Resumo: O tema foi escolhido por três razões principais. A primeira delas é a atual carência de intercmbio acadêmico entre as áreas de Direito Economia e Sociologia no Brasil. Como o tema desenvolvimento é muito caro a ambas as áreas iniciar a pesquisa interdisciplinar por ele parece ser uma boa estratégia de aproximação entre Direito Sociologia e Economia.
A Constituição Federal e o Estatuto da Cidade propõem é uma mudança de interpretação, substituindo o princípio individualista do Direito Civil brasileiro, pelo reconhecimento da função da propriedade em razão das necessidades da sociedade como um todo.
De fato, a função ou vinculação social determina que o proprietário dê uma utilização socialmente justa ao objeto do direito de propriedade em que o interesse geral deve ter precedência sobre o interesse individual.
É um princípio constitucional ordenador da propriedade privada que vincula diretamente o legislador, de forma que ele é obrigado a estabelecer, na fixação do conteúdo e limites da propriedade, um regime socialmente justo de contribuição para o bem-estar geral da sociedade.
Instrumentos previstos no Estatuto da Cidade como do parcelamento ou edificação compulsória, o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo, a desapropriação para fins de reforma urbana, o direito de preempção, são exemplos da aplicação deste princípio, se constituindo em avanço legislativo notável no sentido da efetivação progressiva da destinação social da terra urbana.
A tendência da administração pública em sobrepor os seus atos ao consentimento do cidadão vem sendo substituídas por novos modelos de gestão em que o papel do cidadão passa de mero espectador para colaborador ativo, co-gestor, prestador e fiscalizador.
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, tem havido no país uma tendência a proliferação dos sistemas de gestão democrática, mediante a criação de conselhos, comissões, comitês.
A Constituição estabeleceu expressamente sistemas de gestão democráticos em vários campos da administração pública, o que inclui o planejamento participativo, mediante a cooperação das associações representativas no planejamento municipal, como preceito a ser observado pelos municípios (artigo 29, XII da Constituição Federal).
O Estatuto da Cidade fixa esta diretriz no seu 2° , II, indicando a participação da população e de associações representativas da comunidade, na formulação e execução de planos, programas e projetos urbanísticos:
“Artigo 2°
II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;”
Assume-se como princípio básico da política urbana o imperativo de se discutir as questões das cidades com os vários setores da sociedade. A efetivação deste direito, agora respaldado pelo texto da lei, serve de instrumento para a gestão e fiscalização conjunta das ações dos governos.
Duas das formas de gestão democrática previstas no Estatuto da Cidade merecem destaque:
A primeira é a previsão de criação dos conselhos municipais, estaduais e nacional de desenvolvimento urbano. Segundo ampla doutrina, uma das melhores formas de organização administrativa adotada para possibilitar a participação dos cidadãos na gestão das políticas públicas é a do Conselho, que se configura como órgão administrativo colegiado, de caráter deliberativo e/ou consultivo, com representantes da sociedade e do poder público.
Neste sentido, o inciso I do 43 do Estatuto da Cidade prevê que os órgãos colegiados de política urbana, nacional, estadual e municipal, devem ser utilizados para garantir a gestão democrática da cidade.
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano criado pela Medida Provisória 2.202, de 4 de setembro de 2001, nos termos do 10 é definido como órgão deliberativo e consultivo, integrante da estrutura da Presidência da República, responsável pelas diretrizes gerais do desenvolvimento urbano e pela organização da Conferência Nacional das Cidades.
Outra forma prevista é o sistema das audiências e consultas públicas. As audiências e consultas públicas, também na forma do 43, II, do Estatuto da Cidade, devem ser promovidos pelo Poder Público para garantir a gestão democrática da cidade e tem como fundamento os princípios da publicidade e da participação.
