Resumo: O progresso da técnica na modernidade baseou-se numa lógica de exploração utilitária da natureza, conduzindo o homem a entender-se não mais como parte da natureza, mas sim como dominador desta. A natureza foi, então, reduzida a dimensões cartesianas, sob a crença de uma suposta infinita capacidade de regeneração. A partir dessa concepção e com o incentivo do avanço das ciências de forma geral – matemáticas, biológicas, etc. -, a produção de tecnologia inaugura um processo de desenvolvimento que o conduziria a tempos de superprodução e superconsumismo. Essa lógica apenas passou a ser questionada quando, no que se chama de crise ecológica, a natureza começa a demonstrar ser limitada. Nesse sentido, a ética ambiental propõe-se a uma análise crítica da lógica com a qual o homem se percebe perante a natureza, assim como das próprias formas de produção tecnológica no que diz respeito ao seu impacto no meio ambiente.
Palavras-Chave: modernidade, natureza, ética ambiental, antropocentrismo, biocentrismo.
Abstract: The progress of the technical production conduced in the modern era was based on a utilitarian logic concerning the exploitation of the nature, leading the man to understand himself not anymore as part of nature, but as its dominant. The nature was, then, reduced into cartesian dimensions, under the belief of its infinite capacity of regeneration. Based on this concept and with the development of the science in general – mathematical, biological, etc. -, the production of technology initiates a development process which leads to times of overproduction and overconsumption. This logic only began to be questioned when, in the called ecological crisis, nature begins to show being limited. In this sense, environmental ethics proposes to critically analyze the logic in which the man perceives himself regarding nature, as well as the way in which the technologic production impacts on the environment.
Keywords: modernity, nature, ecological ethics, anthropocentrism, biocentrism.
Introdução
Conceitos como progresso, civilização, bem estar, prosperidade, trazem idéias positivas a respeito da trajetória humana e, carregadas de otimismo, trazem também uma noção de caminho a ser seguido, rota inevitável. Contudo, basta apenas um exame mais atento destes conceitos, partindo-se de outra perspectiva – como, por exemplo, a da exploração utilitária da natureza – para que se compreenda o quanto a certeza da evolução positiva pode ser relativizada. A ética ambiental proporciona uma análise crítica das condutas e concepções humanas sobre a natureza; ela questiona a aventura do progresso moderno sustentado sobre uma noção de recursos naturais ilimitados, na qual se encontra uma natureza carente de direitos e sem força para gerar deveres.
Nesse sentido, este artigo apresenta a ética ambiental como forma de análise crítica do contexto contemporâneo no que diz respeito à interação entre o ser humano e a natureza. Analisa-se o sentido de progresso como produção de conforto, em contraste com as necessidades efetivas do homem. Apresenta-se a visão predominante na modernidade na qual o homem se encontrava a parte da natureza, ou seja, como um mero utilizador ou explorador daquela. A partir disso, demonstra-se a noção pós-moderna e menos antropocêntrica da forma de perceber a natureza, na qual o ser humano passa a ser compreendido como parte integrante do meio ambiente, numa relação de dependência.
A análise, portanto, da ética contemporânea se distancia do antropocentrismo, inovando em duas novas concepções, ecologia profunda e biocentrismo; noções que, embora também radicais, apresentam uma nova noção de ética preservacionista. Tais mudanças de racionalidade ética condizem coerentemente com os movimentos ambientais que passaram a condenar formas desordenadas de exploração. Parte disso refere-se à constatação de que há limites à renovação da natureza. Daí por diante, a denuncia das atrocidades ambientais passaram a vincular-se a própria sobrevivência humana.
Por fim, propõe-se a ética ambiental como forma de promover uma visão crítica das decisões tomadas pelo homem em relação à preservação ambiental e ao desenvolvimento tecnológico.
1. O progresso da técnica
O desenvolvimento do homem na história da humanidade está baseado principalmente na capacidade de produzir facilidades e incrementar seu domínio sobre a natureza. O incremento dessa produção é o que se considera o progresso da técnica, considerado como salvação e libertação do homem em relação aos limites naturais. Essas novas técnicas permitiram a criação de novos espaços, bens de consumo, e uma generalidade de bens que acabaram por permitir uma melhora das condições de vida do homem moderno. A esse respeito, Gomez-Heras dividi a civilização contemporânea em três elementos básicos: a ciência, a técnica e a economia industrial (Gomez-Heras, 1997, p.17-90). Isso por que, segundo ele, a sociedade de consumo de hoje não teria sido capaz de alcançar os atuais níveis de produtividade e eficácia, sem que a ciência e a técnica tivessem possibilitado. Da mesma forma que, o desenvolvimento da ciência e da técnica não teriam sido possíveis sem o apoio e o fomento da economia. A articulação entre tais elementos, portanto, teria possibilitado uma circunstância histórica adequada para o progresso ter ocorrido da forma com que se apresenta hoje – e inclusive para que o progresso seja reconhecido da forma como o é e não de outra.
