mesmo pela sensação que seus filhos nunca mais vão sair dessa vida, restando-lhe duas alternativas: denunciá-los ou entende-los.” (BILL e ATHAYDE, 2007, p.75 )
Essas mulheres não são, em muitos casos, protagonistas de suas próprias histórias, por estarem atreladas a questões de submissão construídas culturalmente à figura feminina. A resistência dos homens em permitir que as mulheres adentrem no seu âmbito é muito grande, e o mesmo acontece no tráfico, que é um mundo constituído por muitos homens e algumas mulheres, cujos papéis são secundários, com participação restrita e coadjuvante.
A trajetória constante dos relatos expostos pelas criminalizadas centrava-se no fato de que, com a morte ou a prisão de seu companheiro/marido, elas passaram a “ocupar” seu lugar, como consta no relato de uma das criminalizadas: “meu marido foi morto, eu ganho 1 (um) salário mínimo e precisava dar uma condição digna para seus filhos, foi tudo pensando neles [filhos]”[32]. Tal fato mencionado está de acordo com a visão do Policial Civil Irineu[33], o qual percebeu ao longo da sua atuação que:
“A mulher começa a ter vida “boa” por causa do marido traficante, e quando ele vai [preso], ela não quer baixar o nível de vida, porque tem que pagar advogado, sustentar os filhos. Ela tem que continuar com o tráfico, assumindo a posição do marido.”
Ainda nesta visão da mulher envolvida com trafico de drogas e sua “troca de papel”, em razão da ausência da figura precursora, Athayde e Bill (2007, p.75) entendem que “muitas mulheres que estão envolvidas com tráfico nem sempre trabalham para ele; algumas delas são mães cujos filhos estão traficando, tomando conta das bocas ou trabalhando para o tráfico de outras maneiras”, e o que se torna muito comum é a mulher suprindo o papel do marido ou filho no tráfico de drogas, por conta da prisão ou morte deles.
Já no que tange à criminalização familiar em massa, o tráfico de drogas é um caso típico, pois havia casos no Presídio Feminino de Florianópolis de membros da família ocuparem esse mesmo presídio ou mais precisamente a mesma cela, como no caso da Valda[34], que relatou: “Foi presa eu, minha mãe, minha irmã, meu marido, e meu cunhado”. As três encontravam-se presas no presídio, e os dois homens também estavam cumprindo pena noutro estabelecimento. Casos como estes fazem parte do cenário das tramas reais de criminalizações de pessoas do mesmo núcleo familiar, conforme observado nos relatos de uma senhora entrevistada por nós e condenada por tráfico de drogas. Junto a ela no presídio estava presa também sua filha, pelo mesmo crime.
Casos mais comuns também se mostraram presentes no presídio Feminino de Florianópolis, quando se observou a prisão simultânea da mulher e de seu companheiro/marido pelo crime de tráfico de drogas. Conforme relato, “Meu marido está preso em São Pedro de Alcântara. Minha família é de Laguna”. [35]
Para algumas criminalizadas do Presídio Feminino de Florianópolis, o tráfico de drogas ilícitas é uma forma de trabalho mesmo sendo ele informal/ilegal[36]. Também há casos em que trocam outro trabalho (legal e lícito) pelo tráfico, como Taciane[37], que relatou: “Entrei no tráfico porque estava passando necessidade, um serviço de trinta reais não dava para sustentar meu filho, e comecei a vender [drogas]”. Deste modo, MV BILL (2007, p.121) acrescenta que “é normal conhecer mulheres que trabalham no tráfico por causa da falta de dinheiro”.
Dentre outros fatores que as atraem para o tráfico de drogas, destacamos, através dos discursos que nortearam as falas das entrevistadas no PFF, o relacionamento com alguém que trafica e as necessidades financeiras. Samira[38] diz fazer parte do tráfico de drogas por falta de oportunidades, e disse ainda que: “Como lá fora não tem oportunidade, eu vou acabar cometendo crimes novamente para sobreviver”.
Ao contrário do discurso difundido nos meios de comunicação e no senso comum, o tráfico de drogas do ponto de vista dos relatos das criminalizadas, pareceu-nos não ser tão cômodo quanto fazem parecer. Para quem trabalha com isso, dois caminhos se apresentam: a criminalização ou a morte, situação que se transforma em difíceis ganhos fáceis, nos quais a todo o momento se joga com tais “opções”.
2.1. Ritual punitivo: execução penal
A mulher ao ser encarcerada tem iniciado o seu castigo, só o fato de permanecer sem a sua liberdade já caracteriza a retribuição pelo suposto mal causado por ela. Além disso, restam-lhes ainda alguns outros direitos a serem respeitados. Mas o curioso é que elas acabam por serem castigadas diversas vezes, principalmente durante a execução penal.
