Estudo sobre o sócio remisso nos diversos tipos societários à luz das diferenças das sociedades de pessoas e de capitais

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Resumo: Este artigo consiste em um estudo analítico a respeito das regras do Código Civil e da Lei nº. 6.404/76 para o sócio remisso. Expõe os princípios e fundamentos da disciplina para os principais tipos societários hoje existentes e suas peculiaridades. Discorre sobre as dificuldades da disciplina da Lei nº. 6.404/76 para as companhias fechadas e especialmente para aquelas que se caracterizam como sociedade de pessoas e defende a necessidade de certas adaptações em favor dessas, inclusive com a aplicabilidade de institutos das sociedades limitadas.

Palavras-chaves: Sociedades. Sócio. Remisso. Ações. Capital.

Abstract: This paper consists in an analytical study about the legal discipline to share forfeiture under the Civil Code and the Law nº. 6.404/76. It exposes the principles and bases of the discipline according to the main currently existent sorts of corporations and its peculiarities. It explains the difficulties of the discipline under Law nº. 6.404/76 to closed capital corporations especially those that may be considered as partnerships and it defends the need for some adaptations in favor of them, including the applicability of the private limited company rules.

Key-words: Corporations. Shareholder. Forfeiture. Stocks. Capital.

Sumário: Introdução. 1. Premissas fundamentais. 1.1. Sociedade como contrato plurilateral. 1.2. Distinção entre sociedades de pessoas e de capitais. 1.3. Aquisição do status socii. 1.4. Dever essencial do sócio de contribuir para a formação do capital social. 2. O sócio remisso na sociedade simples (disciplina geral das sociedades do Código Civil). 2.1. Considerações gerais sobre as sociedades simples. 2.2. O tratamento do sócio remisso na sociedade simples. 3. Peculiaridades em relação à sociedade limitada. 3.1. Sociedade limitada como tipo societário híbrido (pessoas e capitais). 3.2. O sócio remisso na sociedade limitada. Regras específicas. 4. O acionista remisso na Lei nº. 6.404/76. 4.1. Breve introdução sobre as sociedades anônimas. 4.2. As alternativas da companhia. 4.3. Peculiaridades para as sociedades anônimas de pessoas. Conclusão. Referências.

Introdução.

As sociedades empresariais constituem um dos principais instrumentos jurídicos para a organização do exercício de atividades econômicas por grupos de pessoas.

Na disciplina jurídica dessa estrutura organizacional sempre pressupõe o Direito a congregação de duas ou mais pessoas em torno de um fim comum e a formação de um fundo coletivo por meio da contribuição patrimonial que lhe fazem os sócios.

É certo, porém, que essa contribuição patrimonial inicial pode se diferida no tempo, de maneira que a formação desse fundo coletivo também enfrenta o risco de inadimplência caso o sócio não satisfaça a obrigação com a qual havia se comprometido.

O sócio que descumpre esse dever jurídico fundamental é considerado pela Lei como remisso e fica sujeito a medidas que oscilam entre a cobrança da própria prestação, a venda de suas participações sociais a terceiros, a sua exclusão (com ou sem redução do capital social) da sociedade, a redução de sua participação ao montante integralizado (com ou sem redução do capital social) e o decaimento e comisso de ações.

Neste artigo, propomo-nos a estudar os instrumentos jurídicos que a Lei disponibiliza aos diferentes tipos societários para lidar com o fenômeno social do sócio e do acionista remisso identificando as características das alternativas à luz da clássica distinção das sociedades pela sua estrutura econômica em sociedades de pessoas e de capitais.

Iniciaremos por estudar a sociedade como contrato plurilateral, sua classificação como sociedade de pessoas e de capitais, identificaremos o dever fundamental do sócio de contribuir para a formação do capital social e o risco que o inadimplemento dessa obrigação basilar provoca sobre a viabilidade do empreendimento.

Discorreremos sobre o tratamento legislativo reservado ao sócio remisso em cada tipo societário, identificando as razões da disciplina positivada, suas características fundamentais e as principais discussões existentes sobre cada ponto.

Dentro da disciplina das sociedades anônimas, além de expor as regras e as discussões envolvidas, também procuraremos demonstrar a necessidade de adaptações diante da existência das companhias fechadas de capitais e de pessoas.

Finalmente, em relação às companhias fechadas que assumem caráter intuitu personae, traremos as justificativas para a aplicação a elas de uma disciplina diferenciada ora com base na própria Lei nº. 6.404/76, ora com base no regime geral do Código Civil de 2002, diante de sua similaridade com as sociedades limitadas.

1. Premissas fundamentais.

1.1. Sociedade como contrato plurilateral.

A despeito das discussões doutrinárias existentes sobre o tema, máxime em vista das sociedades anônimas, é certo que a legislação societária em vigor atribui à sociedade empresária natureza jurídica contratual indistintamente (CC, art. 981).

Pelo contrato de sociedade, em regra, duas ou mais pessoas assumem o compromisso de contribuir, com bens ou serviços, para o exercício conjunto de uma atividade econômica, partilhando entre si os resultados (lucros ou até prejuízo) dela advindos.

Sobre outro enfoque, vê-se que o contrato de sociedade possui caráter associativo, pois tem a finalidade de reunir certa coletividade de pessoas para angariar os recursos necessários para a realização de um empreendimento de ordem econômica a ser desenvolvido por meio das atividades promovidas por um ente ideal distinto.

Desta noção deflui a característica essencial do contrato de sociedade, que é sua classificação como contrato plurilateral, conforme o escólio de Tullio Ascarelli.

Expõe o renomado jurista que o contrato plurilateral, do qual a sociedade seria o principal exemplo, é aquele que se caracteriza por admitir mais de duas partes, entendendo-se partes como polos da relação jurídica.

Ele explica que, nos contratos bilaterais, independentemente do número real de contratantes, sempre há apenas duas partes contrapostas, que serão reciprocamente credores e devedores da prestação e da contraprestação a que cada qual se obrigou.

Já no contrato plurilateral, cada contratante constitui uma parte distinta, isto é, um novo polo da relação jurídica contratual, sendo titulares de direitos e de obrigações não entre si, mas para com o conjunto, isto é, para com o ente associativo que se formou.

Nas palavras do renomado mestre, “cada parte, pois, tem obrigações, não para com ‘uma’, mas para com ‘todas’ as outras; adquire direitos, não pra com ‘uma’ outra, mas para com ‘todas’ as outras” (1945, p. 287).

Não há sinalagma entre as prestações devidas por cada uma das partes de um contrato plurilateral, vinculando-se elas uma às outras em razão do fim comum que se consubstancia no animus de desenvolver conjuntamente uma atividade econômica e dela obter lucro, conforme de há muito identificara Inglês de Souza (1910, p. 69):

“O commercio, quando exercido por pessoas collectivas, dá lugar às sociedades commerciaes.

Esta é a reunião de dous ou mais individuos para um determinado fim de especulação mercantil. Nella, a reunião de dous ou mais individuos, a combinação de esforços não basta, é indispensável a existência de um intuitus societatis, do qual resulte um fim de interesse comum.

Não havendo tal intuito de interesse comum, muito embora haja combinação de esforços, deixa de existir sociedade comercial. Os guarda-livros, feitores, caixeiros, reunem-se ao comerciante e, de combinação, praticam actos de commercio; mas não ha sociedade entre eles, porque não visam um interesse commum, não têm o mesmo intuito de especular.

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É elemento essencial de toda sociedade mercantil, que todos os socios lucrem ou percam na proporção estabelecida: uma sociedade em que um só individuo lucrasse, seria uma sociedade leonina, em que ele faria o papel do leão da fabula. O Codigo Commercial prohibe-a no art. 288.

Podemos, pois, definir a sociedade commercial como a reunião de duas ou mais pessoas para a pratica de actos de commercio, com um intuito commum de lucro.”

Portanto, a partir da subscrição ou da aquisição de quotas ou de ações de capital social de uma sociedade, é entre a sociedade e os sócios que se estabelece o sinalagma contratual e não entre eles próprios, que não são nem credores nem devedores entre si, mas sim para com a sociedade, ligados pelo fim comum que os une.

Para fins deste estudo, firmados na premissa de que a sociedade é um contrato plurilateral, podemos definir que será a sociedade quem será a titular do direito de exigir dos sócios a contribuição a que se comprometeram e a tomar as medidas administrativas ou judiciais contra eles na hipótese de não cumprimento.

1.2. Distinção entre sociedades de pessoas e de capitais.

A doutrina costuma classificar as sociedades simples e empresárias com base em diversos critérios.

Entre as diversas classificações erigidas pela doutrina podem ser citadas as que dividem as sociedades em regulares e irregulares, em contratuais e institucionais, de responsabilidade limitada, ilimitada ou mista, e em sociedades de pessoais e de capitais. Para efeitos deste estudo, importa concentrarmo-nos nessa última classificação.

Aline França Campos (2015, p. 185-217), ao elaborar um retrospecto do entendimento da doutrina a respeito da definição de sociedades de pessoas e de capitais, lembra-nos escólio de João Eunápio Borges e Waldemar Ferreira, para quem esta distinção tinha fundamento a responsabilidade dos sócios pelas dívidas da sociedade[1].

Assim, para esses dois grandes comercialistas de outrora, deveria ser entendida como sociedade de pessoas aquela que tivesse responsabilidade ilimitada dos sócios pelas dívidas sociais e de capital aquela na qual ela fosse limitada.

Hoje em dia, porém, a doutrina comercialista parece ter convergido para o entendimento de que o melhor critério de distinção entre as sociedades de pessoas e as de capitais reside na relevância dos atributos pessoais dos sócios para a constituição da sociedade, para a sua vida, e para a manutenção do vínculo entre seus sócios.

A distinção tem por fundamento não a responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais, mas sim a forma de estruturação econômica da sociedade, do elemento nuclear que vincula os sócios entre si para exploração em conjunto do projeto econômico comum.

Portanto, se a sociedade é economicamente estruturada levando-se em consideração fundamentalmente os atributos pessoais dos sócios e não a sua efetiva contribuição ao capital – embora seja ela indispensável para a aquisição do status socii – ela será considerada sociedade de pessoas, ao passo que, se o fator preponderante for o investimento realizado pelo sócio para a exploração do empreendimento comum, teremos uma sociedade de capitais, como ensina Sérgio Campinho (2003, p. 48):

“As sociedades podem também estar classificadas tendo em consideração a pessoa dos sócios. Dependendo da sua estruturação econômica, na qual se irá verificar a influência maior ou menor da condição pessoal do sócio, podem as sociedades ser divididas em sociedades de pessoa e sociedades de capital. Nas primeiras, a figura do sócio é o elemento fundamental da formação societária. A sociedade se constitui tendo por referência a qualidade pessoal do sócio. Fica ela, nesse contexto, subordinada à figura do sócio (conhecimento e confiança recíproca, capacitação para o negócio, etc.). Nas segundas, o ponto de gravidade da sociedade não reside na qualificação subjetiva do sócio, mas sim na sua capacidade de investimento. A importância está na contribuição do sócio para a formação do capital social, sendo relegado a um plano secundário a sua qualidade pessoal. Para tais sociedades é desinfluente quem é o titular da condição de sócio, mas sim a contribuição material que ele é capaz de verter ara os fundos sociais”.

Nas sociedades de pessoas, portanto, o consentimento dos sócios para a formação da sociedade e sua intenção de nela permanecerem leva em conta não apenas as perspectivas de rentabilidade e o sucesso que se pode alcançar com o exercício conjunto – mediante contribuição de capital dos demais sócios – da atividade econômica em sociedade, mas também de fatores pessoais de cada um como a confiança recíproca entre os sócios, sua capacitação pessoal para o negócio, o seu entendimento sobre o mercado ou a sua capacidade de agregar clientes, por exemplo.

Entre esses fatores relevantes, Marlon Tomazette acrescenta ainda a importância da figura, da influência, da responsabilidade, da atuação, ou ainda as qualidades morais, técnicas, intelectuais, caráter, formação profissional, sorte ou reputação do sócio, desde que tais qualidades possam ser consideras como fatores preponderantes na vida empresarial da sociedade, determinantes para sua constituição e relevantes até mesmo para suas relações com terceiros (2008, p. 272-273).

Por isso é que se diz que as sociedades de pessoas são constituídas intuitu personae, pois o interesse associativo dos sócios leva em conta esses fatores, o que justifica, por exemplo, as restrições à livre circulação das quotas do capital de tais sociedades, conforme observa José Edwaldo Tavares Borba (1999, p. 47-48):

“As sociedades de pessoas têm no relacionamento entre os sócios a sua razão de existir. A vinculação entre os sócios funda-se no intuitu personae, ou seja, na confiança que cada um dos sócios deposita nos demais. As cotas são, assim, intransferíveis, a fim e que não ingresse um estranho na sociedade.

Nas sociedades de capitais inexiste esse personalismo. A cada um dos sócios é indiferente a pessoa dos demais. O que ganha relevância nessa categoria de sociedades é a aglutinação de capitais para um determinado empreendimento.

Desse modo, enquanto na sociedade de pessoas o quadro social deve manter-se constante, na sociedade de capitais a mutabilidade dos sócios é a regra”.

 Há, porém, vozes na doutrina comercialista que se insurgem contra esta classificação das sociedades por nela não vislumbrarem interesse prático, pois todas as sociedades são constituídas por ambos os elementos (pessoas e capitais).

Todavia, quando se classificam as sociedades como de pessoas ou de capitais está a se vislumbrar a preponderância de um desses fatores em relação à estruturação econômica da sociedade apenas, o que não exclui torna despiciendo o outro fator para a sociedade, como explica Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 42):

“O primeiro critério de classificação das sociedades empresárias é o que leva em conta o grau de dependência em relação às qualidades subjetivas dos sócios (classificação que repercute nas condições para a alienação da participação societária). Segundo esse critério, as sociedades podem ser de pessoas ou de capitais. Evidentemente, não existe sociedade sem a presença desses dois elementos (sócios e capital), de forma que a classificação aqui examinada diz respeito à prevalência de um eles sobre o outro. Quer dizer, em algumas sociedades, a realização do objetivo social depende fundamentalmente dos atributos individuais dos sócios, ao passo que, em outras, essa realização não depende das características subjetivas dos sócios. Nas primeiras, a pessoa do sócio é mais importante que a contribuição material que este dá para a sociedade; nas últimas, opera-se o inverso: as aptidões, a personalidade e o caráter do sócio são irrelevantes para o sucesso ou insucesso da empresa explorar a sociedade.”

E ao contrário do que sustentam os doutrinadores contrários a esse tipo de classificação, ela ainda tem relevância prática, pois influi em vários aspectos do regime jurídicos societário.

Entre as diferenças práticas entre uma e outras, costuma-se identificar que: a) a administração das sociedades de pessoas só pode ser atribuída aos seus sócios, enquanto que, nas de capitais, há distinção entre propriedade e administração; b) nas sociedades de pessoas pelo menos uma classe de sócios possui responsabilidade solidária e ilimitada pelas dívidas sociais, sendo que nas de capitais a responsabilidade de todos os sócios é limitada; c) nas de pessoas, há restrições à entrada de novos sócios enquanto que nas de capitais o ingresso é livre; d) nas de pessoas, a morte ou incapacidade dos sócios leva à dissolução total ou parcial da sociedade, o que é irrelevante para as de capitais; e) as sociedades de pessoas não admitem a participação de sócios incapazes, o que é irrelevante para as de capitais; f) as de pessoas usam firma, enquanto que as de capitais usam denominação; g) as de pessoas admitem a exclusão de sócios com base na quebra da affectio societatis enquanto que as de capitais não.

E essa distinção, entre sociedades de pessoas de capitais, também tem repercussões no regime jurídico do sócio e do acionista remisso, o que será explorado mais adiante.

1.3. Aquisição do status socii.

Para fins deste estudo, também é imprescindível a correta compreensão do momento em que alguém pode ser considerado como sócio ou acionista de uma sociedade.

Nos tipos societários disciplinados pelo Código Civil, esta questão não apresenta maiores dificuldades, havendo distinções apenas quando se trata de constituição originária da sociedade ou do ingresso de um novo sócio em uma sociedade pré-existente.

Quando estamos diante da constituição de algum dos tipos societários do Código Civil, será considerado sócio aquele que subscrever certa quantia de quotas do capital social da sociedade a ser formada, por meio da assinatura do contrato social.

Deve-se lembrar que as sociedades empresárias são constituídas desde a assinatura do contrato social, tendo o registro dos seus atos constitutivos na Junta Comercial apenas o efeito de lhe atribuir personalidade jurídica de Direito Privado (CC, art. 985 e 986).

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Portanto, sócio é quem subscreve quotas de uma sociedade empresária em constituição, independentemente do momento em que a integralização do capital subscrito deva ser feito, o que abre margem para eventual mora ou inadimplemento.

Estando a sociedade já constituída, é possível que haja ingresso de novos sócios por meio da subscrição de novas quotas de possível aumento de capital social da sociedade, ou por cessão total ou parcial das quotas de sócio a terceiro.

Para esta segunda hipótese, o cessionário das quotas do capital social será considerado sócio a partir do momento em que o contrato de aquisição da quota, com a consequente alteração do contrato social, for averbado na Junta Comercial (CC, art. 1.057, parágrafo único).