Nesse contexto, a interação entre o homem e a natureza, ao longo do período moderno de desenvolvimento, seria capaz de explicar a forma com que se efetivou a modernização da técnica e a exploração da natureza. Em outras palavras, a forma com que o ser humano entende sua posição em relação ao meio ambiente natural, compõe o quadro no qual se justificam as práticas em relação aos recursos naturais.
Na idade média clássica, por exemplo, o homem entendia-se como parte do bem natural, nem superior e nem inferior à natureza, de forma que, inclusive estava sujeito às intempéries naturais, as quais relacionava estritamente com a punição divina. A partir das idéias renascentistas, devido a descobertas de ciências como a física, química e biologia, percebe-se a emergência da convicção de que a natureza pode ser dominada. Propõe-se, então, a natureza como produto a ser utilizado e transformado de acordo com interesse humano. Emerge a possibilidade de não mais submeter-se aos efeitos ambientais. O homem, portanto, percebe-se contraposto à natureza, entendendo-se como dominador daquela. Tal lógica pode ser extraída das lições de Descartes, por exemplo, nas quais questiona e critica o senso comum – enquanto ciência predominante na época medieval – como forma de ciência, colocando ênfase à razão.
A natureza é reduzida a uma significação matemática e, nada restando nela de divino, passa a representar um objeto de exploração. É considerada como recursos disponibilizados por Deus e à disposição do homem. Descartes afirma ainda, numa sentença que resume boa parte da concepção da época na qual o conhecimento produzido pela matemática era libertador e capaz de desvincular o homem da dependência das vicissitudes do meio; segundo Descartes, os homens, a partir do desenvolvimento da técnica, passam a ser “mestres e possuidores da natureza” (Descartes, 1973).
A afirmação dessas idéias somada ao desenvolvimento de formas de produção mais sofisticadas resultou na exploração cada vez mais intensa dos recursos naturais. Para Gomez-Heras, esse seria o início da civilização do homo technicus, vez que pode-se considerar como ponto inicial da crise ambiental (Gomez-Heras, 1997, p.17-90). A evolução da técnica, que gera a possibilidade de produção intensa, explora de forma cada vez mais veloz os recursos naturais. Nessa progressão desenvolvimentista, iniciada na modernidade e seguida até hoje, os efeitos ao meio ambiente geraram danos incalculáveis. As conseqüências, portanto, do progresso tecnológico para a natureza, convertem-na em um problema em si mesma, justamente por constituir-se na proporcionadora desse progresso.
2. Os limites do crescimento
Por volta da década de 70, alertas divulgados pela ciência e por obras como a de Meadows[1], denunciaram a limitação dos recursos naturais e da capacidade de auto-renovação da natureza (D. L Meadows, 1972). Desastres e catástrofes ambientais foram relacionados estritamente ao aumento vertiginoso da população, da produção de bens de consumo, do consumo em si e, conseqüentemente, da poluição e degradação ambiental. A interrelação homem-natureza, assim como das concepções como consumismo e progresso, começa a ser questionada e criticada até um momento em que enfim adquirirem relevância ética. A relação de superposição na qual o homem se entendia em ralação ao meio ambiente, passa a incluir a noção de limitação dos bens naturais.
Trata-se de um contexto em que os alertas ambientais promovem o início do que após veio a ser chamado de consciência ambiental. Foi momento em que movimentos sociais e contra-culturais – mais especificamente nos anos 70 e nas sociedades de desenvolvimentos tecnológico mais avançado – propiciam e incentivam o questionamento em relação à lógica de exploração e do consumismo. Nas discussões que se apontaram nesse contexto, a ética clássica em relação ao meio ambiente – a qual supõe a natureza como majestosa, invulnerável, capaz de neutralizar os efeitos das atividades humanas – embora predominante na lógica da produção e consumo não se mostra mais apta para abordar os complexos problemas ambientais contemporâneos.