Ao ingressar no PFF a mulher passa por aquilo que Baratta chama de cerimônia de degradação, onde o “encarcerado é despojado até de seus símbolos exteriores da própria autonomia (vestuários e objetos pessoais)”. É possível verificar tal cerimônia desde o primeiro momento em que as criminalizadas chegam ao Presídio Feminino de Florianópolis.
O ritual punitivo se inicia com famoso e temido “zero”[39] (nomeado “triagem” pela administração), segundo relatos é um local por onde todas passam e ficam quatro dias (rés primárias) e as reincidentes ficam dez dias. Também permanecem no “zero” aquelas que recebem castigos por brigarem entre si, ou ainda, por desacatarem os agentes prisionais. Nesses casos, permanecem sete dias no local e, em todos esses casos, ficam sem receber visitas, além de apenas uma refeição por dia, e com a roupa do corpo que estava no momento da entrada.
O zero o espaço extremamente restrito, um “cubículo” insalubre, com beliches de concreto, uma bica que saia água – local onde tomam banho -, tem ainda um buraco (Boi), para fazer as necessidades, e tem uma janela pequena com grades. Segundo um agente prisional[40], se num dia entram cinco, todas ficam juntas no zero, porém muitas vezes já ficaram de dez a vinte pessoas neste local.
No momento em que entramos no “zero”, durante a pesquisa no Presídio Feminino de Florianópolis, visualizamos que as paredes estavam semi-limpas. Segundo o agente prisional, eles mesmos as fizeram pintar tudo, e falou ainda que: “eu não sei como elas riscam, escreve esse monte de coisas, isso porque elas não têm caneta e nem lápis aqui para escrever”. Como descreve Odete Maria de Oliveira, “a prisioneira não tem nenhuma possibilidade de escolha ou opção. A obediência é cega. Não permite manifestar opinião, externar vontade ou interesse” (2002, p.165). Na parede pudemos ler alguns escritos que ainda estavam visíveis, tinha uma televisão desenhada na parede com dizeres dentro dela que dizia “Assistam agora o espetáculo do horror: Presídio Feminino de Florianópolis”.
Ao ser encarcerada a mulher sofre um ônus muito grande, porque, segregada do convívio social, seus filhos muitas vezes ficam desamparados, visto que em muitos casos narrados pelas próprias entrevistadas, antes da sua própria prisão, vem a do seu companheiro ou simultaneamente. Além da possibilidade de muitas vezes ele (companheiro) nem existir mais, assim, geralmente seus filhos ficam na casa de algum parente até obtenção de sua liberdade. Segundo Odete Mª de Oliveira (2002, p.164)
“A privação de liberdade é o pior sofrimento que se pode impor ao ser humano. Para mulher representa um peso duplo e ainda mais grave que para o homem. Alem do rompimento com seus familiares e companheiro, impõe o afastamento de seus filhos e do recinto privativo de seu lar. É a privação, via de regra, mais difícil de ser superada.” (grifo do autor)
O discurso do Sistema Penal baseia-se na idéia de reeducar a condenada, para reinseri-la no convívio social. Mas a perspectiva de vida de algumas condenadas por tráfico de drogas do PFF se mostrou nula ou quase nula. Jucélia[41] nos relatou que “Ás vezes acho que vou sair daqui e traficar, é só isso o que tem”. Para quem está encarcerada existe a preocupação com o estigma que estará voltado a si quando do retorno ao convívio social. Sem dúvida, a não profissionalização, juntamente com a dor e a violência propagada na execução penal não permitem que a criminalizada se dispa do manto que a estigmatiza e irá rotulá-la por muito tempo, pois além da pena cumprida, permanece com o tempo de reincidência, que são exatamente 5 (cinco) anos, e a rotulação eterna de ser uma ex-presidiária. Deste modo, quando perguntamos sobre a reeducação discursada pelo Direito Penal a criminalizada Elizabeth nos relatou: “Acho que é pouco trabalho, eles deveriam reeducar as presas, eles jogam a gente aqui, não existe reeducação, cursos, trabalho”.
Desta forma, Baratta (1993, p.50) sustenta que “em geral, sabemos que as intervenções penais estigmatizantes (como a prisão) produzem efeitos contrários à denominada ressocialização do condenado”. Este entendimento interliga com os relatos e situações peculiares do Presídio Feminino de Florianópolis, explicitadas até então.