Bem diferente é a disciplina estabelecida no Direito Positivo para o caso das sociedades anônimas em razão do que preceituam os incisos I e II, do art. 80, da Lei nº. 6.404/76:

“Art. 80. A constituição da companhia depende do cumprimento dos seguintes requisitos preliminares:

I – subscrição, pelo menos por 2 (duas) pessoas, de todas as ações em que se divide o capital social fixado no estatuto;

II – realização, como entrada, de 10% (dez por cento), no mínimo, do preço de emissão das ações subscritas em dinheiro;”

De acordo com o referido dispositivo legal, a companhia só se constitui se houver pelo menos duas pessoas que subscrevam todo o capital social e desde que elas realizem, isto é, paguem e em dinheiro, pelo menos 10% (dez por cento) do preço de emissão das ações subscritas por cada um, requisitos que são cumulativos.

Por sua vez, o art. 85, da Lei nº. 6.404/76 parece complementar aquela regra ao condicionar a assinatura da lista ou boletim de subscrição autenticado, por parte do subscritor, ao prévio pagamento da entrada a ser realizada em dinheiro. Diz:

“Art. 85. No ato da subscrição das ações a serem realizadas em dinheiro, o subscritor pagará a entrada e assinará a lista ou o boletim individual autenticados pela instituição autorizada a receber as entradas, qualificando-se pelo nome, nacionalidade, residência, estado civil, profissão e documento de identidade, ou, se pessoa jurídica, pela firma ou denominação, nacionalidade e sede, devendo especificar o número das ações subscritas, a sua espécie e classe, se houver mais de uma, e o total da entrada.”

Esta regra não é nova, pois já se encontrava prevista nos artigos 40, IV, d, e 42, do Decreto nº. 2.627/40, e já suscitava dúvidas tanto na doutrina como na jurisprudência.

Cunha Peixoto, debruçando-se sobre o tema, remete a uma decisão do Supremo Tribunal Federal que, interpretando aqueles dispositivos da legislação societária anterior, posicionou-se no sentido de extinguir uma execução contra acionista remisso por entender que o executado não havia adquirido o status socii por não ter pagado a entrada.

O douto jurista menciona posição doutrinária contrária sustentada por Waldemar Ferreira e se posiciona favoravelmente à orientação fixada pelo Excelso Pretório com ponderações à luz de dispositivos do revogado Código Comercial (1972, p. 307-308):

“O Supremo Tribunal Federal, reformando decisão do Tribunal do Distrito Federal, entendeu que “não tendo havido entrada inicial em dinheiro mas o pagamento de uma taxa a título de emolumentos e cobertura de despesas, com inobservância, pois, do art. 40, letra d, da lei, que determina seja obrigatoriamente realizada no ato da sua subscrição aquela entrada inicial por ação, sem a qual (art. 42) não serão os subscritores admitidos a assinar a lista ou boletim de subscrição – o recorrente não pode ser tido como subscritor; e, se não é acionista, incabível é a ação executiva contra ele intentada pela recorrida.

Waldemar Ferreira, em escólio a este aresto, mantendo sua já conhecida opinião contrária, escreveu: “Quando, pois, na subscrição pública, o que deseja contribuir para a formação do capital da sociedade envia aos fundadores a sua carta, aceitando a proposta, ou lança sua assinatura na lista de subscrição e no projeto dos estatutos, ele não pratica ato inócuo, sem sentido jurídico, ainda quando não remete a sua entrada inicial ou não efetue o seu pagamento. Eis o ponto sobre que, no julgamento do caso de que se trata, não se manifestou o Supremo Tribunal Federal sob o prisma por que deverá ter sido examinado. Realmente, publicado o prospecto, o recorrente subscreveu as ações, assinou o projeto dos estatutos e efetuou o pagamento da taxa de inscrição. Não efetuou, todavia, o pagamento da entrada inicial. Que se firmou o contrato de subscrição, parece não haver dúvida, pela razão precípua de que se realizou o acordo de vontade e o subscritor assumiu as obrigações peculiares ao contrato em que se deu a sua livre volição a obrigar-se.

Em 1958, na reedição do Trato de Sociedades Mercantis, o ilustre professor paulista reafirmou seu ponto de vista, invocando ainda como argumento o art. 126 do Código Comercial, que torna obrigatório os contratos mercantis, tanto que as partes se acordem sobre o objeto da convenção e os reduzam a escrito.

Filiamo-nos à primeira corrente. Não nos parece aplicável à espécie o art. 126 do Código Comercial, mas sim, o art. 124, que dispõe: “Aqueles contratos para os quais neste Código se estabelecem formas e solenidades particulares, não produzirão ação em juízo comercial, se as mesmas formas e solenidades não tiverem sido observadas”. Este princípio foi reproduzido pelo Código Civil, em seu art. 130.

Ora, além do art. 38 haver declarado que nenhuma sociedade anônima poderá constituir-se sem o pagamento prévio de, no mínimo, dez por cento do valor de cada ação subscrita em dinheiro, o art. 42 manda que esse pagamento anteceda à assinatura do boletim de subscrição. Portanto, para que se concretize, validamente, sua adesão ao projeto de sociedade, é indispensável que a parte tenha, anteriormente, pago a entrada estabelecida, em lei, ou nos estatutos. Daí ninguém sustentar que os fundadores possam exigir, judicialmente, a prestação inicial daquele que assinara o boletim de inscrição sem o prévio pagamento.

Por isto não impressiona o argumento de Resteau, que chega a conclusão afirmativa, invocado o art. 1.236 do Código Civil belga, idêntico ao parágrafo único do art. 930 do nosso Código Civil, que permite o pagamento da dívida por terceiro. É que, no tocante à entrada inicial na sociedade anônima, dois princípios fundamentais predominam. O primeiro, adotado pela lei belga de 1893, que se satisfaz com o depósito prévio fixado por lei, e o segundo, seguindo pela atual lei brasileira, que exige o depósito de cada acionista. No sistema antigo, um acionista, liberando ações suas que representavam dez por cento do capital da sociedade, dispensava os demais subscritores de qualquer pagamento, enquanto que, no atual, se leva em conta o pagamento de cada subscrito e o número de suas ações, pouco importando a contribuição feita pelos demais. Cada um é obrigado a pagar dez por cento de cada ação subscrita, e este critério teve por objetivo procurar dificultar a fraude, os testas-de-ferro. Ora, admitido o pagamento por terceiro – independente de autorização do subscritor –, este último sistema confundir-se-ia com o primeiro e desapareceria a finalidade visada.

Ademais, não se trata, como quer Resteau, de pagamento de dívida de terceiro, mas de uma condição para a subscrição. O pagamento, como está expresso no art. 42, é anterior à assinatura do boletim de subscrição. Logo, não se pode falar em pagamento de dívida de terceiro, pois a condição para o subscritor firmar o boletim é a apresentação do recebido de pagamento dado pelos fundadores ou por pessoa por estes autorizada.”

Pensamos que o entendimento defendido por Cunha Peixoto e também pelo Excelso Pretório a respeito do tema, ainda que firmado à luz do Decreto nº. 2.627/40, permanece atual diante da clareza dos artigos 80, II e 85, da atual Lei nº. 6.404/76.

A interpretação sistemática dos referidos dispositivos permite entender que o pagamento da entrada é conditio sine qua non para a assinatura da lista ou boletim de subscrição autenticado justamente pela instituição responsável pelo recebimento dos valores.

Não haveria lógica alguma exigir a autenticação da lista ou do boletim de subscrição pela instituição responsável pelo recebimento das entradas se elas pudessem ser pagas em momento posterior. A autenticação é como um recibo do pagamento da entrada dado pela instituição recebedora ao adquirente, que, então, é admitido a assinar o documento e passa a ser considerado acionista da companhia.

Tratando-se de operação de compra e venda de ações de um acionista para terceiro, a aquisição do status socii dependerá da circunstância das ações serem escriturais ou não.

Se as ações não forem escriturais, a companhia deverá manter, em sua sede, um livro de “registro de ações nominativas” um livro de “transferência de ações nominativas”, operando-se a transferência da titularidade das ações por termo neste segundo livro (LSA, art. 31, caput e § 1º).

No caso de ações escriturais, a propriedade das ações é registrada em uma conta de depósito aberta em nome do acionista nos livros da instituição depositária e sua transferência mediante o registro de lançamentos a crédito e a débito nas contas do adquirente e do alienante respectivamente à vista de um documento hábil à comprovação da transação realizada entre as partes (LSA, art. 35, caput e § 1º).

Até que o cedente e o cessionário das ações não escriturais tenham assinado a transferência das ações não escriturais no livro de transferência de ações nominativas mantido pela companhia, ou até que informada e registrada a cessão das ações escriturais perante a instituição depositária, o cessionário não é considerado acionista.

Importa, para o presente estudo, entender que só se pode falar em sócio ou acionista remisso a partir do momento em que a pessoa adquiriu de fato o status socii, o que ocorrerá em marcos temporais distintos dependendo do tipo societário envolvido e, no caso das companhias, da circunstância de as ações serem escriturais ou não.

1.4. Dever essencial do sócio de contribuir para a formação do capital social.

Em uma sociedade civil marcada pelo regime de livre mercado, no qual se assegura a livre iniciativa e a livre concorrência, pode-se afirmar que toda pessoa poderia ser empresária, isto é, desenvolver, profissionalmente, uma atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços.

Este fato decorre da circunstância de que o conceito de empresa não está associado ao tamanho do negócio exercido pelo empresário, mas tão somente à efetiva coordenação dos diferentes fatores de produção (capital, trabalho, insumos e tecnologia) em uma estrutura produtiva única e voltada ao lucro.

Dependendo, porém, da magnitude da atividade empresarial que por acaso se anseie desenvolver, o empresário necessitará se congregar com outras pessoas para, assim, obter os recursos imprescindíveis para o início de sua empreitada.

As sociedades empresariais surgem, portanto, como instrumento jurídico que se presta a formalizar a estrutura relacional de direitos e deveres destas pessoas em vista de um propósito comum: a partilha dos lucros decorrentes da atividade empresarial.

É imprescindível, portanto, que os sócios contribuam com dinheiro, bens, ou até com serviços (hipóteses admitida apenas para as sociedades simples), para a formação do capital necessário para que possa a sociedade se constituir e desenvolver o projeto econômico idealizado.

O próprio Direito, ao definir sociedade como o contrato por meio do qual as pessoas “reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados” (CC, art. 981), traz implícita uma relação de imprescindibilidade entre a efetiva contribuição dos sócios e a formação do capital social.

 Tão importante é o capital social para a sociedade empresária que ele é considerado cláusula obrigatória dos atos constitutivos de todas as sociedades (CC, art. 997, III e LSA, art. 5º), excetuadas as cooperativas (Lei nº. 5.764/71, art. 4º, II).

Por este motivo é que a doutrina costuma classificar como fundamental o dever do sócio de integralizar as quotas e do acionista de pagar o preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas, conforme observa Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 497):

“A principal obrigação que o sócio contrai ao assinar o contrato social é a de investir, na sociedade, determinados recursos, geralmente referidos em moeda. Se duas pessoas contratam a formação de uma sociedade, o ponto central do acordo de vontades por elas expresso é a de organizarem juntas a empresa. Cada contratante assume, perante o outro, a obrigação de disponibilizar, de seu patrimônio, os recursos que considerar necessários ao negócio que vão explorar em parceria. Quer dizer, ele tem de cumprir o compromisso, contraído ao assinar o contrato social, de entregar para a sociedade, então constituída, o dinheiro, bem ou crédito, no montante contratado com os demais sócios. Na linguagem própria do direito societário, cada sócio tem o dever de integralizar a quota do capital social que subscreveu.”

É preciso notar que esta relação de imprescindibilidade entre a efetiva contribuição patrimonial do sócio – ressalvada a situação do sócio de serviços nas sociedades simples – para a formação do capital social de uma sociedade é uma máxima de caráter absoluto, válida para todas as espécies societárias existentes.

Quando o sócio ou acionista descumpre com o seu dever fundamental de contribuir para a formação do capital social, deixando de integralizar a quota ou o preço de emissão das ações subscritas no tempo e no modo combinados, ele põe em risco o desenvolvimento do projeto econômico idealizado pelos sócios e que seria exercido pela sociedade, já que o capital social é entendido justamente como o montante de capital necessário à viabilização da empresa a ser exercida.

Para Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (2014, p. 125):

“[…] a obrigação que tem o sócio de integralizar a parte por ele subscrita do capita social corresponde a um dever essencial decorrente da necessidade incontornável da existência, em mãos da sociedade, dos recursos financeiros a serem destinados ao exercício da atividade social, segundo os termos do projeto econômico elaborado pelos sócios.

Se algum sócio tornar-se inadimplente quanto a uma parte do capital que deveria aportar na sociedade, o prejuízo poderá ser relativo e superado de alguma forma pelos demais sócios, sem que descurem de procurar cobrar do sócio inadimplente aquilo que ele deve.

Mas, nos casos em que a inadimplência – parcial ou total – representar a perda de recursos insubstituíveis, o projeto econômico fatalmente virá a se frustrar.”

Em vista do risco causado à viabilidade do empreendimento, no todo ou em parte, pela não disponibilização do capital pelo sócio em favor da sociedade constituída, o Direito disponibiliza instrumentos jurídicos alternativos para tentar minimizar o problema.

Referidos instrumentos jurídicos permitem à sociedade ora compelir o próprio sócio à satisfação compulsória de sua obrigação e, assim, preservar o vínculo societário, ora excluí-lo da sociedade com ou sem redução proporcional do capital social, variando os instrumentos de acordo com as peculiaridades de cada tipo societário e também em função de seu caráter mais personalista ou capitalista.

É sobre o que discorreremos a seguir.

2. O sócio remisso na sociedade simples (disciplina geral das sociedades do Código Civil).

2.1. Considerações gerais sobre a sociedade simples.

A sociedade simples surgiu com o Código Civil de 2002 em substituição à sociedade civil do regime anterior.

Seu conceito se contrapõe ao da sociedade empresarial, entendendo-se como simples a sociedade constituída por sócios para o exercício conjunto de atividade econômica organizada de caráter não empresarial (CC, art. 982), que são aquelas voltadas à prestação de serviços de natureza científica, literária ou artística (CC, art. 966, parágrafo único).

Pela própria natureza das atividades econômicas exercidas por esse tipo de sociedade é possível perceber a importância dos atributos pessoais de seus sócios para o sucesso do empreendimento conjuntamente exercido por eles por meio da sociedade.

Pode-se afirmar que, como regra geral, quem procura os serviços de um médico ou advogado, por exemplo, o faz porque tem confiança na experiência do profissional cujos serviços pretende obter, contratando com a sociedade não por ela em si mesma, mas sim pela pessoa dos profissionais que ela possui em seus quadros.

Do mesmo modo, os sócios, quando se decidem exercer suas atividades profissionais em sociedade, o fazem levando em consideração esses atributos pessoais dos demais parceiros, de maneira que se pode afirmar que ela é por eles constituída intuitu personae, sendo considerada como típica sociedade de pessoas.

Para Fran Martins (2005, p. 245-246):

“Define-se a sociedade simples como sendo aquela constituída por duas ou mais pessoas, mediante escrito particular ou público, de finalidade não-empresarial, caracteristicamente de pessoas, podendo destinar-se à determinada atividade profissional, ou ser supletivamente adotada por outro modelo societário.

Bem se denota que a sociedade simples é peculiar às atividades do meio rural, artesanal e sociedades profissionais, como médicos, engenheiros, advogados e quaisquer outros que se associam para prestação de serviços dessa natureza.

Trata-se de modelo clássico societário, donde reina predominantemente a affectio societatis e a perfeita equalização do status socii. […]

Preside a sociedade simples o cunho pessoal, uma vez que o sócio não poderá ser substituído sem o consentimento dos demais, expresso em modificação do contrato social (art. 1.002 CC).

A constituição do tipo societário envolve conhecimento, pessoalidade, confiança, descrição das funções e acima de tudo a percepção da responsabilidade, diante do quadro ditado e a capacidade organizacional estabelecida”. [Grifo nosso].

Este elemento de pessoalidade e constituição intuitu personae implica em relevantes consequências para o regime jurídico societário da sociedade simples.

É de sua natureza, por exemplo, a impossibilidade de cessão das quotas dos sócios a terceiros sem anuência de todos os demais (CC, art. 1.003), a pessoalidade no exercício das funções pelos sócios (CC, art. 1.002), a vedação da administração da sociedade por terceiro que não seja sócio (CC, art. 1.013) e a responsabilidade subsidiária e ilimitada dos sócios pelas dívidas sociais (CC, art. 997, VIII).

Na sociedade simples, não tendo ela sido constituída por prazo certo, tem o sócio direito de se afastar da sociedade mediante notificação aos demais sócios (CC, art. 1.029), hipótese que implicará na dissolução total ou parcial da sociedade, o que ocorrerá também se o sócio vier a falecer ou se torna incapaz (CC, art. 1.028).

