Estupro e atentado violento ao pudor como crimes hediondos: Desencontro entre a hermenêutica doutrinária e a jurisprudencial

Introdução: O Pacto com o Direito Penal da Severidade

1.1 LCH e Rigor Punitivo para os Crimes contra a Liberdade Sexual

Dos crimes contra os costumes, definidos no Título VI do CP, a Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos – LCH)  selecionou os dois mais graves para atribuir-lhes o rótulo legal da hediondez.  Em conseqüência, o estupro (art. 213) e o atentado violento ao pudor (art. 214), tentados ou consumados, são as duas únicas infrações contra os costumes que integram o rol sinistro dos crimes hediondos (art. 1º, incisos V e VI da LCH).

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Esses dois crimes tiveram suas penas mínimas aumentadas, respectivamente, de três e dois para seis anos e as máximas de oito e sete para dez anos de reclusão (art. 6o  da LCH). Com a LCH, igualou-se a reprimenda cominada ao estupro e ao aten­tado violento ao pudor, o que não seria tão grave, pois são crimes da mesma espécie e, principalmente, porque não se pode afirmar que o estupro seja necessariamente mais grave que o atentado violento ao pudor e vice-versa. A experiência mostra que as cir­cunstâncias presentes em cada um destes crimes é que darão a medida certa para se aferir, de forma casuística, qual deles é o mais grave. Por isso, a igualdade de repri­menda teria sido uma medida razoável e compreensível se a pena mínima do crime de estupro tivesse permanecido próxima ao patamar de três anos de reclusão estabelecido pelo legislador de 1940.

Não se pode concordar é com a solução adotada pela LCH, que exagerou na exasperação da pena. É preciso reconhecer que, no tocante ao aten­tado violento ao pudor, a elevação da reprimenda mínima de dois para seis anos repre­sentou um despropositado salto em direção ao direito penal da severidade. Isto é profundamente lamentável.

À luz da concepção punitiva contemporânea , seria um absurdo admitir que a conduta de apalpar ou beijar alguém à força,[1] ou a mera contemplação lasciva, após o agente ter cortado o vestido da vítima que dormia,[2] entendidas pela jurisprudência de alguns anos atrás como caracterizadoras do tipo penal descrito no art. 214 do CP, merecem a pena mí­nima de seis anos de reclusão, a ser cumprida em regime fechado.

Mantido este en­tendimento jurisprudencial para as hipóteses hediondas em análise, a reprimenda mínima a ser obrigatoriamente aplicada revela-se um verdadeiro disparate, se comparada com a puni­ção prevista para outros crimes também graves, definidos no CP ou em leis especiais. Compare-se, por exemplo, com a pena mínima de um ano de detenção cominada para o homicídio culposo, mesmo quando praticado mediante gravíssima imprudência e geradora de graves conseqüências sociais; ou com a pena mínima de seis anos de re­clusão, prevista para o homicídio doloso simples.

1.2.O Equívoco de um Conceito Legal de Crime Hediondo

De qualquer forma devemos admitir que tanto o estupro quanto o atentado violento ao pudor são crimes graves, cujo cometimento, em regra, pode suscitar um forte sentimento de repulsa. Por isso, o juízo de censura será, também, com freqüência, acentuado em relação ao autor de tais condutas contra liberdade sexual.  No entanto, há casos de crime de estupro e, principalmente, de atentado violento ao pudor em que a gravidade da conduta não se apresentará de forma tão acentuada e o rótulo da hediondez poderá se revelar politicamente desnecessário e indevido; eticamente indevido e injusto; juridicamente ilógico. Isto se admitirmos a validade do conceito legal de crime hediondo.

Aliás, já escrevemos anteriormente que o legislador de 1990, cometeu  sério equívoco ao destacar alguns tipos penais mais graves, para classificá-los como infrações obrigatória e necessariamente hediondas. É que o caráter de hediondez desses delitos não pode ser estabelecido a priori, como uma regra absoluta. Ao contrário, o caráter de maior gravidade de uma dessas condutas rotuladas de hediondas, decorre principalmente de certas circunstâncias ou conseqüências do crime em concreto. Constata-se, portanto, que o legislador lançou mão de um critério puramente formal e utilizou um procedimento de mera colagem. Criou, assim, uma presunção compulsória do caráter profundamente respulsivo do ato incriminado: de forma discricionária e apriorística, decidiu o legislador marcar certas condutas criminosas com o rótulo da hediondez absolutamente obrigatória. Entendemos que este conceito meramente formal de crime hediondo contraria, não somente a lógica jurídica, mas também a própria natureza das coisas.[3]

Examinaremos, neste artigo, o desencontro entre a hermenêutica doutrinária e a jurisprudencial acerca de um ponto polêmico da LCH: afinal, o estupro e o atentado violento ao pudor, nas suas formas simples, são crimes hediondos? Ou seja, encontram-se estas duas infrações contra a liberdade sexual, em suas formas básicas, tipificadas nos arts. 213, caput, e 214, caput, do CP, marcadas pelo rótulo da hediondez, de conformidade com o disposto nos incisos  V e VI, do art. 1º, da LCH?