Ainda sobre a reeducação algumas criminalizadas sustentaram que, “Para algumas pessoas sim [reeduca], para outras não, porque sai daqui bem revoltadas, eu acho que por um lado sim e outro não, enquanto eu to aqui teve meninas que já passaram por aqui 4 ou 5 vezes”[42]. Deste modo, boa parte das criminalizadas entrevistadas disse que pretendem nunca mais voltar para o presídio. Insistimos que este pensamento e desejo estão vinculados ao sofrimento e a dor, em virtude tanto de aspectos subjetivos (falta dos entes, liberdade, solidão) quanto de objetivos (dificuldades encontradas na execução penal). Segundo Alessandro Baratta,
“Os institutos de detenção produzem efeitos contrários à reeducação e á reinserção do condenado, e favoráveis á sua estável inserção na população criminosa. O cárcere é contrário a todo modelo ideal educativo. (…). A educação promove o sentimento de liberdade e de espontaneidade do indivíduo: a vida no cárcere, como universo disciplinar, tem um caráter repressivo e uniformizante”. (BARATTA, 2002, p.183-184)
Algumas mulheres que se encontram encarceradas no Presídio Feminino de Florianópolis traçam planos para o momento em que obtiverem a liberdade. Não descartaram, porém, os empecilhos que serão encontrados no momento da liberdade. A criminalizada Vânia nos conta que “Sei que vai ter preconceito quando eu procurar um emprego, porque quando tu ta aqui que vai parar pra pensar, que vai ficar com isso aqui sempre”. Nesse relato fica visível a preocupação com o estigma permanente de quem passa pela prisão, inclusive, a difícil aceitação de uma ex-presidiária num cargo de emprego, além da proposta e desejo de recuperar o tempo que considera “perdido” dentro da prisão.
Contudo, o sistema penal acaba por não cumprir com suas funções declaradas, passando a cumprir outras funções (não-declaradas), ou seja, ocorre a eficácia invertida uma vez que o sistema penal não é capaz de cumprir com suas promessas. Segundo Vera Andrade o Sistema Penal:
“É, portanto, estruturalmente incapaz de cumprir as funções que legitimam sua existência, a saber, proteger os bens jurídicos, combater e prevenir a criminalidade, através das funções da pena (intimidando potenciais criminosos, castigando e ressocializando os condenados, fornecendo segurança jurídica aos acusados e segurança pública à sociedade. E não pode porque sua função real é construir seletivamente a criminalidade e a função real da prisão (violência institucional) é “fabricar os criminosos”. (2008, p. 8)
Algumas mulheres criminalizadas reforçaram a idéia de que a prisão pode piorar a situação da pessoa, oportunizando-as ao aprendizado de diferentes atos criminais, como afirma uma criminalizada por tráfico de drogas no PFF: “o sistema não reeduca, pelo contrário, aqui dentro tu aprende muito mais do crime”[43] .
Assim, a pena passa a ter um caráter contrário à ideologia da ressocialização, revelando a sua verdadeira face seletiva, pois verificamos que as funções declaradas não se efetivam, ou se efetivavam por vias negativas[44]. Ana, condenada por tráfico de drogas, cumprindo pena no PFF relata que: “agora que passei por todo sofrimento, sei lá, acabou com a minha família, se eu ficar aqui muito tempo, os meus seis filhos vão pegar a minha coroa, são tudo adolescentes, me reeduquei sofrendo na pele”. Deste modo, Baratta expõe que:
“O sistema de justiça punitivo se apresenta como uma forma institucional e ritual de vingança. Tal como a vingança ele intervém com a pena, em forma de violências para compensar simbolicamente um ato de violência”. ( 1993, p.50).
A massa de encarceradas por tráfico de drogas experimenta o caos da execução penal, pois algumas condenadas já haviam cumprido o tempo para liberdade. Porém, a falta de defensor, ajudava a permanecerem presas, uma vez que não havia quem fizesse o pedido formal para o judiciário. A extensa maioria dos pedidos judiciais era feita pela própria Administração do Presídio Feminino, uma vez que tinham que lidar com a super lotação.
Diante desses fatos, a criminalização por tráfico de drogas parece crescer cada vez mais, de forma massiva, contribuindo para o funcionamento da esfera punitiva, que legitima o braço repressor da execução penal. Parece-nos que o interesse de repensar os espaços e suas respectivas situações degradantes do sistema punitivo, em virtude do papel que ele vem cumprindo até agora, está longe de acontecer. Então, como nos disse uma mulher que cumpre pena por tráfico de drogas no PFF: “Estou aqui à espera de um milagre”.