As audiências podem ser solicitados pelos cidadãos e associações representativas. Moreira Neto (1992: 129), define audiência pública como "um instituto de participação administrativa aberta a indivíduos e a grupos sociais determinados, visando a legitimidade da ação administrativa, formalmente disciplinada em lei, pela qual se exerce o direito de expor tendências, preferências e opções que podem conduzir o Poder Público a uma decisão de maior aceitação consensual".
Assim, a redação do inciso II, do 2° , insere a participação popular como diretriz dentro de um sistema de gestão democrática proposto.
Destarte, os conceitos jurídicos e políticos de gestão democrática e de participação popular são distintos, embora complementares.
O princípio democrático da Constituição brasileira está inserido no 1° , parágrafo único, e acolhe os postulados da democracia representativa e participativa. Em que pese o sistema representativo ser o elemento nuclear do conceito de democracia – expressão do princípio da maioria – a Constituição Federal do Brasil, através de seu 1º ( "todo o poder emana do povo, que exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição"), acabou por estabelecer a compatibilidade entre democracia representativa e democracia participativa, de forma que estas não se excluem ou concorrem, mas se complementam.
A democracia participativa tem como premissa o interesse básico dos indivíduos na autodeterminação política e concebe a formação de vontade política de baixo para cima, num processo de estrutura com a participação de todos os cidadãos.
O princípio político da participação, que inclui as modalidades legislativas e judiciais, está diretamente referido à legitimidade das instituições democráticas, de modo que a participação nas decisões administrativas tende a aproximar o administrado de todas as discussões e decisões em que seus interesses estejam diretamente envolvidos.
Assim, temos entre as diretrizes gerais, a gestão democrática, e especialmente, a participação popular, como fundamento jurídico normativo que deve ser considerado pelo legislador e observado pelo administrador.
O Estatuto da Cidade contempla a expressão "participação popular" em vários momentos: No 2° , nos seguintes incisos: "II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas…" ; "XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada…".
No 4° , inciso III, nos intrumentos da política urbana, quando trata do planejamento municipal, "f) gestão orçamentária participativa", em relação aos institutos jurídicos e políticos, "s) "referendo popular e plebiscito". No parágrafo 3° , propõe que os recursos devem ser objeto de controle social, garantida a participação da população no controle orçamentário.
Tratando especificamente dos instrumentos da política urbana, entendemos incluir-se o Estudo de Impacto de Vizinhança – EIV, como instrumento de participação, uma vez que deverá ser dado publicidade de seu teor e questionado pela população residente, podendo obstar a instalação de equipamentos que causem impacto negativo.
Também em relação ao Plano Diretor, no processo de sua elaboração e na fiscalização da sua implementação, o texto a lei prevê a promoção obrigatória de audiências públicas e debates, a publicidade e o acesso aos interessados (artigo 40, § 4°).
O ponto mais importante a referir em relação ao princípio da participação é em relação a gestão orçamentária participativa, como integrante do planejamento e gestão das cidades.
O 44 do Estatuto dispõe que a gestão orçamentária participativa incluirá obrigatoriamente a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e o orçamento anual, ou seja, em todo processo de discussão orçamentária, como condição obrigatória para a sua aprovação pela Câmara Municipal.
Verifica-se, assim, que estas disposições configuram-se em avanços legislativos para a efetivação do princípio da participação popular.
Entre os instrumentos constantes na lei, vários dispositivos guardam relação com a efetivação das políticas de colaboração e indução ao desenvolvimento urbano, e todos já referidos nos anteprojetos anteriores para a Lei de Desenvolvimento Urbano.
São os relativos ao parcelamento, edificação ou utilização compulsórios (arts. 5° e 6°); o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo (artigo 7° ); a desapropriação para fins de reforma urbana (artigo 8), o consórcio imobiliário (artigo 46); as operações urbanas consorciadas (arts. 32 a 34) e o direito de preempção (artigo 35), que trataremos resumidamente a seguir.