Cumpre também mencionar que o regime jurídico da sociedade simples serve também como regime societário geral para todas as sociedades regidas pelo Código Civil de 2002, no que reside a principal importância prática de seu estudo.

Por fim, menciona-se ainda que essa característica basilar da sociedade simples como sociedade de pessoas por excelência também traz repercussões sobre a disciplina do sócio remisso, o que será melhor abordado no próximo tópico.

2.2. O tratamento do sócio remisso na sociedade simples.

Como norma geral para todos os tipos societários disciplinados pela Lei Civil, caracterizada a remissão do sócio, faculta-se à sociedade compelir o sócio remisso à integralização do capital social por ele subscrito, ou aos sócios, a opção de deliberarem entre a exclusão dele ou a redução de suas quotas ao montante já realizado. É o que dispõe o art. 1.004, caput e parágrafo único, do Código Civil:

“Art. 1.004. Os sócios são obrigados, na forma e prazo previstos, às contribuições estabelecidas no contrato social, e aquele que deixar de fazê-lo, nos trinta dias seguintes ao da notificação pela sociedade, responderá perante esta pelo dano emergente da mora.

Parágrafo único. Verificada a mora, poderá a maioria dos demais sócios preferir, à indenização, a exclusão do sócio remisso, ou reduzir-lhe a quota ao montante já realizado, aplicando-se, em ambos os casos, o disposto no § 1o do art. 1.031. [Grifo nosso].

Antes do exame detalhado de cada uma das alternativas legais, não se pode deixar de perceber que a Lei permite à companhia escolher entre cobrar o sócio ou excluí-lo, ainda que da deliberação pela exclusão possa resultar na redução do capital social.

Esta decisão é discricionariedade dos sócios, vale dizer, cabe-lhes optar por uma ou por outra das soluções com base em um juízo de conveniência e de oportunidade, ainda que devam levar em conta o interesse da sociedade que integram.

Em princípio, poderíamos estranhar essa discricionariedade concedida pela Lei aos sócios para optar entre a cobrança do sócio remisso para que se integralize o capital social entendido como necessário ao empreendimento que se desejava realizar em sociedade, ou simplesmente reduzir as proporções do empreendimento.

A razão dessa discricionariedade pode ser creditada à estruturação das sociedades reguladas pelo Código Civil em torno dos atributos e qualidades pessoais dos sócios, de maneira que o elemento pessoal possui alta relevância para a existência da sociedade, para seu sucesso e para a manutenção do vínculo societário.

Pressupondo a importância que a presença da pessoa de um sócio pode ter para a sociedade, pode ser que, para ela, maior prejuízo seja a exclusão dessa pessoa (e a perda dos benefícios que sua presença trazia à sociedade) do que a perda patrimonial, caso se decida manter a pessoa do sócio remisso com redução proporcional do capital social[2].

Portanto, para as sociedades do Código Civil, em razão de seu atributo de sociedade de pessoas, a Lei não manifesta preferência por quaisquer das alternativas disponíveis (cobrança, exclusão ou redução do capital ao montante já integralizado), deixando aos demais sócios ampla margem para deliberarem a respeito da alternativa que lhes pareça mais conveniente aos interesses da sociedade.

Em relação à primeira opção, deve-se observar que o titular do direito de crédito contra o sócio remisso é a sociedade constituída e não quaisquer dos outros sócios.

Isto porque a sociedade é um contrato plurilateral, noção que traduz a ideia de que os sócios não são titulares de direitos e deveres recíprocos entre si, mas sim para com o ente social que se constrói em torno do fim comum por eles visado.

Logo, é da sociedade a legitimidade ativa para eventual ação judicial de execução ou cobrança contra o sócio remisso, pois é ela quem é a titular do crédito contra ele.

Ainda que a propositura de ações judiciais contra o sócio remisso possa ter como consequência a desarmonia nas relações entre os sócios, este fato não retira da sociedade o Direito de exigir-lhe o cumprimento compulsório das prestações a que livremente se obrigou, pois o próprio dispositivo menciona que a exclusão do sócio remisso ou a redução de suas quotas ao montante integralizado poderá – não deverá – ser promovida caso a maioria dos demais sócios prefira uma dessas opções à cobrança[3].

Também importa considerar que a mora decorrente da remissão é, em princípio, do tipo ex persona, pois reclama a necessária e prévia interpelação do devedor a cumprir a sua obrigação no prazo de 30 dias ex vi da literalidade do art. 1.004, do Código Civil[4].

Ainda que a opção legislativa neste sentido seja altamente criticável para as hipóteses em que o contrato social previr datas de vencimento para que o sócio realize os aportes a que se comprometeu no ato da subscrição a formal notificação do devedor é necessária para que possa a sociedade exercer as alternativas que a Lei lhe outorga para, conforme elucida Sérgio Campinho (2003, p. 96-97):

“O Código vem exigir a notificação prévia do sócio devedor para constituí-lo em mora. Somente após o não atendimento da notificação é que ele estará na condição de sócio remisso, sujeito aos efeitos de sua mora.

O preceito não nos parece razoável. Havendo no contrato a previsão do montante da prestação a que o sócio se obrigou, bem como a forma de realiza-la e o prazo, não vemos lógica em se exigir a sua prévia notificação. A regra geral em matéria de direito obrigacional é que o não pagamento de obrigação positiva e líquida no seu vencimento constitui, de pleno direito, em mora o devedor. A mora é ex re, vigorando o princípio do dies interpellat pro homine. É o próprio termo que faz às vezes de interpelação.

Somente não havendo termo certo é que a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial. A mora seria ex persona.

Mas o legislador, neste aspecto do sócio remisso, preferiu optar pela necessidade de prévia interpelação para a constituição em mora, desprezando o fato de poder a obrigação ser positiva, líquida e a termo. A notificação, como a lei não exige forma própria, poderá ser judicial ou extrajudicial. O princípio na espécie é o do dies non interpellat pro homine, dele não se podendo fugir.

Uma vez verificada a mora, responde o sócio remisso perante a sociedade pelos prejuízos a que deu causa, além dos juros e atualização monetária (artigo 395), computados do vencimento da obrigação positiva e líquida. Se, entretanto, o contrato não fixar prazo certo para as entradas de capital (por exemplo: o capital deverá ser integralizado em até dois anos, conforme a necessidade de recursos da sociedade, o que demandará convocação dos sócios para a integralização, quando da verificação da referida necessidade), os consectários da mora serão computados a partir da data da notificação.

Não nos parece, pela leitura do texto legal, que a notificação serviria simplesmente para fins de comprovação da mora. Não é essa a ideia que resultado do enunciado. Intencionalmente, a lei exige a interpelação para que se caracterize a condição de sócio remisso, a partir da qual podem ser extraídos os respectivos efeitos. É expresso o texto ao dispor que “aquele que deixar de fazê-lo, nos trinta dias seguintes ao da notificação pela sociedade, responderá perante esta pelo dano emergente da mora” (artigo 1.004). Apesar de injustificada a previsão, os seus termos não eixam dúvidas do que pretendem exprimir.” [Grifos nossos].

Portanto, não cumprida a obrigação pelo sócio remisso, para exercer a primeira das faculdades que lhe atribui a Lei, a sociedade deverá notificá-lo a satisfazê-la no prazo de 30 dias e, quedando-se inerte o sócio, ao fim do prazo, poderá a sociedade promover as medidas judiciais cabíveis para a satisfação compulsória de seu crédito.

Pode também a maioria dos demais sócios optar pela exclusão do sócio remisso da sociedade.

Embora se trate claramente de uma decisão discricionária, é preciso que o inadimplemento do dever de integralizar a capital social subscrito seja grave o bastante.

Isto porque, como observa Marlon Tomazette (2008, p. 290), a exclusão do sócio remisso está para o contrato plurilateral de sociedade como a resolução contratual está para o contrato bilateral, sendo que a doutrina civilista tem evoluído no sentido de restringir o direito potestativo do credor prejudicado de resolver o contrato ao invés de exigir o cumprimento (CC, art. 475) àquelas hipóteses em que o inadimplemento for grave o bastante a justificar a medida extrema, sob pena de se caracterizar abuso de Direito por violação dos limites impostos pela boa-fé objetiva, como explica Ruy Rosado de Aguiar (2003, p. 253):

“A “segunda principal função” do princípio da boa-fé é limitadora: veda ou pune o exercício de direito subjetivo, quando caracterizar “abuso da posição jurídica”. O exemplo mais significativo é o da proibição do direito de resolver o contrato por inadimplemento ou de suscitar a exceção de contrato não cumprido, quando o incumprimento é insignificante em relação ao contrato total. O princípio do adimplemento substancial, derivado da boa-fé, exclui a incidência da regra legal que permite a resolução quando não observada a integralidade do adimplemento.”

Tendo o sócio remisso descumprido apenas insignificante parte do total de sua obrigação de integralizar o capital subscrito, não poderá ser excluído da sociedade pela maioria dos demais sócios, sendo resguardado à sociedade o direito de cobrá-lo pela parte faltante ou de reduzir as suas quotas ao montante integralizado.

Discute-se também, em doutrina, se a possibilidade de exclusão estaria restrita ao sócio minoritário ou se poderia ser aplicada também para excluir o sócio majoritário que deixar de cumprir com o seu dever de contribuir para a formação do capital da sociedade.

Apesar das opiniões em contrário, nada há, na Lei, que restrinja aquela hipótese à exclusão de sócios minoritários, sendo que o sócio remisso sequer tomará parte na deliberação sobre a sua exclusão (CC, art. 1.004, parágrafo único).

É claro que se o sócio remisso é majoritário, sua exclusão da sociedade pode comprometer seriamente a viabilidade do empreendimento que os sócios visavam executar em sociedade, hipótese em que melhor seria uma dissolução total da sociedade.

Nada impede que os demais sócios deliberem por uma redução do porte da sociedade para melhor adequá-la aos recursos disponíveis, sendo esta uma opção perfeitamente válida.

Passo este ponto, é preciso mencionar que a opção por excluir o sócio remisso ou de reduzir as quotas dele ao montante já realizado pressupõe imprescindível deliberação dos sócios em reunião ou assembleia validamente convocada, pois tanto uma opção como a outra demandará a modificação do contrato social (CC, art. 1.071, V e art. 1.072).

O sócio remisso, como mencionado anteriormente, não participará (leia-se: não votará, mas terá direito a voz) dessa deliberação social, pois ele estará em flagrante situação de conflito de interesses, circunstância pela qual a própria Lei Civil reserva esta deliberação “à maioria dos demais sócios” (CC, art. 1.004, parágrafo único).

Tampouco há necessidade de se garantir o exercício do contraditório ou da ampla defesa ao sócio remisso durante referida reunião ou assembleia, pois essa oportunidade já lhe foi garantida quando da notificação encaminhada para constituí-lo em mora[5].

Vale dizer, interpelado o sócio remisso a integralizar a quota subscrita no prazo de 30 dias sob pena de sofrer as consequências previstas em Lei, nada mais há de ser exigido da sociedade ou dos sócios, que podem validamente deliberar pela exclusão ou pela redução da quota do sócio remisso, já que lhe foi dada oportunidade para ele satisfazer sua obrigação ou para provar que já o fizera.

Todavia, esta dispensabilidade do contraditório e da ampla defesa se dá somente diante da inércia do sócio remisso à interpelação recebida, pois, neste caso, não haverá caracterização de um litígio, visto que não haverá pretensão resistida, sendo que aquelas garantias são previstas apenas para os litigantes (CF/88, art. 5º, LV).

Se o pretenso sócio remisso responde à interpelação que lhe havia sido encaminhada para constituí-lo em mora argumentando matéria de fato ou de Direito, torna-se necessária sua convocação para a assembleia ou reunião que deliberará sobre sua exclusão, devendo lhe ser garantido o direito de voz para o exercício de sua defesa, que deverá ter o seu mérito analisado pelos demais sócios ao deliberarem[6].

Aprovada a deliberação pela maioria dos demais sócios, seja ela pela exclusão do remisso ou pela redução de sua quota ao montante por ele já integralizado, a respectiva ata de reunião ou assembleia deverá ser levada a registro para adquirir publicidade e, assim, passe a ter eficácia contra terceiros (Lei nº. 8.934/94, art. 1º, I, e 32, II, a), sendo desnecessária a assinatura do sócio remisso (CC, art. 1.075, § 1º, por analogia).

Excluído o sócio remisso e reduzido o capital social proporcionalmente às quotas que ele detinha, caberá à sociedade levantar balanço específico para a apuração de seus haveres, que serão calculados considerando-se a situação patrimonial da sociedade (leia-se: patrimônio líquido), devendo ser pagos à vista no prazo de 90 dias, salvo acordo ou estipulação contratual em sentido contrário (CC, art. 1.031, § 2º).

Como mencionado alhures, pode ser que os atributos pessoais do sócio sejam mais importantes à sociedade do que a contribuição material que ele não aportou à formação do capital, de maneira que os demais sócios têm a opção de amenizar a situação ao manter o sócio remisso na sociedade e reduzir a sua participação ao capital efetivamente por ele integralizado, como observa Carlos Henrique Abrão (2012, p. 33):

“Preferente à exclusão, a maioria poderá deliberar a redução da quota contributiva do sócio remisso, com o escopo de adequar sua forma e linear sua natureza ao constante da observação posterior. E, no diapasão acenado, a simples redução suaviza o efeito deletério da exclusão, mantenho o sócio, porém com capital administrado pelo esforço de sua entrada que não fora prestigiada pela integralização”.

Poderão os demais sócios preferir, ao invés de reduzir o capital social da sociedade pela exclusão do sócio remisso (e eliminação de suas quotas) ou pela redução de suas participações, que um ou alguns sócios supra a parcela faltante (CC, art. 1.031, § 1º).

Curioso notar que, a princípio, a cessão de quotas de sociedade simples exigiria consentimento unânime dos demais sócios e isto mesmo que a cessão fosse parcial e entre os próprios sócios (CC, art. 1.003), sob pena de ser tida como ineficaz.

Porém, a Lei excepciona essa regra para o caso do sócio remisso, visto que a deliberação pela exclusão do sócio ou pela redução de sua participação exige apenas maioria dos demais sócios (CC, art. 1.004), sendo que o mesmo dispositivo que o prevê faz remissão expressa à possibilidade de evitar-se a redução do capital social pelo aporte realizado por qualquer outro sócio (CC, art. 1.031, § 1º).

É de se observar que as três possibilidades de soluções jurídicas para a situação do sócio remisso não são cumulativas e nem excludentes entre si, mas facultativas, podendo a sociedade e os sócios livremente deliberar tanto por uma como por outra opção, como decidir por mudar a escolha inicial para outra mais vantajosa.

Também deve se notar que a Lei não prevê a possibilidade de venda das quotas do sócio remisso de sociedade simples a terceiros como uma das alternativas ao inadimplemento de seu dever de contribuir para a formação do capital social, tampouco prevê a possibilidade de sua aquisição pela própria sociedade.

3. Peculiaridades em relação à sociedade limitada.

3.1. Sociedade limitada como tipo societário híbrido (pessoas e capitais).

A sociedade por quotas de responsabilidade limitada é uma construção jurídica que visa favorecer o desenvolvimento de pequenos empreendimentos empresariais ao conferir aos sócios a possibilidade de explorarem a atividade econômica em conjunto com limitação de sua responsabilidade pelas dívidas da sociedade.

Ela representa uma alternativa em relação à sociedade anônima que, embora tenha lhe precedido em oferecer limitação de reponsabilidade aos seus acionistas, se revelou inviável para pequenos empreendimentos em razão do grande número das custosas exigências burocráticas para a sua criação e o seu funcionamento.

Explica Sérgio Campinho (2003, p. 125):

“Até a introdução desta última em nosso direito positivo, o que ocorreu tão somente no início do século XX, restava para aqueles que desejassem explorar a atividade mercantil através de uma pessoa jurídica, com limitação de responsabilidades, salvaguardando, portanto, seus patrimônios particulares dos efeitos das dívidas sociais, apenas a sociedade anônima, que, desde sua gênesis, sempre se alinhou com o perfil dos grandes empreendimentos, apresentando dispendiosa forma de organização, dadas as formalidades indispensáveis à sua constituição, aliado ao fato de que, até o advento da lei de 1976, exigia-se que o capital da sociedade anônima fosse subscrito por, no mínimo, sete pessoas.

Era, pois, desejável o surgimento de um novo desenho societário que conciliasse a limitação da responsabilidade dos sócios a um capital determinado, com a existência de um número menor de membros, despida, ainda, de mecanismos jurídicos complexos para sua formação, aproveitando, assim, as pequenas e médias empresas;”

Sendo sociedades destinadas a pequenos empreendimentos comerciais, a priori, a constituição de uma sociedade limitada prescinde de grande volume de capital e suas quotas costumam ser subscritas pequeno grupo de pessoas conhecidas que se reúnem e congregam o volume de capital necessário para o empreendimento.

Não era de se estranhar que a doutrina tradicional costumasse identificar a sociedade limitada como mais um exemplo de sociedade de pessoas.

O próprio Código Civil de 2002 dá margem a essa compreensão quando prevê, para a sociedade limitada, a regência supletiva das regras da sociedade simples como regra geral ainda que permita a opção contratual pela regência supletiva das regras da sociedade anônima (CC, art. 1.053, caput e parágrafo único).