3. CONCLUSÃO
Neste trabalho falamos sobre as mulheres condenadas por tráfico de drogas, que cumpriram pena no Presídio Feminino de Florianópolis (período de 2006 a 2008). O nosso intuito maior foi retratar um pouco da realidade dessas mulheres, compreendendo como são vistas pelo olhar “de fora” e como elas próprias se observam dentro do ambiente prisional. Claro está que essas mulheres ressaltam de forma muito comum os motivos que as levam a traficar, quais sejam, principalmente, a relação afetiva com alguém que já traficava ou/e em virtude de necessidades financeiras.
Percebemos, através da nossa pesquisa que essas mulheres mostraram ter um vinculo muito forte com o âmbito familiar, a preocupação com os seus próximos e como serão vistas dali para frente, o estigma que irão carregar será ficará marcado para toda a vida.
Dentre as questões abordadas ao longo deste artigo, verificamos o olhar delas sobre o sistema prisional, bem como as oscilações e antagonismos entre as falas referentes à reeducação, constituindo-se como um verdadeiro discurso legitimador do sistema penal, mas que, entretanto, resume-se numa falácia que visa escamotear as reais funções do sistema penal. As presas estão à própria sorte, e quando a reeducação mostra, nas suas raras vezes, “eficácia” – quando elas dão um sentido positivo a esta proposta e a prática -, essa se demonstra meramente conquistada pela dor e sofrimento que causam nessas mulheres e que estão no âmago da execução penal.
Embora tenhamos percebido que os relatos e motivos da entrada da mulher no tráfico de drogas eram muito parecidos e apontam para um denominador comum, cada mulher que entrevistamos é singular, com sua própria história, seus próprios anseios e desejos e que, por fim, precisam de olhares que possam atravessar os muros que as mantêm distantes e invisíveis, para compreende-las e tomar conhecimento do que se esconde atrás de um nome qualquer.
Procuramos encarar a o processo de execução penal no PFF não como uma parte do fim de muitas histórias contadas e vividas por aquelas mulheres, mas, e sobretudo, como o início para se propor a questionar o modo como vem se desenvolvendo os novos filtros seletivos do sistema punitivo atual globalizado e eficientista. Sim, entendemos que, de certa forma, a mulher está sutilmente sendo empurrada a adentrar ao mundo subterrâneo do sistema punitivo brasileiro e que a forma que o tratamento penal é dispensado a elas tem suas peculiaridades e estas precisam ser consideradas no momento da análise.
Como a ponta de um iciberg, o Presídio Feminino de Florianópolis representa o resultante de um processo em curso e que não está sendo devidamente observado, seja pela sociedade em que está inserto, seja pelos responsáveis pelo tratamento penal e pela construção teórica sobre o tema. Se é difícil admitir que uma das conseqüências da emancipação feminina e da tomada do espaço público, relegado historicamente à figura masculina, é uma nova forma de criminalização que causa estranhamento e desconforto, precisamos, em contrapartida, abrir nosso olhares (e aqui temos a consciência de que o enfoque jurídico é insuficiente) para perceber, constatar e questionar tal processo.
O ambiente do PFF, à despeito de todas as dificuldades lá encontradas, consegue demonstrar muito bem as suas reais funções. De fato, as mulheres criminalizadas são, em regra, mulheres excluídas do mercado de trabalho e que, contestando toda uma ideologia proibicionista e genocida, admitem viverem do e com o tráfico como um meio de sustentação e de trabalho. Dentro de uma lógica perversa de vida e de morte, parece que o que não é proibido para elas são as aceitações resignadas de um modo de subvida oferecido pelas atuais condições sociais e econômicas. Com isso, compreende-se as práticas dos maridos, namorados, irmãos e filhos, mas sempre a partir de uma ética do cuidado que, surpreendentemente, dá um tom diferente – menos violento – à própria atividade proibida.
É graduada em Direito pelo CESUSC. Atua nas áreas de direito penal, criminologia crítica, direitos humanos, intolerância e preconceito. É membro e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Preconceito e Intolerância – NEPI/CESUSC e do projeto de Extensão Universidade Sem Muros (UFSC/CNPq)
Graduada em Direito pelo CESUSC; é especialista em DH pela universidade Pablo de Olavide na Espanha e pós-graduada em Ciências Criminais pelo CESUSC; é professora de Direito Constitucional e de Filosofia do colégio Cruz e Sousa
Graduado em Direito pelo CESUSC (2009), atua nas áreas de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia Crítica, Direitos Humanos e Sociologia Jurídica. É membro e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Preconceito e Intolerância – NEPI/CESUSC e do projeto de Extensão Universidade Sem Muros da Universidade (UFSC/CNPq)
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