O instrumento da outorga onerosa do direito de construir, merecerá uma análise um pouco mais acurada:
O parcelamento ou edificação compulsória são instrumentos a serem utilizados pelo Poder Público municipal, como forma de obrigar os proprietários de imóveis urbanos a utilizar socialmente estes imóveis, de acordo com o disciplinado obrigatoriamente no Plano Diretor do Município.
Pode ser através do parcelamento de uma área urbana não utilizada ou subutilizada ou a edificação de uma área urbana não edificada.
Por meio do parcelamento ou edificação compulsória o Poder Público municipal condiciona o proprietário a assegurar o uso social da propriedade a um comportamento positivo, de utilizar, construir.
Conforme o parágrafo 4°do Estatuto da Cidade, os prazos para o cumprimento da obrigação pelo proprietário são de um ano à partir da notificação para protocolar o projeto no órgão municipal competente e dois anos à partir da aprovação do projeto para iniciar as obras do empreendimento.
Para os empreendimentos de grande porte, é possível, em caráter especial, que a lei municipal possa prever a conclusão das obras em etapas.
Organizado juridicamente o Estado, com a elaboração de sua Constituição, o Poder Tributário, como o poder político em geral, fica delimitado, e, em se tratando de onfederações ou federações, dividido entre os diversos níveis de governo.
A nosso ver, também, o elenco de diretrizes gerais que devem ser seguidos na confecção do Plano Diretor, não obstante abordarem pontos relevantes, poderiam ter dado, como um plus, uma maior ênfase no aspecto ambiental.
De qualquer forma, com a participação da sociedade civil organizada e do Poder Público Federal, Estadual e Municipal de modo coordenado, temos a possibilidade de elaborar e fazer cumprir em nossas cidades Planos Diretores que realmente sirvam para modificar, dentro de uma política econômica adequada, o atual modelo excludente que grassa na maioria das aglomerações urbanas brasileiras.
O caput do 28 do Estatuto da Cidade ficou então com a seguinte redação:
Artigo 28 O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.
No 31 está disposto que os recursos da adoção do instituto serão aplicados em finalidades específicas, quais sejam, de regularização fundiária, projetos habitacionais, reserva fundiária, equipamentos urbanos, espaços públicos de lazer e áreas verdes, etc.., ou seja, fica definido, a exemplo do direito de preempção que estes recursos serão aplicados em projetos específicos de reassentamento e regularização fundiária, garantindo que estes recursos não sejam desviados para outras áreas.
Para SILVA (1997: 236) o solo criado nada mais seria do que "uma simples restrição ao direito de construir, tal como as que existem hoje nas leis de uso e ocupação do solo." Desta forma, o instrumento trata de mera autorização do poder público, dentro de determinados limites, para construção em índices acima do anteriormente permitido. A discussão em relação aos efeitos do instituto é em razão dos limites e da liberalidade que o texto como se apresenta pode sugerir, uma vez que remete ao plano diretor a fixação dos coeficientes de aproveitamento.
A ressalva do parágrafo 3° , considerando como limite a proporcionalidade entre a infra-estrutura e o aumento da densidade esperada, não se constitui em garantia suficiente contra a especulação imobiliária e o aumento desenfreado do potencial construtivo, uma vez que interesses empresariais e das administrações municipais em aumentar seus recursos para programas, podem provocar um crescimento indesejável das cidades.
O Estatuto da Cidade separa o instituto da outorga onerosa (arts. 28 a 31) da transferência do direito de construir (artigo 35).
Por meio deste instrumento o município pode subordinar o exercício individual do direito de construir a uma necessidade social ou ambiental através do exercício deste direito em outro local. Por exemplo, nos casos dos imóveis considerados de interesse ambiental, histórico, cultural ou destinado a implantação de programas sociais.