É que a sociedade limitada guarda semelhanças tanto como sociedades de pessoas como de capitais.

Assemelha-se às sociedades de pessoas por ser constituída por simples contrato, por conter (em regra) limitações à livre cessão de suas quotas para quem não é sócio, por permitir a dissolução da sociedade pela morte ou pela incapacidade superveniente dos sócios, por permitir a dissolução parcial pela quebra de affectio societatis, pela necessidade de alteração do contrato social para entrada e saída de sócios, enfim, porque, para elas, em regra, os atributos pessoais dos sócios costumam ser relevantes.

Por outro lado, ela se aproxima das sociedades de capitais por limitar a responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais e admite também a regência supletiva das normas das sociedades anônimas, inclusive a livre cessibilidade das quotas.

É por essa razão que a doutrina mais moderna costuma classificar esse tipo societário não como de pessoas ou de capitais, mas como uma espécie de caráter híbrido, combinando características de uma ou de outras, como ensina ensina Amador Paes de Almeida, com base em escólio de Don Braga, Jean Escarra e Ripert (2012, p. 184-185):

“A sociedade limitada, pelo que se pode deduzir do que foi exposto, surgiu como opção entre as sociedades tipicamente de pessoas e as sociedades de capital. Na verdade, reunindo condições de uma e de outras, mereceu, como aliás ainda ocorre, manifesta preferência dos que se propõem a contrair sociedade.

“Entre as características que fazem da sociedade por quotas o tipo jurídico modernamente preferido”, argumenta Don Barga, “estão as seguintes:

a) Simplicidade para a sua formação, em oposição, portanto, à sociedade por ações;

b) Responsabilidade restrita ao total do capital social, o que a extrema da sociedade solidária;

c) dispensa do peso ônus da publicação de balanços e atos outros, tal como acontece com as sociedades anônimas;

d) liberdade de opção entre uso da firma social ou denominação, o que vale dizer, uma alternativa que se aproxima, a um só tempo, tanto da sociedade de pessoas como da sociedade por ações”.

Por isso que, a ela se referindo, assim se manifestou Jean Escarra: “…elle est, avons-nous dit, um hybride de société de personnes et de société de capitaux”.

Provindo de duas espécies diferentes – sociedades de pessoas e sociedades de capital –, por isso que híbrida, possui a sociedade limitada a simplicidade das primeiras, com as vantagens das segundas. Constitui-se por simples contrato, segundo os preceitos do art. 1.054 do N. Código Civil, tal qual as sociedades de pessoas. Nela assume especial relevo o relacionamento pessoal entre os sócios, traço inequivocamente marcante das sociedades de pessoas. Por outro lado, tal qual as sociedades de capital, atribui aos sócios responsabilidade limitada, aplicando-se-lhes, supletivamente, dispositivos da Lei das Sociedades Anônimas.

Art. 1.053, parágrafo único, do N. Código Civil: “O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima”.

Ademais disso, tanto pode adotar firma ou razão social, tal como as sociedades de pessoas, quanto denominação, própria das sociedades de capital.

Contudo, em que pesem esses traços comuns de um e outro tipo societário, com eles não se confunde, possuindo características exclusivas. Distinguem-na sobremaneira das demais espécies circunstâncias que autorizariam defini-la como sociedade de natureza mista, isto é, nem de pessoas nem de capital, como, aliás, preconiza Ripert”.

Sendo um tipo societário misto, a eventual preponderância do elemento pessoal ou do capitalístico deve ser avaliada casuisticamente pelo operador do Direito.

Essa avaliação deve ser feita à vista, por exemplo, das regras previstas no contrato social a respeito da transmissibilidade das quotas a terceiros, para o ingresso e saída de sócios, bem como as previsões contidas para a hipótese de falecimento de sócios, conforme elucida Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 462-463):

“A natureza da sociedade limitada é matéria de contrato entre os sócios. Cabe-lhes negociar, no ato constitutivo da sociedade, as condições para a cessão de quotas. Ao contrário do que se verifica em relação ás sociedades institucionais, a limitada não é sempre da mesma natureza. Cada sociedade, em particular, em razão das tratativas entabuladas pelos seus sócios, terá um ou outro perfil. A hibridez do tipo importa a existência de sociedades limitadas de pessoas e de capital, de acordo com o respectivo contrato social. A discussão sobre a natureza da sociedade limitada, assim, somente se completa pelo exame do disposto no documento que instrumentaliza a sua constituição. Em outros termos, para se definir se uma específica sociedade limitada é de capital ou de pessoas, deve-se consultar o seu contrato social. Mas, indaga-se, que cláusula desse instrumento deve ser consultada?

A resposta é simples. A cláusula sobre a qual deve recair o exame é aquela que trata do tema relevante para a classificação. Ou seja, a definição da natureza de uma sociedade limitada em particular é feita pela consulta ao que os sócios contrataram sobre cessão e quotas. Se, no contrato social, estabeleceu-se que a venda das quotas sociais depende de autorização de todos os sócios, foi intenção destes formar uma sociedade de pessoas; na hipótese contrária, prevendo o instrumento que a venda não fica condicionada à anuência dos demais componentes da sociedade, é esta de capital. É essa a cláusula do contrato social que reclama consulta na aferição da natureza de uma sociedade limitada específica. As demais não têm relevância nesse contexto.”

Eleita contratualmente pelos sócios a natureza jurídica da sociedade limitada como sendo economicamente estruturada como sociedade de pessoas ou de capitais, essa característica livremente escolhida pelos sócios (ou, na omissão, indicada pela Lei como sendo de pessoas por lhe determinar regência supletiva pelas normas da sociedade simples), a natureza escolhida implicará em consequências para o regime jurídico a ser aplicado à vida da sociedade, inclusive para o caso do sócio remisso.

3.2. O sócio remisso na sociedade limitada. Regras específicas.

Especificamente para a disciplina das sociedades limitadas, além da cobrança dirigida ao sócio remisso, de sua exclusão extrajudicial ou da redução proporcional de suas quotas ao montante integralizado, o legislador previu mais uma alternativa à sociedade frente ao sócio remisso: é a venda de suas quotas a terceiros. Diz o art. 1.058, do Código Civil:

“Art. 1.058. Não integralizada a quota de sócio remisso, os outros sócios podem, sem prejuízo do disposto no art. 1.004 e seu parágrafo único, tomá-la para si ou transferi-la a terceiros, excluindo o primitivo titular e devolvendo-lhe o que houver pago, deduzidos os juros da mora, as prestações estabelecidas no contrato mais as despesas”. [Grifo nosso].

Partindo-se do pressuposto de que a sociedade limitada é de natureza híbrida, não é de se estranhar que, diferentemente das demais sociedades que são regidas pelo Código Civil de 2002, existe previsão específica dessa opção à sociedade em caso de um de seus sócios descumprir a obrigação essencial de contribuir para o capital social.

No tópico anterior, vimos que a identificação da sociedade limitada como de pessoas ou de capitais é feita casuisticamente a partir de leitura e análise do contrato social, especialmente das cláusulas que tratam da cessibilidade das quotas e ingresso de novos sócios.

Assim, se o contrato social previr a livre cessibilidade das quotas de seu capital e inexistirem barreiras ao ingresso de novos sócios na sociedade, caso um dos sócios se torne remisso, nenhum impedimento há à sociedade buscar a integralização de seu capital social por meio da alienação compulsória de suas quotas a terceiros.

Do mesmo modo, inexistindo regra específica no contrato claramente prevendo a livre transmissibilidade das quotas sociais, porém, havendo opção pela regência supletiva das normas da sociedade anônima, também deverá ser entendida como livre a cessão das quotas (por ser esta natural no regime das companhias) e, consequentemente, aplicável será a regra da venda a terceiros das quotas do sócio remisso.

De todo modo, a transferência das quotas a terceiros dependerá de deliberação dos sócios em reunião ou assembleia e aprovação da questão pelo quórum de ¾ do capital social (CC, art. 1.076, I e 1.071, V), pois haverá necessidade de se alterar o contrato social, a menos que o contrato social preveja quórum diverso daquele.

Logicamente que referido quórum deve ser aplicado considerando-se tão somente o capital subscrito pelos “outros sócios” (CC, art. 1.058), e não sobre todo o capital social da sociedade, pois o sócio remisso não participará dessa deliberação por estar em evidente situação de conflito de interesses para com a sociedade.

Todavia, se a sociedade limitada possuir regras, em seu contrato social, que restrinjam a livre negociação das quotas sociais com terceiros não sócios de uma ou de outra maneira, ou que restrinja o ingresso de novos sócios em seu quadro social, essa opção restará inaplicável, conforme elucida Waldo Fazzio Júnior (2007, p. 113):

“Muito bem, delineado o status de sócio remisso, referida conjuntura produz algumas alternativas para os consócios. Uma delas é assumir a(s) quota(s) não liberada(s). Outra é transferi-la a terceiros. A primeira solução não traz maiores dificuldades. Quanto à outra, depende do que constar do contrato social, pois implica o advento de terceiro ao corpo societário. Se o contrato social enseja expressamente a transmissão de quotas, independentemente de qualquer condição, a cessão a terceiro é operação isenta de qualquer óbice. Mas, se o pacto inaugural for omisso a respeito, a cessão da quota do remisso a terceiro deverá contar com a aquiescência de sócios titulares de ¾ do capital social. E se o contrato social tiver cláusula impeditiva do ingresso de estranho, à míngua de qualquer sócio tomar para si as quotas, e se a própria sociedade não o fizer, só restará o caminho da redução do capital social”.

Convém mencionar que o art. 1.058, do Código Civil, assim como boa parte das regras sobre sociedades previstas naquela Lei, constituem somente normas dispositivas, isto é, normas que devem ser aplicadas apenas naquilo que não contrariarem o que foi livremente convencionado pelos sócios dentro dos limites de sua autonomia privada no contrato social, ou para a hipótese de omissão.

Dessa maneira, a transferência das quotas do sócio remisso a terceiro não sócio é uma alternativa prevista em Lei em caráter dispositivo, aplicável no caso de a sociedade limitada ser caracterizada como sociedade de capitais, isto é, quando o contrato social não contiver cláusulas restritivas à cessibilidade das quotas e ao ingresso de estranhos.

Resta a acrescentar, por fim, que deliberada a transferência das quotas do sócio remisso para terceiro não sócio para fins de integralização do capital social, deverá a sociedade levantar balanço patrimonial para apurar os seus haveres, que serão a ele pagos em dinheiro no prazo de 90 dias, à míngua de previsão contratual diversa (CC, art. 1.031, § 2º).

De seus haveres, porém, serão descontados os juros moratórios e ainda eventuais cláusulas penais previstas no contrato social, entregando-se ao sócio remisso apenas o saldo.

4. O acionista remisso na Lei nº. 6.404/76.

4.1. Breve introdução sobre as sociedades anônimas.

Embora as sociedades por ações também sejam referenciadas pela Lei Civil, seu regime jurídico se encontra disciplinado pela Lei nº. 6.404/76, só sendo a elas aplicável o regime geral das sociedades do Código Civil de forma supletiva (CC, art. 1.089).

Distinguem-se as companhias das demais espécies societárias pelo fato de terem o seu capital social dividido em ações de livre negociabilidade[7] e de que a responsabilidade de seus acionistas é limitada unicamente ao preço de emissão das ações por eles subscritas ou adquiridas (LSA, art. 1º)[8].

O surgimento das sociedades anônimas no Direito Comparado remonta ao final da Idade Média e início da Idade Moderna em um movimento que tinha por objetivo propiciar as condições jurídicas necessárias para o financiamento de grandes empreitadas navais e limitar os riscos assumidos pelos investidores nela interessados.

O Direito responde a essa necessidade do mercado regulamentando as sociedades por ações, que tornam viáveis grandes empreendimentos por meio da criação de uma sociedade cujo capital social é formado por apelo ao público poupador que, ainda que desconhecido, torna-se acionista do empreendimento em vista da possibilidade de participar de seus eventuais lucros sem sofrer risco maior do que o valor do investimento que ele próprio livremente decidiu verter em favor da companhia.

Por esta razão, a doutrina costuma atribuir à legislação das companhias três funções básicas: a) permitir o desenvolvimento de atividade empresarial de alto vulto com limitação de responsabilidade; b) encorajar o investimento feito pelos poupadores; e c) proteger a poupança popular. É o que expõe Nelson Eizirik (2011, p.30):

 

“Em primeiro lugar, mediante normas de natureza permissiva, colocar à disposição dos empresários um mecanismo jurídico que lhes permita desenvolver em conjunto uma atividade econômica, com finalidade lucrativa, o que é alcançado com os institutos da personificação da sociedade e da responsabilidade limitada dos sócios.

Em segundo lugar, fornecer os elementos institucionais que possibilitem a alocação da poupança em atividades empresariais desenvolvidas no país. As normas que tratam de encorajar os investidores a aplicar seus recursos em tais atividades devem ser de natureza incitativa, recompensando tal proceder.

Em terceiro lugar, proteger a poupança popular, mediante normas que permitam aos investidores medir os riscos que correm, fornecendo-lhes todas as informações necessárias ao adequado conhecimento do empreendimento econômico, assim como estabelecendo restrições a comportamentos abusivos ou fraudulentos. Tais normas apresentam uma feição mais predominantemente repressiva e fazem-se presentes não só no direito societário como no direito do mercado de capitais e no direito penal econômico.”

Esta participação do público investido no empreendimento desenvolvido pela companhia é feita por meio da negociação de valores mobiliários emitidos pelas sociedades anônimas, entre os quais se encontram justamente as ações de seu capital social.

Para a companhia, portanto, a pessoa do acionista é irrelevante, sendo importante unicamente o capital que ele investe no empreendimento que será por ela exercido.

Para os acionistas puramente investidores interessa que a companhia seja regularmente gerida pelos seus administradores e que produza e distribua lucros, seja porque deseja auferi-los diretamente ao fim do exercício, seja por elevar o valor das ações no mercado, auferindo resultados indiretos por meio da compra e venda delas.

Embora a legislação das sociedades por ações tenha sido criada tendo em vista referidas funções e objetivos, que incluem, justamente, a possibilidade de formação do capital social por meio de apelo ao público investidor, também se admite a existência de sociedades anônimas fechadas, cuja diferença reside na forma de composição do capital.

Será considerada companhia aberta aquela que negociar os seus títulos e valores mobiliários no mercado de capitais organizado em Bolsa de Valores ou em mercado de Balcão (LSA, art. 4º), sendo fechada aquela que não está habilitada a fazê-lo.

Modesto Carvalhosa explica que, nas companhias fechadas, o capital da sociedade é subscrito por grupo restrito de pessoas previamente conhecidos, ao passo que, nas abertas, faz-se apelo ao público investidor, razão pela qual incidem sobre elas normas especiais que visam proteger o interesse dessa coletividade de pessoas (2009, p. 47-48):

“O critério adotado pela Lei n. 6.404, de 1976, é o de financiamento da sociedade. Se esta obtém recursos de capital mediante a subscrição de ações pelos próprios acionistas ou por um grupo restrito de pessoas, mediante o exercício do direito de preferência dos acionistas ou de contrato de participação acionária, celebrado com terceiros subscritores, previamente conhecidos, temos uma sociedade fechada.

Entende-se, nesses casos de financiamento da companhia pelos próprios acionistas ou por um grupo previamente conhecido de terceiros subscritores, que estes podem tutelar seus interesses no próprio âmbito contratual, dispensando, consequentemente, a tutela pública. […]

Quando, por outro lado, a companhia procura obter recursos de capital próprio (ações) ou de terceiros (debêntures) junto ao público, oferecendo a qualquer pessoa desconhecida ações e debêntures de sua emissão, temos uma companhia aberta.

Neste caso, em face da dispersão dos tomadores de valores mobiliários emitidos pela companhia, que se presume incapazes de formar uma comunidade apta a defender eficazmente seus interesses perante aquela, seus controladores e administradores, a lei estabelece um regime especial de tutela do Poder Público em favor dessa coletividade de acionistas, debenturistas e demais portadores de títulos acionários.

Note-se que o critério de forma de financiamento adotado pela Lei das Sociedades Anônimas não leva em conta o número de tomadores de ações, debêntures e demais títulos ofertados ao público.

Se a sociedade logra ou não colocar seus títulos em consequência da oferta, pouco importa. Basta que haja a oferta junto ao público investidor para que, sobre a sociedade, incida o regime especial de tutela estatal previsto na lei.”

Não é, porém, pelo fato de uma sociedade anônima ser fechada que ela deixará de ser uma sociedade de capitais para se constituir em uma sociedade de pessoas.

É possível que, em algumas companhias fechadas, a participação de um acionista na sociedade se faça mais por contribuições de caráter pessoal do que pela expressão pecuniária do investimento que aporta na sociedade. Fábio Konder Comparato exemplifica (1979, p. 66):

“É, aliás, de observação corrente que, nas sociedades de sociedades, o que se procura na pessoa jurídica sócia, ou o que dela se espera, não é apenas uma contribuição de capital, absolutamente anônima e fungível, mas, antes de tudo, uma experiência tecnológica acumulada, a tradição comercial, a capacidade gerencial, o fato de o controlador ter a nacionalidade do país em que se vai atuar, e assim por diante. Daí ser possível falar, escusado o neologismo jurídico, em “sociedades anônimas de pessoas”, ao lado de “sociedades anônimas de capitais”, sublinhando-se, pela contradição da primeira dessas expressões, a importância do intuitus personae como pressuposto integrativo do pacto societário.”