A questão é realmente polêmica e tem dividido tanto a doutrina quanto a jurisprudência e as divergências apresentam-se como uma verdadeira fratura exposta no campo da hermenêutica jurídica.

2. Formas Básicas do Estupro e do Atentado ao Pudor  São Crimes Hediondos?

A doutrina tem posição divergente. Uma corrente entende que, tanto as formas básicas quanto as qualificadas destes dois crimes contra os costumes, enquadram-se nas hipóteses descritas nos incisos V e VI do art. 1º, da LCH: estão, portanto, etiquetadas como crimes hediondos. Sem maior preocupação com o processo hermenêutico que deve buscar o verdadeiro sentido da norma, parte da doutrina tem afirmado, laconicamente, que esses dispositivos referem-se a ambas as hipóteses de estupro e de atentado violento ao pudor.[4]

Outra parte da doutrina, no entanto, entende que somente as formas qualificadas do estupro e do atentado violento ao pudor podem ser consideradas  crimes hediondos. Alberto Silva Franco, em excelente comentário ao tipo penal de estupro, escreve que  a redação dada aos dois incisos em exame, ao utilizar a expressão estupro e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único, tem o mesmo significado ou o mesmo sentido da expressão combinado com, de uso corrente na doutrina, na jurisprudência e na própria lei. E argumenta textualmente: “O fato mesmo de o legislador não ter aposto o termo caput ao número dos artigos 213 e 214, (…) e de não ter acrescido ao nomen iuris a expressão e na forma qualificada, (…) denota que não está relacionando com o tipo básico (estupro e atentado violento ao pudor) as formas qualificadas do art. 223 e de seu parágrafo único), como se fossem figuras somadas, mas, ao contrário, está integrando a redação do tipo básico com as orações subordinadas que compõem o caput e o parágrafo único do art. 223”.[5]

Não se pode negar que a redação dada aos incisos V e VI do art. 1º da LCH não é da melhor categoria, em termos de técnica legislativa. Os referidos dispositivos estão assim redigidos: “V – estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e  parágrafo único); VI – atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223 caput e parágrafo único). Por isso, parte da doutrina entende que, ao utilizar a conjunção aditiva e, a norma estaria indicando que somente a forma qualificada prevista no art. 223 caput e seu parágrafo único é que poderia ser considerada como crime hediondo.

Embora a redação dos incisos em exame não seja gramaticalmente perfeita, é preciso reconhecer que o sentido do direito ali contido indica que, tanto as formas básicas quanto as qualificadas do estupro e do atentado violento ao pudor, são crimes hediondos. Se a intenção do legislador fosse a de excluir a forma simples do rol dos crimes hediondos, teria se reportado unicamente à forma qualificada, referindo-se ao estupro e ao atentado violento ao pudor praticados com lesão corporal grave ou morte da vítima e, em seguida, indicado os respetivos dispositivos do CP, como o fez em todo o texto do art. 1º da LCH . No entanto, tendo sido utilizada a conjunção aditiva e, outro não pode ser o sentido do direito, por mais grave que seja seu resultado hermenêutico: as duas formas típicas destas infrações hediondas – a simples e a qualificada – estão enquadradas na categoria penal de crime hediondo.

Além disso, é preciso considerar que os dispositivos em análise utilizam-se  do nomen juris estupro e  atentado violento ao pudor, como categoria típica genérica e não como forma específica a esses dois tipos em suas formas qualificadas pelo resultado. Em seguida, reportam-se aos arts. 213 e 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, o que permite concluir que se trata também do gênero estupro ou atentado violento ao pudor e não apenas de suas formas qualificadas.

3. Posição da Jurisprudência  

Na jurisprudência, após decisões esparsas em contrário, parece consolidar-se a tendência de que o estupro e o atentado violento ao pudor, seja na forma simples ou qualificada, são crimes hediondos e, portanto, sujeitos ao regime jurídico de maior rigor estabelecido na LCH.

No STJ, reiteradas decisões perfilham este entendimento jurisprudencial, cuja síntese pode ser assim formulada: o art. 1º, incisos V e VI, da Lei 8.072/90, considera crime hediondo os tipos penais estabelecidos nos arts. 213 e 214 e em suas combinações com as hipóteses previstas no art. 223 e seu parágrafo único (RT 745/527 e 746/553 e RSTJ 109/306).