O Estatuto possibilitou o Usucapião Urbano coletivo de área acima de 250 m2, ocupadas em regime de composse, pela população de baixa renda para moradia, durante prazo ininterrupto de cinco anos e sem oposição. Somente as áreas urbanas particulares, maiores de 250 m2, ocupadas por populações de baixa renda e com posse comum ou coletiva, característica das favelas, são passíveis de serem adquiridas pelo instrumento. (12) O reconhecimento se dá por sentença declaratória do juiz.
A sentença final valerá como título para o registro de imóveis. (Medida provisória 2.220/2001) Para o juiz proferir a sentença é necessário delimitar a fração ideal de terreno para cada possuidor.
A Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia (Regulamentado pela Medida Provisória 2.220, de 04 de setembro de 2001) é o reconhecimento do poder público do direito subjetivo do ocupante de áreas públicas de obter a declaração de domínio útil sobre o imóvel que ocupa. Os s que regulamentavam o instituto no Estatuto foram vetados pela presidência da república, justificado pelo temor da aquisição indiscriminada de áreas públicas. A sua regulamentação veio com a Medida Provisória 2.220, publicada em 05 de setembro de 2001, que garantiu o direito a concessão de uso especial, de forma individual ou coletiva de áreas públicas urbanas.
É reconhecido para as pessoas que até 30 de junho de 2001, possuírem com seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, imóvel público de até 250 m2 em área urbana, e estiverem usando exclusivamente para moradia e não serem proprietários de outro imóvel. Para a concessão se enquadram os mesmos requisitos do usucapião coletivo, devendo entre outros, ser caracterizada a composse. Assim, quando não for possível individualizar os lotes a concessão deve ser coletiva.
O 4° da Medida Provisória prevê que se a ocupação oferecer risco, a exemplo das áreas de risco, o poder público deve assegurar ao possuidor o exercício do direito em outro local, como também nos casos do uso comum, projetos de urbanização, preservação ambiental, etc.
A Concessão do Direito Real de Uso (CDRU) é um instituto anterior à publicação do Estatuto da Cidade, instituída através do Decreto-lei 271/67. Pode ser definida como um direito real, resolúvel, aplicável a terrenos públicos e particulares, de caráter gratuito ou oneroso, para fins de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra ou outra utilização de interesse social.
Pode ser constituído através de instrumento público ou particular ou através de termo administrativo, inscrito em livro especial e necessidade de registro. A concretização está condicionada a autorização legislativa, avaliação prévia e licitação, na modalidade de concorrência.
O Estatuto da Cidade admite a modalidade da CDRU coletivo nos casos de programas e projetos habitacionais de interesse social desenvolvidos pela administração pública. Poderá ser outorgada para uma associação comunitária ou uma cooperativa habitacional. Nestes casos, os contratos terão caráter de escritura pública.
Finalmente, as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) são áreas de interesse social classificadas em razão das características de uso e ocupação da área urbana: A primeira diz respeito a terrenos públicos ou particulares ocupados por favelas, população de baixa renda ou assentamentos. A segunda diz respeito a loteamentos irregulares que tem, por sua característica, interesse público em se promover a regularização ou recuperação ambiental. A terceira espécie diz respeito aos terrenos não edificados, subutilizados ou não-utilizados, necessários a aplicação de programas habitacionais.
As disposições presentes no Estatuto da Cidade afirmam a possibilidade real de efetivação dos princípios da democracia participativa, da gestão democrática e da função social da propriedade urbana.
Em relação ao princípio da função social da propriedade, o estatuto busca assegurar o direito a propriedade imobiliária urbana, desde que cumprida a sua função social, como reserva legal prevista constitucionalmente. Propõe, assim, uma mudança de interpretação, reconhecendo a função da propriedade em razão das necessidades da sociedade como um todo.
Informações Sobre o Autor
Lara Cíntia de Oliveira Santos
Analista Judiciário do STJ. Graduada em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília 1996e em Jornalismo pela Universidade de Brasília 1998. Mestre e Doutora em Direito Eclesiástico 2008. Mestranda em Direito Constitucional pelo IDP – Brasília/DF.