De conformidade com o escólio do ilustre jurista, quatro características peculiares serviriam para identificar uma sociedade anônima como sendo uma sociedade de pessoas: a) a existência de limites à livre cessão de suas ações a terceiros; b) a exigência de quórum mais elevado que o estabelecido pela Lei para certas deliberações nos órgãos societários, a ponto de constituir poder de veto à minoria; c) a distribuição equitativa de cargos administrativos entre os grupos associados; e (d) a opção pela solução arbitral dos litígios decorrentes da sociedade.

Caracterizada a sociedade anônima como sociedade de pessoas, torna-se possível a excepcional aplicação dos institutos jurídicos próprios desse tipo de sociedades também à sociedade anônima, o que se faz em decorrência do reconhecimento casuístico da relevância especial dos deveres de colaboração e lealdade dos acionistas naquela específica relação societária, como aponta Erasmo Valadão Azevedo e Novaes França (2008, p. 128)[9].

Considerando-se que a regulamentação das sociedades anônimas não faz distinções entre quais normas são ou não são aplicáveis às suas diferentes espécies (companhias abertas e fechadas, de pessoas ou de capitais), não há como o intérprete evitar as dificuldades práticas na aplicação das regras da Lei nº. 6.404/76, conforme observam José Luiz Bulhões Pedreira e Alfredo Lamy Filho (2005, p. 179-180):

“Na interpretação e aplicação da LSA para definir o sistema jurídico de cada companhia é importante ter presente que a lei é um sistema complexo, que procura proteger diversos interesses, muitas vezes conflitantes, e na aplicação das normas é indispensável ter em conta as características da companhia cujo sistema jurídico se pretende conhecer, pois o modelo legal de companhia é utilizado para organizar variedade grande de companhias, desde a aberta com ações negociadas no mercado, até a joint venture, a sociedade intuitu personae e a sociedade de propósito específico.

A compreensão e interpretação da lei requer a identificação do fim e do interesse protegido em cada norma ou instituto e a hierarquização de fins e interesses.”

Então, quando estiver diante de uma companhia fechada, a aplicação da Lei deve afastar aqueles institutos que tiverem finalidade única de proteção do interesse de investidores, visto que inexistente essa espécie de acionista para essas companhias.

Do mesmo modo, quando estiver frente a uma companhia fechada que se qualifique como sociedade de pessoas, deverá o aplicador do Direito afastar aqueles institutos que tenham por pressuposto básico a preponderância do capital sobre o fator pessoal, permitida a invocação supletiva e analógica da disciplina do Código Civil.

4.2. As alternativas da companhia.

Uma vez concluído o processo de constituição da sociedade anônima com a subscrição de todo o seu capital social, seja por subscrição pública ou particular, exige-se do acionista que pague o preço de emissão das ações por ele subscritas (LSA, art. 106).

Igual dever tem aquele que adquire ações por ocasião de procedimentos de aumento de capital.

Independentemente do destino que será dado pela companhia ao aporte de capital feito pelo acionista, não há dúvida alguma de que pelo menos uma parte[10] do preço de emissão das ações será destinada à composição do capital social da companhia, podendo o restante constituir reserva de capital (LSA, art. 13, § 2º, e 14, parágrafo único).

Cediço também que a formação do capital social é imprescindível para a constituição inicial da companhia, pois é a partir da contribuição dos acionistas que a sociedade reunirá os recursos de que necessita para organizar e exercer suas atividades empresariais.

Descumprido esse dever fundamental pelo acionista, a legislação confere à companhia duas faculdades: a) a cobrança judicial contra o acionista; e b) a venda das ações do acionista remisso em leilão especial na Bolsa de Valores, por sua conta e risco. É o que preceitua o art. 107, I, e II, da Lei nº. 6.404/76:

“Art. 107. Verificada a mora do acionista, a companhia pode, à sua escolha:

I – promover contra o acionista, e os que com ele forem solidariamente responsáveis (artigo 108), processo de execução para cobrar as importâncias devidas, servindo o boletim de subscrição e o aviso de chamada como título extrajudicial nos termos do Código de Processo Civil; ou

II – mandar vender as ações em bolsa de valores, por conta e risco do acionista.”

 

O primeiro ponto que merece destaque é que, diferentemente do que faz o Código Civil em relação às sociedades por ele reguladas, as alternativas que a Lei nº. 6.404/76 assegura à companhia em relação ao acionista remisso são normas cogentes.

Tal fato decorre da expressa dicção do § 1º, do dispositivo supracitado, ao considerar “não escrita, relativamente à companhia, qualquer estipulação do estatuto ou do boletim de subscrição que exclua ou limite o exercício da opção prevista neste artigo”, ainda que assegure ao subscritor de boa-fé o direito de obrigar os responsáveis pela estipulação descabida a reparar-lhe os danos que porventura tenha sofrido.

Portanto, nem o estatuto social, nem o boletim de subscrição, e nem os acordos de acionistas poderão despir a companhia do exercício de quaisquer das opções.

Da leitura do caput do art. 107, percebe-se também que, ao contrário da mora do sócio remisso disciplinada pelo Código Civil, a mora do acionista é do tipo ex re.

Isto significa que, contendo o estatuto ou o boletim de subscrição todos os elementos essenciais da obrigação, inclusive com a previsão das datas de vencimento para que o acionista realize cada aporte de capital, não satisfeita a prestação no tempo ou no modo, ele estará automaticamente constituído em mora (LSA, art. 106, § 2º). Aplica-se, portanto, a máxima latina dies interpellat pro homine.

Em caso de eventual omissão do estatuto ou do boletim de subscrição no que concerne a elemento essencial da obrigação, caberá à companhia fazer chamada por meio da publicação de editais na imprensa por pelo menos três vezes, com prazo mínimo de 30 dias para pagamento (LSA, art. 106, § 1º), hipótese essa em que se poderá falar em mora ex personae.

Também merece menção o fato de ser discricionariedade da companhia a opção por uma ou por outra das alternativas previstas em Lei, fazendo-o por critérios da conveniência e oportunidade. Podem, até mesmo, ser exercidas de forma conjunta ou sucessiva (LSA, art. 107, § 3º).

A primeira alternativa disponibilizada pela Lei é a cobrança judicial da importância devida.

Nesta hipótese, poderá a companhia ajuizar ação de execução de título extrajudicial contra o acionista remisso e/ou contra eventuais coobrigados para haver deles a importância devida, monetariamente corrigida, acrescida de juros legais e de eventual multa que o estatuto cominar – limitada a 10% do valor da prestação (LSA, art. 106, § 2º).

Para tanto, a legislação societária confere eficácia executiva ao boletim de subscrição, cabendo à companhia provar a exigibilidade da obrigação com a exibição dos três avisos de chamadas quando aquele documento, ou o estatuto da companhia, não contiver todos os elementos necessários a conferir certeza, liquidez e exigibilidade à obrigação.

Havendo devedores solidários do acionista remisso frente ao seu dever de integralizar o preço das ações subscritas, a priori, nenhum problema haveria de a companhia optar por exercer o seu direito de crédito contra um ou contra todos.

Há que se considerar, porém, que os administradores da companhia têm o dever de prezar pelo interesse da companhia e pela satisfação de sua função social (LSA, art. 154).

Por esta razão, com base em escólio de Miranda Valverde, Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões entendem que, havendo coobrigados, a companhia não terá qualquer faculdade de escolha: deverá cobrar judicialmente a todos eles (2009, p. 292):

“Não poderá a administração da companhia, como já observado por Valverde (1953, v. II, 365), mover a execução apenas contra o acionista, caso haja outros devedores a ele solidários. Não seria cabível à administração realizar qualquer julgamento de solvabilidade, sob pena de não atender da melhor forma o interesse social.”

Referido entendimento é bastante razoável. Deve-se reconhecer, porém, que há algumas circunstâncias de fato que podem recomendar solução diversa da sugerida.

Imagine-se, por exemplo, que tenha sido deferida a recuperação judicial de um dos coobrigados. Certamente que, para exercer o seu crédito contra ele, terá a companhia que se sujeitar a eventual deságio proposto no plano de recuperação, caso não haja objeção ou ele seja aprovado pela assembleia-geral de credores, hipótese em que ela teria que se curvar a uma redução de capital social forçada, ao passo que, se optar por cobrar apenas o codevedor, poderá haver a integralidade de seu crédito junto a ele, já que as eventuais benesses do plano aprovado para a recuperanda não beneficiam os devedores solidários[11], poupando-se ainda do custo adicional com a atuação em juízo em duas frentes distintas.

Então, ao invés de uma proposição genérica como a supracitada, melhor seria a abertura de uma possibilidade de análise casuística da conveniência de se exercer o crédito contra um ou contra todos os coobrigados, sempre tendo em vista o interesse da companhia e a responsabilidade dos administradores junto a ela.

A segunda alternativa da Lei é a venda compulsória das ações em leilão especial na Bolsa de Valores.

Embora a Lei não discipline o procedimento do leilão especial para a venda das ações do acionista remisso[12], exige que ele seja realizado na Bolsa de Valores da sede da companhia ou naquela que for mais próxima, e que sua realização seja precedida de pelo menos três avisos publicados na imprensa, com antecedência mínima de três dias.

Também merece atenção o fato de que a Lei determina que o leilão seja realizado “por conta e risco do acionista”, o que significa que eventuais custos incorridos com a operação devam ser debitados do produto da venda, cabendo ao acionista o recebimento apenas de eventual saldo, bem como cabendo a ele complementar a diferença caso o produto seja insuficiente para quitar a dívida e cobrir as despesas (LSA, art. 107, § 2º).

Considerando-se que a companhia fechada não possui registro na CVM e não negocia ações de seu capital social no mercado de capitais, poder-se-ia concluir pela natural inaplicabilidade dessa segunda alternativa às companhias fechadas.

Todavia, considerando-se que a disciplina do acionista remisso na Lei nº. 6.404/76 não faz qualquer distinção entre companhias abertas e fechadas e que as alternativas previstas em seu art. 107 expressamente o são em caráter cogente, não podendo ser derrogadas nem mesmo pelo estatuto social, tem a doutrina sustentado a inexigibilidade do registro prévio da companhia fechada na CVM para vender as ações do acionista remisso em leilão especial na Bolsa de Valores.

Embora sejam categóricos ao defender referido entendimento, José Luiz Bulhões Pedreira e Alfredo Lamy Filho (2009, p. 292) justificam-no tão somente por se tratar “de leilão especial para a cobrança de crédito da companhia”, sem maiores detalhes.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, por sua vez, justifica tal orientação com base nos princípios da intangibilidade, veracidade e integridade do capital social (2014, p. 220):

“Esta solução se aplica em caráter excepcional mesmo quando a sociedade em causa for de natureza fechada, ou seja, seus valores mobiliários não estão habilitados à negociação no mercado de capitais.

A Lei considera não escrita, relativamente à companhia (portanto, ineficaz), qualquer estipulação do estatuto ou boletim de subscrição que exclua ou limite o exercício dessa alternativa como forma de alcançar o recebimento dos valores prometidos para a formação do seu capital. Isto se deve ao princípio superior de intangibilidade, veracidade ou integridade do capital social.”

Ainda na vigência do Decreto-Lei nº. 2.627/40, que continha previsão de semelhante sentido, Cunha Peixoto defendia a inaplicabilidade da alternativa de venda das ações em leilão especial da Bolsa de Valores às companhias que não tivessem prévio registro no Banco Central do Brasil – que, à época, exercia as funções hoje atribuídas à CVM – sugerindo que a venda das ações fosse realizada pela própria diretoria da sociedade, com as mesmas cautelas (1972, p. 317-318):

“O artigo ora comentado determina que a alienação só se fará através da Bolsa de Valores.

Acontece, porém, que, atualmente, para a sociedade ter suas ações cotadas em Bolsa, precisa estar registrada no Banco Central do Brasil. Portanto, a sociedade que não estiver em tal situação não tem possibilidade de vender suas ações na Bolsa de Valores. Neste caso, a alienação far-se-á pela própria diretoria, mas cercada das formalidades exigidas pelo dispositivo em apreço. A venda, quer seja realizada pelo intermédio da Bolsa de Valores, quer diretamente pela sociedade, será precedida de anúncios publicados no órgão oficial da União ou dos Estados, conforme o caso, e em outro jornal de grande circulação. Os anúncios mencionarão o nome do acionista em mora, o número de ações que serão vendidas, as prestações pagas e as que ainda faltarem, bem como o dia e hora em que serão levadas a público pregão, quando, por tal forma, for a venda e, no caso contrário, o dia em que se iniciará a venda.”

Modesto Carvalhosa, entretanto, explica que o entendimento de Cunha Peixoto acabou não prevalecendo na doutrina porque o Banco Central do Brasil recomendou expressamente às Bolsas de Valores que elas realizassem leilões especiais para a venda das ações de acionistas remissos de quaisquer companhias independentemente do prévio registo da sociedade ou da oferta na entidade.

Manifesta-se o ilustre jurista favoravelmente à aplicabilidade do instituto a todas as companhias, ressaltando tratar-se, esta, de uma função especial da Bolsa de Valores como sendo uma instituição auxiliar do Poder Público (2009 p. 286-287):

“Dessa fundamental transformação dos procedimentos de registro de negócios com ações em Bolsa de Valores surgiu, ainda na vigência do Decreto-Lei n. 2.627, a questão de se saber se as companhias não registradas poderiam vender suas ações não pagas em leilão especial da Bolsa.

Entendeu a doutrina mais abalizada que apenas as sociedades registradas e, portanto, listadas, poderiam vender suas ações em atraso na Bolsa de Valores. As demais deveriam proceder à alienação dessas ações através da própria diretoria, obedecendo às formalidades legais previstas para a espécie.

Acontece que esse entendimento não prevaleceu na prática, na medida em que o Banco Central considerou que cabia às Bolsas, em face do mandamento legal, continuar a desempenhar a função de vender em leilão especial as ações não pagas de todas as companhias que requeressem esse procedimento, independentemente de serem ou não registradas em Bolsa de Valores.

Trata-se, com efeito, de uma função especial que a lei outorga às Bolsas de Valores, na medida em que são instituições auxiliares do Poder Público, não só para esse específico fim, mas também para outros de maior importância, como nas liquidações extrajudiciais.”

A despeito da pouca acolhida do entendimento de Cunha Peixoto hoje em dia, pensamos que ele é o que melhor se adequa aos princípios que regem o mercado de capitais.

É que a exigência de registro prévio da companhia emissora na CVM, e de cada oferta pública de ações que ela faça, tem por finalidade permitir o controle estatal, por meio daquela agência reguladora, do efetivo cumprimento, pela companhia, de inúmeras obrigações de disclosure de informações sobre sua estrutura, negócios, situação financeira e patrimonial, o que visa proteger o investidor.

Convém lembrar que as companhias abertas obtêm os recursos de que necessitam para formar seu capital social mediante apelo à poupança pública, atraindo investimentos de pessoas indiscriminadas para compra de seus títulos mobiliários, sendo que o Direito do Mercado de Capitais justamente tem como objetivo a proteção desse universo de investidores, como explica Nelson Eizirik (2001, p. 53-54):

“Como um dos objetivos básicos do mercado de capitais consiste em permitir o acesso das sociedades anônimas à poupança popular, é fundamental fornecer aos investidores um adequado sistema de proteção, que se dá por meio do disclosure, que consiste na divulgação e informações amplas e completas a respeito da companhia e dos valores mobiliários por ela publicamente ofertados. […]

O primeiro registro a ser obtido por uma companhia para ter ações ou outros valores mobiliários de sua emissão ofertados aos investidores constitui o registro inicial de companhia aberta, por meio do qual visa a Comissão de Valores Mobiliários assegura o fornecimento ao mercado de informações periódicas e eventuais sobre a companhia emissora e os negócios por ela desenvolvidos. A negociação de qualquer valor mobiliário emitido por sociedade anônima no mercado de valores mobiliários depende da obtenção, pela emissora, do registro como companhia aberta perante a Comissão de Valores Mobiliários. As normas que impõem a obrigatoriedade de registro na Comissão de Valores Mobiliários tanto da companhia quanto da oferta pública apresentam nítida feição instrumental, já que o registro consiste basicamente no meio de se proceder à prestação de informações à Autarquia e sua divulgação ao público investidor.”

Com a sua costumeira clareza, Fábio Ulhoa Coelho esclarece que esse controle das companhias abertas mediante registro na CVM se faz necessário para conferir razoável nível de segurança aos investidores e favorecer o próprio desenvolvimento do mercado de capitais (2012, p. 96-97):

“A sociedade anônima somente pode captar os recursos junto aos investidores em geral – isto é, ser aberta – mediante prévia autorização do governo, que se materializa no registro dela mesma, bem como no dos lançamentos de seus valores mobiliários, no órgão governamental próprio, que é a CVM, autarquia federal ligada ao Ministério da Fazenda. Apenas com a autorização dessa agência é lícito à companhia oferecer-se à generalidade dos investidores como alternativa de investimento. É, a propósito, crime, punido com reclusão de 2 a 8 anos, e multa, proceder à captação de recursos junto à generalidade de investidores sem a observância da autorização do governo (Lei n. 7.492/86, art. 7º).