Com as decisões mais recentes, eventuais divergências naquela Corte ficaram superadas e consolidada está a posição de que as formas simples e as qualificadas do estupro e do atentado violento ao pudor são crimes hediondos (REsp 521.700-RS, rel. Félix Fischer,DJU 01.12.2003, p. 396; HC 29.083-CE, rel. José A. Fonseca, DJU 28.10.2003, p. 323; Resp 515.004-PR, rel. min. Laurita Vaz, DJU 13.10.2003, p. 432; REsp 311.317-SP, rel. min. Jorge Scartezzini, DJU 29.09.03, p. 306; HC 16.750-RJ, 5ª Turma, DJU de 22.10.01, p.339. Ver, no mesmo sentido: HC 16.830-SP, 5ª Turma, DJU de 17.09.01, p. 178; Resp 279.434-SC, 5ª Turma, DJU de 01.10.01, p.237; Resp 246.479-GO, 5ª Turma, DJU de 15.10.01, p. 280, e REsp 314.143-RJ, 5ª T., DJU de 11.03.02, p. 270).

O STF também já decidiu que “o crime de atentado violento ao pudor, tanto na sua forma simples, Cod. Penal, art. 214, quanto na qualificada, Cod. Penal, art. 223, caput e par. Único, é hediondo, ex-vi do disposto na Lei 8.072/90” (HC 81.411-SC, 2ª Turma, rel. min. Carlos Velloso). Em outra decisão da mesma turma da Suprema Corte, ficou decidido que “crimes de estupro e atentado violento ao pudor, ainda que em sua forma simples, configuram modalidade de crime hediondo” (HC 81.317-SC, 2ª Turma, rel. min. Celso Mello. Ver, ainda: HC 82.235-5-SP, rel. min. Celso Mello, DJU 28.02.2003; HC 81.894-SP, rel. min. Maurício Corrêa, 2ª T., DJU 20.09.2002; HC 82.098-PR, min. Ellen Gracie, DJU 22.11.2002, p. 23).

Essa posição jurisprudencial encontra-se consolidada no STF, após decisão do Pleno,  de 18.12.01, ao julgar o HC 81.288-SC e firmar o entendimento de que o estupro e o atentado violento ao pudor, seja na forma simples ou básica, quanto na forma qualificada, são crimes hediondos.

4. Conclusão

A nosso ver o mal não se restringe apenas ao fato de serem as formas básicas do estupro e do atentado violento ao pudor consideradas crimes hediondos. Cremos que o equívoco maior e mais grave, conforme já assinalamos, está na própria LCH e em suas graves impropriedades jurídicas: adoção de um discutível conceito legal de crime hediondo e aumento exagerado das penas mínimas para esses dois crimes contra os costumes. Indiscutivelmente, o fato mais grave, reiteradamente criticado pela doutrina, foi o de a LCH ter criado um subsistema punitivo de maior severidade e marginal ao Código Penal.

 

Bibliografia
LEAL, João José. Crimes Hediondos. A Lei 8.072/90 como Expressão do Direito Penal da Severidade. Curitiba: Juruá, 2003.
MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. v. 2. São Paulo: Atlas, 1997.
JESUS, Damásio. Direito Penal. v. 3. São Paulo: Saraiva, 1991.
MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes Hediondos. São Paulo: Saraiva, 1992.
DELMANTO, Celso et alii. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
FRANCO, Alberto Silva et alii. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. V. 2. São Paulo: 2001.
Notas
[1] TJRS: Ap. Crim. 25.665, RT 533/400.
[2] TACrSP: Bem. Infr. 189.707, JTACrSP 66/58.
[3] LEAL, João José. Crimes Hediondos. A Lei 8.072/90 como Expressão do Direito Penal da Severidade. Curitiba: Juruá, 2003, p. 37 e segs.
[4] MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. v. 2. São Paulo: Atlas, 1997, p. 406 e 411. JESUS, Damásio. Direito Penal. v. 3. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 89. MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes Hediondos. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 39. DELMANTO, Celso et alii. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 458.
[5] FRANCO, Alberto Silva et alii. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. V. 2. São Paulo: 2001, p. 3096.

 


 

Informações Sobre o Autor

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João José Leal

 

Livre Docente-Doutor – UGF/FURB. Professor dos Programas de Mestrado e de Doutorado do Curso de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da UNIVALI – Itajaí – SC. Promotor de Justiça aposentado. Ex-Procurador Geral de Justiça de SC. Ex-Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da FURB – Blumenau. Sócio do IBCCrim e da AIDP.

 


 

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