A lei determina o controle governamental sobre as sociedades anônimas abertas com vista a conferir ao mercado acionário uma certa segurança. Note-se bem, o investimento em ações e demais valores mobiliários é, sempre e inevitavelmente, uma opção de risco. Quem tem dinheiro empregado nessa alternativa de investimento – ao contrário, por exemplo, de quem investe em caderneta de poupança, CDB emitido por banco sólido ou imóveis – pode simplesmente perder tudo. Mas devem-se separar duas hipóteses: uma coisa é o risco normal do investimento, relacionado com fatores econômicos, de que deriva o insucesso do empreendimento organizado pela sociedade emissora das ações; outra é o prejuízo decorrente de irregularidades na utilização de recursos publicamente captados ou mesmo na administração da empresa com eles implementada. Essa última hipótese de perda pode, em certa medida, ser prevenida com a fiscalização governamental, e é com o objetivo de tentar controlá-la que a lei submete as sociedades anônimas abertas ao controle da CVM. Em suma, o regime jurídico aplicável às companhias abertas visa conferir ao investimento em ações a segurança possível, com o intuito de fortalecer o mercado acionário e motivar as pessoas a ingressar nele como investidores.”

Além do registro inicial da companhia aberta na CVM, a legislação exige também o prévio registro de cada nova oferta pública de ações naquele ente (LSA, art. 4º, § 1º; 82; 257, § 1º), de maneira que o público investidor possa ter os meios necessários a avaliar a conveniência de eventual aquisição dos títulos negociados.

Partindo da premissa de que toda a disciplina legal e regulamentar que se construiu para o mercado de capitais tem a finalidade de tutelar a poupança pública e que, por isso, exige-se não apenas o registro da própria companhia na CVM antes que ela possa negociar seus valores mobiliários como também o prévio registro de cada oferta pública, permitir que a companhia fechada possa vender as ações do acionista remisso em leilão especial da Bolsa de Valores causa espanto.

Enquanto que, para a constituição de uma companhia aberta, faz-se necessária a entrega à CVM de um prospecto e de um estudo de viabilidade econômica e financeira do empreendimento (LSA, art.82, § 1º)[13], a constituição de uma companhia fechada demanda tão somente a subscrição total de seu capital social pelos acionistas fundadores e que eles deliberem sua criação em assembleia-geral ou que todos assinem uma Escritura Pública de constituição da sociedade.

Além disso, cada nova oferta pública de valores mobiliários realizada por companhias abertas exige a elaboração e a divulgação de um novo prospecto ao mercado, documento este que deve conter informações sobre a companhia emissora, sobre sua situação patrimonial, econômica e financeira, entre outras coisas, exigência essa que tem o propósito de garantir que “os investidores possam formar criteriosamente a sua decisão de investimento” (Instrução Normativa CVM nº. 400/2003, art, 38).

Permitir que sejam livremente negociadas no mercado de capitais ações do capital social de uma companhia que nunca se comprometeu à divulgação contínua de informações suas ao mercado causa insegurança para o público investidor, pois, ao contrário de uma operação envolvendo companhia aberta, ele não terá, à sua disposição, a mesma gama de informações que permitiriam a ele tomar uma decisão consciente, o que contraria a finalidade social das leis do mercado de capitais.

Vale lembrar que o dever de disclosure de informação exigido de todas as companhias abertas envolve não apenas a divulgação de dados sobre a sua estrutura societária e demonstrações financeiras, mas também informações a respeito de seus negócios, de suas perspectivas de mercado, enfim, de todos os fatos relevantes que possam afetar a decisão do investidor em investir ou não naquela companhia, ou de nela permanecer, como brilhantemente explica Calixto Salomão Filho (2011, p. 180):

“…sobre dois grandes grupos de atos deve haver informação total: aqueles atos patrimoniais direcionados a influenciar diretamente o valor, a forma, a propriedade ou os direitos das ações. É o caso de operação de cisão, incorporação e fusão e da quase totalidade das outras mencionadas no artigo 136, da Lei das S. A.

Há, no entanto, também um segundo grupo bastante relevante. Trata-se das informações sobre os negócios da companhia, ao menos sobre aqueles negócios que possam influenciar sua lucratividade. […]

A regra geral estabelecida por referidos dispositivos [LSA, art. 155, e IN CVM 358/02] é a seguinte: toda informação que possa afetar de modo relevante a cotação dos valores mobiliários, a decisão dos investidores de vender ou comprar valores mobiliários ou a decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia, deve ser divulgada (art. 2º, Instrução CVM 358). Basta ler a referida enumeração para entender o quão amplo é o dever de divulgar.

Não há também qualquer dúvida que o referido dispositivo engloba ambos os grupos de informações acima mencionados: (i) informações sobre alterações patrimoniais; e (ii) informações sobre os negócios da companhia.”

Vale dizer: enquanto as companhias abertas estão obrigadas a deveres tão amplos de divulgação de informações ao mercado, deveres que abarcam o de tornar públicas não somente as informações sobre alterações patrimoniais da companhia como de seus negócios para poder negociar os seus títulos e valores mobiliários no mercado de capitais, a fim de garantir plena liberdade e segurança aos investidores no exercício de suas decisões de investimento, tais princípios seriam simplesmente negligenciados se se permitisse à companhia fechada fazê-lo à míngua do cumprimento daqueles deveres.

Também não se pode esquecer, como bem salienta o ilustre jurista, que a legislação societária e a de mercado de capitais devem ser lidas e aplicadas em conjunto (2011, p. 177).

De todo modo, este inconveniente poderia ser naturalmente solucionado pela exigência de registro prévio da companhia fechada na CVM ou, pelo menos, da oferta a ser feita.

Todavia, eventual exigência nesse sentido deveria necessariamente ser veiculada por Lei stricto sensu, pois se trata de obrigação que não se deduz da Lei nº. 6.404/76, de maneira que seria descabido eventual tratamento por meio de Instrução Normativa da própria CVM por flagrante violação aos limites do poder regulamentar.

Por sua vez, a disciplina jurídica do capital social à luz dos princípios da integridade, da intangibilidade e da veracidade, somente de maneira indireta se prestam a justificar os institutos previstos em Lei para o acionista remisso e, ainda assim, não para o efeito prático de levar à conclusão de que as opções se aplicam a todas as companhias indistintamente.

Não há dúvidas de que a obrigação de integralizar o capital social é um dever fundamental de todo sócio, pois o capital social é aquela quantia mínima de capital que o conjunto inicial de sócios entende como necessária para que a sociedade possa ser criada, possa organizar e exercer a atividade empresarial e obter lucros a partir dela.

Disso, porém, não se pode extrair que uma companhia fechada possa vender as ações do acionista remisso em leilão especial na Bolsa de Valores, e mais: sem prévio registro.

Também é preciso considerar que a evolução do Direito Empresarial tem reduzido cada vez mais o reconhecimento da qualidade do capital social como garantia dos credores.

Ponderando acerca das distinções conceituais entre o capital social e o patrimônio de uma sociedade, Fábio Ulhoa Coelho atribui a função de garantia apenas ao segundo, reservando ao primeiro unicamente uma função indireta por indicar ao mercado o “porte econômico” das atividades desenvolvidas pela sociedade (2012, p. 207):

“O capital social pode ser entendido, nesse sentido, como uma medida da contribuição dos sócios para a sociedade anônima, e acaba servindo, em certo modo, de referência à sua força econômica. Capital social elevado sugere solidez, uma companhia dotada de recursos próprios, suficientes ao atendimento de suas necessidades de custeio. E, por essa razão, por denotar a potência econômica da empresa, muitas vezes se atribui ao capital social a função de garantia dos credores, o que não é correto. A exemplo do que se verifica relativamente a qualquer sujeito de direito devedor, é o patrimônio da sociedade que constitui tal garantia. Se ela não paga uma obrigação, o credor pode executar os bens de sua propriedade, sendo, por tudo, irrelevante o maior ou menor capital social.”

O próprio Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, que defende a aplicação do instituto da venda das ações do acionista remisso em leilão na Bolsa de Valores também à companhia fechada, reconhece que o capital social só pode ser entendido como garantia dos credores dentro de uma perspectiva do que denominou “cifra de retenção” (2014, p. 110-111).

“A condição de garantia dos credores resulta de sua condição de cifra de retenção, porque durante toda a vida da sociedade ele deve estar íntegro, somente podendo ser utilizado para distribuição aos sócios, a título de lucros, os valores que excedam o montante do capital declarado no contrato social, em atenção aos princípios da intangibilidade e da veracidade que o cercam. Isto significa que o valor do capital constante do balanço (passivo) deve corresponder, no mínimo, ao montante de bens no ativo. […]

Externamente, tem a função de garantia suplementar em favor dos credores, porque, na verdade, a garantia daqueles é representada pelo patrimônio social, maior que o capital quando a sociedade é bem-sucedida no desenvolvimento de suas atividades. Assim não acontecendo, considerando ser uma cifra de retenção, conforme indicado acima, é o mínimo com o qual os credores podem contar para a garantia de seus créditos.”

Explica o jurista que o conceito de capital social é estático e permanente, enquanto que o de patrimônio é dinâmico, de maneira que o capital social seria um referencial permanente, fixo, e imediatamente cognoscível, permitindo que os credores da companhia tenham alguma noção, ainda que imprecisa, sobre a seu capacidade econômica (2014, p. 113).

Entendida a função de garantia do capital social a partir da perspectiva de mera cifra de retenção, não há como ele ser utilizado como argumento para justificar a venda de ações do acionista remisso de uma companhia fechada em Bolsa de Valores sem prévio registro da companhia e da oferta, sob pena de violação ao princípio fundamental do Direito do Mercado de Capitais, que é a proteção do investidor.

Por esta razão, adotando-se uma interpretação sistemática e teleológica da Lei nº. 6.404/76, conclui-se que a segunda alternativa (a venda das ações do acionista remisso em Bolsa de Valores), à míngua de previsão legal que exija o prévio registro da companhia fechada e da oferta na CVM, só se aplica às companhias abertas, apesar de referido entendimento não encontrar apoio na doutrina hodierna.

Deixando de lado essa questão, há mais alguns pontos de interesse no que diz respeito à opção de venda em Bolsa de Valores. Entre eles, está o preço de venda.

Embora a Lei não estabeleça quaisquer critérios para a fixação do preço das ações a serem vendidas, não haveria como se admitir pudessem elas ser alienadas por valor inferior ao que falta para a integralização do capital social da companhia.

Carvalhosa levanta duas razões para isso: a) o princípio da fixidez do capital social; que não pode ser reduzido senão nas hipóteses previstas em Lei (LSA, art. 173); e b) um princípio de justiça e isonomia entre os acionistas, garantindo-se que todos os acionistas paguem o mesmo valor para adquirir as ações (2009, p. 288):

“A ação não poderá ser leiloada por preço inferior ao que falta para a integralização. A razão desse requisito é óbvia. Se a ação pudesse ser leiloada por preço inferior ao da subscrição deduzidas as parcelas já pagas, haveria uma redução indireta do capital social. Ademais, o adquirente da ação passaria a ser seu titular, por valor de aquisição inferior ao pago pelos outros acionistas, que pontualmente resgataram as parcelas de integralização.”

Não há maiores dificuldades em relação ao primeiro argumento. Quanto ao segundo, parece não haver muito sentido, pois é natural a variação do preço das ações de uma companhia por questões puramente mercadológicas, o que influi em sua cotação na Bolsa.

Por fim, cumpre acrescentar que, vendidas as ações no leilão da Bolsa de Valores, o arrematante das ações adquirirá o status socii e se sub-rogará em todos os direitos (e também deveres) do acionista remisso excluído perante a companhia.

Frustrada a integralização do capital por quaisquer das alternativas que a Lei assegura à companhia, ainda que apenas uma delas tenha sido exercida, abre-se ainda mais uma possibilidade de solução. É o que está previsto no § 4º, do art. 107, da Lei:

“Art. 107. […]

§ 4º Se a companhia não conseguir, por qualquer dos meios previstos neste artigo, a integralização das ações, poderá declará-las caducas e fazer suas as entradas realizadas, integralizando-as com lucros ou reservas, exceto a legal; se não tiver lucros e reservas suficientes, terá o prazo de 1 (um) ano para colocar as ações caídas em comisso, findo o qual, não tendo sido encontrado comprador, a assembleia-geral deliberará sobre a redução do capital em importância correspondente.”

Em primeiro lugar, não pode passar despercebido o manifesto caráter de subsidiariedade do instituto.

Isso significa que a companhia necessariamente terá que tentar obter a satisfação de seu crédito junto ao próprio acionista remisso (opção 1) e seus coobrigados, ou então promover a venda a terceiro em leilão da Bolsa de Valores (opção 2) antes de se abrir tal possibilidade.

Não será obrigada a esgotar ambas as alternativas para poder se valer dessa faculdade excepcional, porém, já que a própria Lei exige apenas que ela não consiga, “por qualquer dos meios previstos neste artigo”, como explica Nelson Eizirik (2011, p. 581):

“A companhia não pode fazer suas as entradas com a simples verificação da mora do acionista remisso; é necessário adotar um dos procedimentos objeto do caput e apenas se não obtiver êxito declarará caduco o direito do acionista remisso. A companhia não é obrigada a adotar os 02 (dois) procedimentos previstos na Lei das S. A. – isto é, a execução judicial e o leilão especial – para declarar caducas as ações, pois pode agir de uma forma ou de outra ou, ainda, adotar ambos os procedimentos.”

Entretanto, se houve frustração total, vale dizer, se a companhia tentou a satisfação compulsória do crédito por ambos os meios previstos nos incisos do art. 107, a hipótese do § 4º deixa de ser mera faculdade para passar a ser uma obrigação.

Ora, se o projeto econômico aprovado pelos acionistas para a criação da companhia exigia certo montante de capital inicial para ser implementando e o acionista falha neste dever, ou a companhia reduz o capital social ou ela busca sua integralização.

Como a redução do capital social é apenas admitida pela Lei em caráter de subsidiariedade, exige-se dos administradores da companhia que exerçam a outra opção que lhes resta em favor da companhia, que é a declaração de caducidade.

Então, cabe à companhia declarar a caducidade do direito do acionista remisso a integralizar o capital social por ele subscrito, o que terá como efeitos, para o acionista remisso, a perda do status socii[14] e das entradas realizadas e, para a companhia, surgirá para ela o dever jurídico de adquirir aquelas ações à conta de lucros ou reservas, exceto a legal.

Trata-se de verdadeira hipótese de um ato de expropriação patrimonial do acionista remisso pela companhia, pois, conforme ensina Carvalhosa, o negócio jurídico de aquisição de ações traz implícito o pacto comissório em seus termos (2009, p. 291), permitindo o desfazimento do vínculo societário de pleno direito pelo não pagamento do preço.

Interessante notar que se trata de uma hipótese de resolução contratual com perdimento simultâneo da propriedade do bem (as ações) e da totalidade do preço que foi pago por sua aquisição, o que costuma ser excepcional em outros ramos do Direito.

Em relação ao perdimento das entradas realizadas, Carvalhosa entende que se trata de uma forma de indenização à companhia pelos prejuízos que ela eventualmente sofreu em razão da mora do acionista, razão pela qual exclui o direito de cobrar dele qualquer outra verba (2009, p. 290-291):

“Uma vez expropriadas as ações e executado o pacto comissório, rompem-se definitivamente as relações jurídicas entre a companhia e o acionista em mora. Não poderá a companhia declarar responsáveis esses acionistas por qualquer pagamento, inclusive por cominações estatutárias, despesas etc., sem embargo de eventuais condenações de custas e honorários que continuarão sempre executáveis.

Presume a lei que o pacto comissório por ela autorizado representa indenização suficiente pelo inadimplemento contratual.”

Todavia, o próprio doutrinador se contradiz posteriormente, em sua obra, ao afirmar que essas entradas realizadas pelo acionista remisso, incorporadas pela companhia, devam ser computadas na conta do capital integralizado e não em reservas.

Ora, se as entradas já realizadas pelo acionista remisso serão tomadas como capital social integralizado, elas não poderão ser consideradas também como indenização.

Ou essas entradas serão incorporadas pela companhia como reservas de capital como verdadeira espécie de cláusula penal compensatória, excluindo o direito de obter indenização suplementar, ou serão incorporadas na conta do capital social integralizado e permitida estará a cobrança de eventuais perdas e danos que tenha sofrido.

De todo modo, consumada a expropriação das ações pela declaração de caducidade e havendo lucros ou reservas disponíveis, exceto a legal, deverá a companhia transferir o valor necessário daquelas contas do balanço para a do capital social, a fim de que ele seja integralizado.

Desta maneira, as ações expropriadas pela companhia serão retiradas do mercado de capitais e ficarão retidas em tesouraria para posterior alienação a terceiros e, enquanto ali permanecerem, suspensos serão os direitos delas decorrentes (LSA, art. 30, § 4º).

Nelson Eizirik acrescenta também a faculdade de as ações expropriadas pela companhia serem “canceladas, sem diminuição do capital social” (2011, p. 582).

O cancelamento de ações adquiridas pela companhia é admitido pela Lei (LSA, art. 2º, e 30, § 1º, b) inclusive sem deliberação da assembleia-geral de acionistas, desde que a aquisição tenha sido feita com o uso de lucros ou reservas, exceto a legal, preservando-se o capital social, o que é justamente o caso, importando no consequente aumento do valor nominal das outras ações (LSA, art. 12).

No entanto, se a companhia não tiver lucros ou reservas suficientes para integralizar o capital social, diz a Lei que ela terá o prazo de 1 (um) ano a fim de colocá-las em comisso, findo o qual será obrigada a reduzir o capital social proporcionalmente.

É de se notar que, mesmo não tendo recursos financeiros para proceder à integralização do capital social, consumada estará a expropriação das ações em favor da companhia pela declaração de caducidade e incorporadas serão as entradas realizadas.

Todavia, como o capital social não foi integralizado, a companhia não terá a faculdade de mantê-las em tesouraria para venda a terceiros “quando conveniente ou possível” (CARVALHOSA, Modesto, 2009, p. 291), como era a regra anterior.

Neste caso, as ações permanecerão em tesouraria provisoriamente, por até um ano, prazo este para que a companhia diligencie sua alienação a algum interessado e, durante esse período, as ações terão seus respectivos direitos suspensos (LSA, art. 30, § 4º).

Porém, o capital social não pode ficar à míngua de definição. Por isso, findo o prazo conferido pela Lei à companhia, não restará alternativa senão a redução do capital.

Cumpre acrescentar que essa redução será de pleno direito, de maneira que não dependerá de aprovação pela maioria dos acionistas em assembleia-geral, como afirma Carvalhosa (2009, p. 292):

“A redução do capital, na hipótese, é automática, cabendo, no entanto, à assembleia geral ratificar essa redução. Com efeito, a redução se opera pelo simples decurso do prazo e não em virtude de decisão da assembleia geral. Esta apenas toma conhecimento formal da redução, já que a mesma decorre da própria lei.”

Tratando-se de redução de capital social de pleno direito e não por meio de deliberação voluntária dos acionistas, não há lugar para eventual oposição de credores (LSA, art. 174), cabendo aos acionistas unicamente ratificarem-no em assembleia-geral em uma decisão puramente homologatória (EIZIRIK, Nelson, 2011, p. 582).

O último ponto a ser tratado é o valor da redução do capital social, o que dependerá da natureza jurídica que se atribuir ao instituto da incorporação das entradas já realizadas pelo acionista remisso, em decorrência de declaração de caducidade.

Entendendo-se que a incorporação das entradas tem natureza jurídica de pagamento, lançando-se o montante no capital social, a redução se efetuará pelo remanescente.

Adotada a concepção de que a sua incorporação tem natureza jurídica de indenização, lançando-se como reserva de capital, a redução se fará pelo valor nominal das ações ou, se não tiverem valor nominal, pelo valor que lhes foi atribuído pelos seus fundadores, na constituição, ou pela assembleia-geral ou pelo conselho de administração, em caso de aumento de capital (LSA, art. 14).

4.3. Peculiaridades para as sociedades anônimas de pessoas.

Em sua origem, a sociedade anônima surgiu como uma resposta jurídica à necessidade econômica de se fornecer uma estrutura de negócios que favorecesse o financiamento de grandes empreendimentos econômicos por um número indiscriminado de pessoas, com a redução de sua responsabilidade pelo risco do negócio.

O financiamento desses grandes empreendimentos econômicos era (e é) feito por meio de apelo à poupança pública, de maneira que poupadores interessados investiam os recursos financeiros que lhes sobravam no negócio e, em troca, recebiam ações da companhia que lhe davam direito à partilha dos lucros eventualmente alcançados com o empreendimento.

É por essa razão que a sociedade anônima surgiu como companhia aberta e como sociedade de capitais, pois não interessava aos fundadores da companhia saber quem iria participar do negócio consigo, mas sim o montante de capital que aquelas pessoas poderiam aportar em benefício de seu negócio, viabilizando-o.

A existência de uma sociedade anônima de capital fechado, ou seja, que não negocia títulos e valores mobiliários no mercado de capitais, se justifica quando se tem em vista empreendimentos de grande, ou até de médio porte, concebidos e realizados por grupo restrito de pessoas.

Não é porque tais companhias optam por manterem o capital fechado que elas perdem a característica de sociedades de capitais.

É possível, porém, que o estatuto de algumas companhias fechadas contenha estipulações especiais que casuisticamente permitam excepcionar essa característica e revelar a existência de verdadeira sociedade anônima de pessoas, e não de capitais.

Como já mencionada alhures, Fábio Konder Comparato, em obra específica a respeito, enumera quatro características peculiares que permitiram a identificação de tal natureza jurídica em uma sociedade anônima: a) a existência de limites à livre cessão de suas ações a terceiros; b) a exigência de quórum mais elevado que o estabelecido em Lei para certas deliberações nos órgãos societários, a ponto de constituir poder de veto à minoria; c) a distribuição equitativa de cargos administrativos entre os grupos associados; e d) opção pela solução arbitral dos litígios decorrentes da sociedade (1979, p. 66).

O renomado jurista explica que, em algumas sociedades com essas características, a contribuição do acionista para a formação do capital, embora juridicamente continue sendo a mais importante contribuição sua, pode não o ser economicamente, importando, às vezes, muito mais à companhia eventual contribuição pessoal que ele possa lhe trazer do que o capital em si, razão pela qual Comparato defende a aplicabilidade das normas das sociedades de pessoas a tais companhias, conforme e extrai do seguinte excerto, de sua obra (1979, p. 68):

“Não se trata de substituir, por meio delas, a necessária participação do acionista no capital da companhia. No Direito brasileiro, não se admitem as chamadas contribuições de capital atípicas, como o know how. Mas essa acessoriedade é mais de cunho jurídico do que econômico. Economicamente, pode suceder que a prestação principal do acionista não seja a participação no capital e, sim, a outra; que o acionista subscreva, por hipótese, uma única ação – porque a lei a tanto o obriga, a fim de garantir o status socii – e se compromete a fornecer à sociedade, em condições altamente favoráveis, a matéria-prima indispensável à sua produção industrial, ou uma assistência técnica de grande relevância. Juridicamente, a prestação não-capitalística permanece sempre acessória e, portanto, suprimível.

Daí resulta que nas “sociedades anônimas de pessoas” aplicam-se aos acionistas regras consideradas próprias das sociedades não-acionárias, como a proibição de concorrência à sociedade.”

Convém ressaltar que a sociedade anônima fechada de pessoas não é necessariamente uma sociedade familiar, embora essas, por natureza, amiúde sejam sociedades de pessoas[15].

O reconhecimento casuístico da existência de sociedades anônimas com as características de sociedade de pessoas é admitido pela jurisprudência, inclusive com a aplicação de institutos da sociedade limitada à disciplina dessas companhias, como o reconhecimento da possibilidade de dissolução parcial da sociedade para a saída de acionista[16].

Nos estreitos limites desse artigo, a questão que se propõe é discutir quais as regras que devem ser aplicadas às sociedades anônimas de pessoas no que diz respeito à solução do problema causado pelo acionista remisso: a) aquelas próprias das companhias, previstas na Lei nº. 6.404/76; b) aquelas previstas no Código Civil para as sociedades limitadas; ou c) uma combinação entre os diferentes dispositivos de uma e de outra.

Rejeita-se, de plano, a possibilidade de aplicação das normas do Código Civil previstas para as sociedades simples. É que as sociedades anônimas, mesmo quando de pessoas, serão sempre sociedades empresárias (LSA, art. 2º, § 1º), sendo que as simples não o são (CC, art. 982).

Entre todas as sociedades regidas pelo Código Civil, é com as limitadas que as companhias guardam maior grau de afinidade, pois ambas têm por característica fundamental a limitação de responsabilidade de todos os sócios ou acionistas, sendo a limitada a única que pode, inclusive, invocar a regência supletiva da Lei nº. 6.404/76 (CC, art. 1.053, parágrafo único).

Em segundo lugar, deve-se rejeitar também a exclusão absoluta das normas da Lei nº. 6.404/76. É que mesmo as companhias fechadas que sejam caracterizadas como sociedades de pessoas não perdem a sua natureza de sociedades anônimas, pois elas foram constituídas como tais, não podendo simplesmente desprezar a disciplina que as rege, sob pena de serem tidas como sociedades limitadas travestidas de anônimas.

Então, a possibilidade que resta é a terceira opção: combinar a disciplina legal dos dois tipos societários acolhendo os institutos que se compatibilizem com as suas características e rejeitando os demais.

Tendo-se em vista as opções previstas no art. 107, da Lei nº. 6.404/76, para o acionista remisso, nas companhias fechadas de pessoas exclui-se, de pronto, a opção de venda das ações em Bolsa de Valores às expensas dele, pois não é compatível a introdução de terceiro no quadro societário de uma sociedade de pessoas à míngua de anuência dos demais acionistas.

Valem também, aqui, as mesmas ponderações que fizemos no capítulo anterior a respeito da inconveniência da aplicação dessa opção às companhias fechadas dada a inexigibilidade de registro prévio da companhia e da oferta na CVM, de modo que essa operação vai de encontro com a finalidade das regras que disciplinam o mercado de capitais, todo estruturado para proteger a pessoa do investidor.

Excluída a opção de venda em Bolsa de Valores das ações do acionista remisso, restaria a possibilidade de executá-lo, valendo-se a companhia do boletim de subscrição e dos avisos de chamada, se necessário, hipótese essa que permitiria a manutenção do quadro societário idealizado e a obtenção dos recursos necessários à formação do capital social imprescindível para as atividades da companhia.

Pelo regime normal da Lei nº. 6.404/76, então, apenas na eventualidade de a execução movida contra o acionista remisso restar frustrada é que poderia a companhia promover a declaração de caducidade das ações dele e, havendo para si as entradas realizadas, integralizar as ações com lucros ou reservas ou, não dispondo delas, colocar as ações caídas em comisso e reduzir o capital social.

No entanto, não tendo a opção de vender as ações do acionista remisso em Bolsa de Valores, condicionar a declaração de caducidade das ações a uma prévia tentativa de execução contra ele, com a sua frustração, revela-se de exacerbado rigorismo.

É que a execução contra o acionista pode se relevar inconveniente a ponto de se tornar verdadeiro estorvo, pois: a) o acionista remisso pode ser insolvente, b) o acionista remisso pode se valer de mecanismos de blindagem patrimonial em prejuízo de credores; c) a execução judicial pode demandar altos custos que à companhia pode não ser interessante suportar no momento; d) a satisfação do crédito na via judicial pode demorar; e) enquanto pender a execução, o capital social permanecerá incompleto, prejudicando o alcance dos fins sociais.

Então, considerando-se que o descumprimento de tão basilar dever por parte do acionista remisso pode provocar desinteligência entre os acionistas tal a ponto de inviabilizar o alcance do fim social, o que poderia levar até mesmo a dissolução parcial da companhia para preservá-la – sem a pessoa do acionista faltoso – por que não se admitir possa a companhia optar pela declaração de caducidade desde logo, fazendo suas as entradas realizadas e integralizando o capital com lucros e reservas (LSA, art.107, § 4º)?

Em tal hipótese, preservada estaria a empresa e os benefícios sociais dela decorrentes, assim como assegurada estaria a integridade de seu capital social e mantida estaria a harmonia entre os demais acionistas, fator este que é imprescindível para a boa fluidez dos negócios societários em sociedades de pessoas.

Então, manteria a companhia as ações assim adquiridas em tesouraria por tempo indeterminado, até que algum dos demais acionistas queira adquiri-las, até que surja eventual terceiro interessado que conte com a anuência dos acionistas para ingressar no quadro societário, ou até que a companhia passe a assumir feição de sociedade de capitais (com a modificação do estatuto ou a revogação dos acordos de acionistas que contenham limitações à circulação das ações).

Partindo do pressuposto, porém, que a contribuição pessoal do acionista em companhia fechada de pessoas pode ser muito mais importante para ela do que sua contribuição patrimonial à formação do capital social, pode ser que, na prática, seja estrategicamente conveniente à companhia simplesmente manter o acionista remisso no quadro societário para garantir a perpetuação daquelas outras contribuições.

É claro que esta opção só seria admissível na hipótese de o acionista remisso haver integralizado pelo menos uma parte do preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas, pois é imprescindível que ele tenha contribuído com a formação do capital, já que, juridicamente, essa sempre será a principal obrigação dele.

Então, por que não se permitir à companhia fechada de pessoas reduzir o capital social proporcionalmente ao montante efetivamente integralizado pelo acionista remisso, nos moldes do que prevê o parágrafo único, do art. 1.004, do Código Civil, caso ela não disponha de lucros ou de reservas para exercer a declaração de caducidade, não havendo interesse dos demais acionistas em adquirir as ações?

Essa alternativa pode se revelar preferível para uma companhia fechada e de pessoas à declaração da caducidade das ações.

É que essa declaração terá como consequência prática a colocação das ações em comisso dentro do prazo de 1 ano, resultando, simultaneamente, na redução do capital social e na exclusão de pleno direito do acionista remisso de seu quadro de sócios, ensejando também a perda da contribuição pessoal que ele trazia à companhia e que, muitas das vezes, era de todo relevante para as suas atividades, talvez até mais importante do que a própria contribuição que ele faria para o capital.

Então, considerando-se que a companhia fechada de pessoas, apesar de ser uma sociedade anônima, assemelha-se mais com a sociedade limitada do que com a sociedade anônima de capitais (aberta ou fechada), não haveria sentido em obrigá-la a se valer de institutos que não são com ela compatíveis se há institutos que melhor tutelam os interesses envolvidos no regime jurídico das limitadas.

Não se pode esquecer que a aplicação do Direito pressupõe sempre a análise finalística das normas de acordo com os fins sociais que ela pretende atender e às exigências do bem comum (Decreto-Lei nº. 4.657/42, art. 5º), e que eventuais lacunas da Lei nº. 6.404/76 justificam a aplicação das normas do Código Civil (CC, art. 1.089).

Embora não se possa falar em lacuna propriamente dita em relação ao caso do acionista remisso, é inegável a impropriedade da aplicação direta de sua disciplina às companhias fechadas de pessoas, pois, inegavelmente, suas normas foram concebidas tendo em vista as companhias abertas, que são a real preocupação da Lei nº. 6.404/76.

A disciplina legislativa de qualquer questão sempre se faz por meio de uma racional ponderação de valores relacionados a um fato social relevante, determinando-se um regra deontológica que revela uma opção política diante dos valores envolvidos.

É certo que a identificação do fato social relevante pode ser feita de modo genérico, de maneira que a disciplina pode se revelar lacunosa diante da existência de certas peculiaridades não consideradas a priori e que podem vir a demandar disciplina diversa, dificuldade que pode ser resolvida pelo recurso à analogia.

O que justifica a aplicação analógica de normas de um instituto a outro é a existência de uma regulamentação própria a certo fato e a existência de uma identidade das razões justificativas daquela opção de maneira a se concluir que, tivessem sido devidamente consideradas as peculiaridades desse fato, as normas que seriam criada seriam semelhantes às do instituto similar, como explica Miguel Reale (2002, p. 211-212):

“A analogia atende ao princípio de que o Direito é um sistema de fins. Pelo processo analógico, estendemos a um caso não previsto aquilo que o legislador previu para outro semelhante, em igualdade de razões. Se o sistema do Direito é um todo que obedece a certas finalidades fundamentais, é de se pressupor que, havendo identidade de razão jurídica, haja identidade de disposição nos casos análogos, segundo um antigo e sempre novo ensinamento: ubi eadem ratio, ibi eadem juris dispositio (onde há a mesma razão deve haver a mesma
disposição de direito).

Quando recorremos, portanto, à analogia, estendendo a um caso semelhante a resposta dada a um caso particular previsto, estamos, na realidade, obedecendo à ordem lógica substancial ou à razão intrínseca do sistema.”

É justamente o caso das companhias fechadas de pessoas que, apesar de serem estruturadas como sociedades anônimas, possuem peculiaridades de fato tais que perdem a sua característica fundamental de sociedade de capitais para assumir natureza de sociedade de pessoas, de maneira que a disciplina legal pode ficar comprometida por não atender a essas peculiaridades, abrindo espaço à aplicação analógica das normas já existentes, mas criadas para as sociedades limitadas.

A tendência da jurisprudência tem sido no sentido de permitir a extensão das regras das sociedades limitadas às companhias fechadas de pessoas por reconhecer a proximidade desses tipos societários entre si, corrigindo as falhas da legislação societária das sociedades anônimas em vigor diante desse fato social que não se pode ignorar.

Conclusão.

É da essência de todo e qualquer contrato de sociedade a contribuição dos sócios para a formação do capital social, que é a quantia mínima de fundos imprescindível para que a sociedade constituída possa exercer suas atividades empresariais.

Diante do descumprimento do sócio do dever fundamental de contribuir para a formação do capital social, o Direito Societário oferece soluções que vão desde a cobrança dos valores devido do próprio sócio até a sua exclusão do quadro social, variando as alternativas de acordo com as peculiaridades de cada tipo societário.

Pressupondo a preponderância do vínculo pessoal dos sócios sobre a importância do capital nas sociedades simples e limitadas, entendidas estas como sociedades de pessoas, o Código Civil sempre garante à sociedade a possibilidade de exclusão do sócio remisso ainda que isso provoque redução do capital social.

Diferentemente, o regime jurídico das sociedades anônimas pressupõe a preponderância do capital sobre os atributos pessoais dos acionistas e, por tal razão, só admite a redução do capital social excepcionalmente após o decurso de 1 ano da declaração de caducidade das ações, e isso apenas se frustradas as demais alternativas previstas em Lei: a execução do próprio acionista ou a venda de seus ações na Bolsa.

Todavia, vimos que, sob a rubrica de sociedades anônimas, podem ser encontradas sociedades empresárias com características bastante distintas, tais como as companhias abertas e fechadas, e, entre essas, as fechadas de capitais e as de pessoas, o que reclama adaptações na disciplina da Lei nº. 6.404/76, inegavelmente criada em vista da companhia aberta e dos princípios a ela inerentes.

Entre essas adaptações, discorremos sobre a inviabilidade da venda em Bolsa de Valores das ações do acionista remisso de companhia fechada diante da inexistência de proteção suficiente à poupança pública ante a inexigibilidade de registro prévio da companhia e da oferta.

Também discorremos sobre a possibilidade jurídica de reconhecimento da natureza de sociedade de pessoas àquelas companhias fechadas nas quais os atributos pessoais dos acionistas preponderem sobre o capital, o que pode ser revelado pela existência de limitações estatutárias (ou ainda em acordos de acionistas) à circulação de ações, ao ingresso de novos acionista, entre outras circunstâncias.

Em tais hipóteses, tanto a doutrina como a jurisprudência tem admitido a aplicabilidade de institutos próprios das sociedades limitadas às companhias fechadas com características de sociedade de pessoas, inclusive para aceitar a sua dissolução parcial.

Então, não cumprindo o acionista de companhia fechada de pessoas com o seu dever fundamental de contribuir para a formação do capital social, poderá a companhia preferir declarar a caducidade das ações como primeira opção e, assim, integralizado o capital social à custa de lucros ou de reservas, manter as ações em tesouraria até que seja conveniente a sua alienação aos próprios acionistas ou a terceiro que eles futuramente aceitem como sócio, excluído o remisso.

Admissível também seria a redução proporcional do capital social ao montante integralizado caso seja conveniente à companhia manter o acionista remisso em seu quadro social, verificando-se que a contribuição pessoal que ele proporciona à companhia in concreto seja mais importante do que a efetiva contribuição patrimonial.

Faz-se necessário, porém, que o acionista remisso tenha contribuído para a formação do capital social ainda que em parte, uma vez que a efetiva contribuição patrimonial, ainda que mínima, é considerada como a obrigação principal pela Lei.

Embora tais ajustes sejam bastante ousados, podem se revelar válidos e convenientes, na prática, diante de situações excepcionais de companhias com tal natureza.

 

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Notas
[1] Marlon Tomazete (2008, p. 272) atribui a origem da distinção de sociedade de pessoas e de capitais com base no critério da responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais aos ensinos de Cesare Vivante.

[2] Tomemos como exemplo uma sociedade formada entre um engenheiro e um administrador de empresas para a prestação de serviços de engenharia. O conhecimento e a habilitação técnico –profissional daquele é imprescindível para o negócio (Lei 5.194/66, art. 8º, parágrafo único), ainda que o administrador de empresas tenha conhecimentos sobre obras. Portanto, caso o engenheiro descumpra em parte com o dever de contribuir para a formação do capital social, pode ser que se revele mais conveniente mantê-lo no quadro societário a despeito disso do que excluí-lo da sociedade. Pensamos, também, na situação de uma sociedade de médicos formadas por profissionais recém-formados e um profissional já renomado e com alto fator pessoal de captação de clientela. É claro que a participação desse profissional é de todo relevante para o sucesso do empreendimento. É para casos como este que a Lei faculta à sociedade a opção pela redução do capital social – e consequente redução das proporções do empreendimento – para a preservação do vínculo entre as pessoas dos sócios ao invés de impor a cobrança compulsória do sócio remisso (o que poderia gerar desinteligência insuperável entre os sócios e eventual dissolução da sociedade) ou venda de suas quotas a terceiros estranhos à sociedade.

[3] Sérgio Campinho (203, p. 185) faz menção a uma objeção erigida por Cunha Peixoto ainda à luz do Decreto nº. 3.078/19, defendendo a tese de que a cobrança deveria ficar restrita à via extrajudicial (notificação) e que, permanecendo inerte o sócio, vale dizer, não cumprindo ele com a sua obrigação mesmo notificação, teria que ser excluído ou ter as suas quotas reduzidas ao montante integralizado, pois “a via judicial traz forçosamente animosidade e já demonstra, por parte do executado, ou a impossibilidade financeira de participar da sociedade ou seu desinteresse; e não se compreende uma sociedade em que, de início, não há harmonia entre seus componentes”, explicando o jurista fluminense que a objeção não tem mais qualquer sustentáculo no regime do Código Civil de 2002 e nem mesmo diante do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal e 1988, que prevê o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição.

[4] Há uma corrente doutrinária que defende a dispensabilidade da notificação do sócio remisso quando o contrato social expressamente excepcionar a regra ou quando contiver termo certo para a integralização do capital social pelo sócio. Isto o afirma José Marcelo Martins Proença (2014, p. 205), citando obra de Priscila Fonseca. Waldo Fazzio Júnior (2007, p. 113), por sua vez, ensina que “para a caracterização dessa condição social, os sócios deverão notificar o sócio devedor para adimplir sua obrigação no prazo de 30 dias. Só então fica aperfeiçoada a mora, para esse efeito, isto é, só será remisso o sócio que, inadimplente, devidamente notificado, continue inadimplente” [grifo nosso]. É claro que, tratando-se de regra dispositiva, se o contrato a excepciona, não poderá ser exigida. Diferente, porém, é a hipótese de haver simples previsão de vencimentos para a integralização do capital. Neste caso, com o advento do termo, o sócio já responderá pelos encargos decorrentes da mora (CC, art. 395 e 397), mas o exercício de quaisquer das faculdades terá como condição de eficácia a notificação formal (CC, art. 1.004).

[5] No agravo nº. 0150019-35.2008.8.13.0540, a 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais sufragou entendimento de que a garantia do contraditório e da ampla defesa para a exclusão extrajudicial do sócio remisso se faz por meio de sua formal constituição em mora.

[6] Há interesses precedentes da jurisprudência exigindo oportunização de defesa ao sócio remisso na reunião ou assembleia de exclusão em razão de certas peculiaridades do caso concreto. No agravo nº. 0064072-37.2015.8.13.0000, a 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu necessária a garantia do contraditório e da ampla defesa para a exclusão extrajudicial de um suposto sócio remisso que alegava ter integralizado suas quotas em uma sociedade limitada com aportes realizados de uma forma não convencional.

[7] O atributo de livre negociabilidade das ações em que se divide o capital social das sociedades anônimas não é utilizado pela Lei para defini-las como tais. Todavia, a doutrina comercialista tem amiúde acrescentado esta característica com dado de essencialidade. Waldirio Bulgarelli (2001, p. 65) lhe faz menção expressa enquanto que Modesto Carvalhosa (2009, p. 50), rememorando lição de Miranda Valverde as define como “pessoa jurídica de Direito Privado, de natureza mercantil, em que o capital se divide em ações de livre negociabilidade, limitando-se a responsabilidade dos subscritores ou acionistas ao preço de emissão das ações por eles subscritas ou adquiridas”.

[8] É nesta circunstância que reside a diferença essencial entre a responsabilidade dos sócios de uma sociedade limitada e a dos acionistas em uma sociedade anônima. Deve-se notar que, na disciplina das sociedades limitadas, todos os sócios são solidariamente responsáveis pelo capital social não integralizado (CC, art. 1.052), nas companhias, não existe responsabilidade semelhante: cada acionista responde unicamente pelo preço que se comprometeu a pagar pelas ações (LSA, art. 1º).

[9] Embora Novaes França concorde com a conclusão de Comparato no sentido da existência de sociedades anônimas de pessoas, discorda do fundamento adotado. Comparato salienta, em seu discurso, a sobrelevação da affectio societatis como elemento de coesão pessoal entre os acionistas em eventual sociedade anônima de pessoas. Para Novaes França, o conceito de affectio societatis seria incorreto e meramente descritivo, não sendo sinônimo de intuitus personae, de maneira que não contribuiria para a compreensão do tema. Então, ele propõe uma fundamentação diversa afirmando que “a aplicação de regras e institutos das sociedades de pessoas a determinadas sociedades anônimas fechadas ‘de pessoas’, a par de ser medida excepcional, é construção a ser elaborada a partir da constatação empírica e in concreto da intensidade dos deveres de colaboração e lealdade; da sobrelevação ou não do elemento pessoal na relação jurídica societária. Vai daí que, ao afirmar que numa dada sociedade anônima fechada se evidencia a affectio societatis e, por isso, é possível ao sócio requerer a dissolução parcial no caso de desinteligência, o intérprete estará incorrendo apenas num vício de expressão, colocando um dado meramente descritivo como pressuposto para a aplicação de certa disciplina, quando o correto seria dizer que, em dada sociedade, sobrelevam as características pessoais dos sócios na relação jurídica societária e os correlatos deveres de lealdade e colaboração, os quais, se falharem, podem, em determinadas situações limítrofes e excepcionais, justificar a transposição de instrumentos elaborados para outros tipos societários”. De fato, a diferença entre um tipo societário e outro não está no tipo de consentimento dos sócios em participar da sociedade ou na motivação subjetiva que o incita a se associar aos outros. O consentimento é sempre o mesmo em todos os contratos, enquanto que a motivação subjetiva é irrelevante para sua formação. As diferenças, portanto, só podem residir em aspectos substanciais como as relações societárias se desenvolvem na prática.

[10] É possível à companhia negociar ações com ágio (LSA, art. 170, § 1º, III), que corresponde ao valor, no preço de emissão das ações, que supera o seu valor nominal, variação esta que decorre de elementos de mercado, para mais ou para menos (hipótese de deságio). Quando o capital social da companhia é dividido em ações com valor nominal, é a parcela do preço de emissão correspondente ao valor nominal das ações que entra para o capital social, podendo o restante constituir reserva de capital. Por outro lado, se as ações da companhia não têm valor nominal, ele deverá ser fixado pelos fundadores na constituição da companhia (LSA, art. 14), ou pela assembleia-geral ou pelo conselho de administração em caso de aumentos de capital (LSA, art. 166 e 170, § 2º).

[11]A questão já foi objeto de bastante controvérsia na jurisprudência, pois era comum devedores solidários da sociedade em recuperação judicial tentarem suspender as execuções movidas contra si com base no art. 6º e 59, da Lei nº. 11.101/05, que permitem a suspensão também contra o sócio solidário e preveem que o plano de recuperação aprovado induz novação. A discussão foi em parte pacificada pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp nº. 1.333.349/SP pelo rito dos recursos repetitivos, tendo sido adotado o entendimento de que “a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005”. Embora o enfoque dado pelo STJ ao abordar a novação tenha sido mais pelo lado de ratificar o entendimento de que ela preserva as garantias e não que eventual deságio aprovado não aproveita aos coobrigados, este foi o entendimento que foi adotado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo na apelação nº. 1009188-20.2014.8.26.0451 e pelo do Paraná na apelação nº. 1.560.414-3. Malgrado a incorreta invocação daquele precedente vinculante do STJ, o entendimento adotado parece ser o mais adequado dentro do sistema e das finalidades da Lei nº. 11.101/05, que propugna por distinguir a sorte da empresa daquela do empresário, logo, mais ainda deve distingui-la em relação a coobrigados, sejam eles sócios ou não.

[12]As regras gerais sobre os leilões especiais das Bolsas de Valores encontram-se disciplinadas pela Instrução Normativa CVM nº. 168/91.

[13] O anexo 3, da Instrução Normativa CVM nº. 480/2009, exige também a apresentação de uma série de documentos complementares, dos quais merece destaque a exigência de que sejam apresentadas as demonstrações financeiros dos três exercícios anteriores à data do pedido (para o caso de sociedades em processo de abertura de capital), demonstrações financeiras especificamente levadas, política de divulgação de informações e cópias de todos os acordos de acionistas existentes. Além disso, a CVM exige que as companhias abertas divulguem grande número de informações ao público até mesmo no site da própria companhia na internet. É clara a preocupação da CVM em permitir ao investidor ter a exata dimensão do negócio ao qual está sendo convidado a participar.

[14] Enquanto não declarada a caducidade das ações pela companhia, o acionista remisso terá não apenas reconhecido o seu status de sócio como poderá purgar a mora, integralizando o capital social, desde que com os consectários decorrentes da mora. É que, a princípio, tem o acionista direito de permanecer na sociedade, tanto que, mesmo nas sociedades de pessoas, a exclusão do sócio é medida excepcional, exigindo falta grave (CC, art. 1.030). Além disso, se, em uma sociedade de capitais, o que importa é o capital que o acionista investe em favor da companhia e não a sua pessoa, não há interesse da companhia em excluir o acionista que paga o preço de suas ações, ainda que com retardo. Portanto, a purga da mora é uma opção sempre possível ao acionista remisso enquanto não consumada a venda de suas ações no leilão da Bolsa de Valores ou enquanto não declarada sua caducidade pela companhia.

[15] Fran Martins esclarece essa diferença afirmando que “esta [a companhia familiar] é sempre uma sociedade fechada, ficando, porém, a suas ações em poder dos membros de uma mesma família ou de pessoas muito aproximadas dessas; por isso essas ações não são oferecidas à venda ao público em geral. Mas pode existir uma sociedade não familiar, com grande número de ações, que será considerada fechada se as suas ações não forem oferecidas ao grande público por intermédio das entidades legalmente autorizadas a negociar no mercado mobiliário. A tradição do Direito societário brasileiro, ligado às companhias fechadas, tem feito com que a maioria seja de natureza familiar” (2005, p. 288). Por sua vez, quando Fábio Konder Comparato fala em sociedade anônima de pessoas, não desenvolve seu raciocínio a partir de sociedades familiares, mas sim da concepção de sociedades de sociedades. Ele diz que “nas sociedades de sociedades, o que se procura na pessoa jurídica sócia, ou o que dela se espera, não é apenas uma contribuição de capital, absolutamente anônima e fungível, mas, antes de tudo, uma experiência tecnológica acumulada, a tradição comercial, a capacidade gerencial, o fato de o controlador ter a nacionalidade do país em que se vai atuar e assim por diante. Daí ser possível falar, escusado o neologismo jurídico, em ‘sociedade anônima de pessoas’, ao lado de ‘sociedades anônimas de capitais’, sublinhando-se, pela contradição da primeira dessas expressões, a importância do intuitus personae como pressuposto integrativo do pacto societário” (1979, p. 66). É neste sentido que se afirma, neste artigo, que a manutenção do acionista remisso pode ser mais interessante do que a sua exclusão dada eventual importância dessa sua contribuição pessoal sua à companhia, relevância que pode preponderar sobre o capital.

[16] Enquanto que, nas sociedades de pessoas a saída do sócio é sempre permitida por meio da dissolução parcial da sociedade com apuração e pagamento dos haveres do sócio retirante, no regime jurídico das companhias, esta possibilidade não existe. Se um acionista deseja se retirar da sociedade, não estando nas hipóteses de recesso, cabe a ele vender suas ações no mercado. Todavia, na medida em que algumas companhias fechadas de pessoas introduzem em seus estatutos ou em acordos de acionistas normas proibitivas à livre negociabilidade das ações, a dissolução parcial pode ser uma alternativa válida em caso de dissenso entre as partes para garantir a preservação da empresa com os acionistas que desejam permanecer. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça possui vários precedentes admitido tal opção para as companhias fechadas que possuem características de sociedades de pessoas (REsp 111.294/PR e REsp 247.002/RJ. Seus precedentes, porém, estão muito ligados à companhia fechada de caráter familiar. Ocorre que podem existir companhias fechadas que não sejam formados por grupos familiares mas que sejam sociedades de pessoas pela característica do vínculo intuitus personae. Na apelação cível de nº. 0082567-52.2010.8.26.0224, o Tribunal de Justiça de São Paulo manifestou esse entendimento, permitindo a dissolução parcial de uma sociedade anônima fechada composta por apenas três acionistas que, embora não fossem parentes, mantinham vínculos preponderantemente fundados no atributos pessoais de cada um deles.


Informações Sobre o Autor

Maurício Custódio Dourado

Advogado e Consultor Jurídico. Especializando em Direito Empresarial. Especialista em Direito Tributário. Bacharel em Direito


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