Nesse sentido, diversas linhas de pensamento dedicaram atenção para a questão de uma ética ambiental[2]. Concentram-se em analisar a problemática da ética do meio ambiente como forma de encontrar um discurso sobre a natureza, que analisasse criticamente a interação entre ela e o ser humano. A tentativa se refere a buscar uma forma de compatibilizar o desenvolvimento da técnica e a manutenção da natureza de forma que continue a produzir os recursos necessários à própria tecnologia. A ética ambiental, portanto, assume a tarefa de fundamentar normas reguladoras de condutas, que tenham em sua essência valores imperativos da moral, ou seja, a conduta do homem em relação com a natureza (Gomez-Heras, 1997, p.17-90).
Ao longo do desenvolvimento tecnológico, se colocado em uma balança de um lado o desenvolvimento – denominado de progresso – e de outro a natureza como habitat e meio de vida, claramente é possível se constatar a distorção progressiva da harmonia entre fatos e valores. O desequilíbrio entre diferentes formas de racionalidades demonstra que, ao prevalecer uma delas – como no caso da modernidade a técnico-científica – as conseqüências geralmente se refletem numa atrofia, ou até mesmo retrocesso, de valores morais referentes ao que foi considerado de menor relevância. Ou seja, a ética em relação ao meio ambiente e sua interação saudável (pra não dizer exploração racional) com o desenvolvimento do homem e de suas necessidades restou abstraída em nome de outros interesses. O que não se supunha, contudo, é que tais valores desenvolvimentistas resultariam em um incremento tão forte e acelerado nas técnicas de exploração.
A erupção da ciência técnica como forma de produção da tecnologia, pode ser considerada como fator predominante – mas não o único – a provocar o deslocamento da racionalidade axiológica (baseada em valores morais) para uma racionalidade de resultados (baseada em valores produtivos). O valor do desenvolvimento afasta o valor antes dedicado a natureza, induzindo, portanto, outra forma de pensar a interação entre o homem e o meio natural. A lógica do progresso moderno apresenta-se dentro de uma ética da soberania humana, estruturada sobre tecnologias que representam o domínio sobre a natureza. Surpreendente, contudo, foram as conseqüências imprevisíveis dessa lógica pelas outras diversas necessidades que ela acaba por gerar.
A complexidade da questão perpassa um desequilíbrio profundo entre valores e fatos. Uma dissociação crescente entre o sistema natural da vida humana e a estrutura artificial-formal produzida pela técnica no seu afã de racionalizar o mundo. Segundo Gomez, as dimensões da vida cotidiana, tal como o manejo do tempo, as relações de convivência, a comunicação social, a produção de alimentos, assim como fenômenos mais alarmantes como as mudanças climáticas, são dependentes da harmonia entre valores e fatos (Gomez-Heras, 1997, p.17-90). A natureza, portanto, de fato, passou a sofrer uma destruição de seu equilíbrio, uma ruptura que em sua essência traz o balanço entre a ciência empírico-pragmática e a ética. Segundo Duplá, o que deve ser ressaltado é que a submissão da natureza à técnica, eliminou os fundamentos metafísicos da ética, assim como a possibilidade de contra-arrestar os efeitos negativos daquela apenas com critérios morais (Duplá, 2001, p.128-144).
Nesse contexto, os abusos da produção em larga escala e da exploração intensiva para satisfazer às necessidades tecnológicas geram principalmente problemas na vida social dos homens e nas relações destes com a natureza. Admite-se, contudo, que há benefícios também gerados por esses processos, os quais, contudo, são mostrados como necessários e inevitáveis ao progresso tecnológico. Trata-se da concepção de que o desenvolvimento da maneira como se apresenta hoje seria a única forma a ser seguida. Qualquer alternativa que fuja dessa lógica de produção em massa, consumo em massa, é muitas vezes considerada um retrocesso à humanidade, uma contra-ciência. Na verdade, pensar numa lógica de retrocesso faz parte de uma racionalidade baseada no desenvolvimentismo da tecnologia. Não se trata de caminho inevitável à humanidade, trata-se da única forma de desenvolvimento considerada dentre de uma compreensão de mundo específica. Existe a opção por viver sem certas comodidades que causam danos ambientais, contudo, está inserida em uma lógica não predominante na sociedade de consumo.
Segundo Habermas, é inquestionável que o progresso tenha possibilitado uma expansão da liberdade, mas isso não esconde que a mesma técnica se sustenta em estratégias de aniquilamento da autonomia do sujeito em uma sociedade e em uma natureza restrita a estruturas formais manipuláveis (Gabás, 1980). Não se trata de condenar a tecnologia e o progresso, mas sim de percebê-lo criticamente, de analisar sob que tipo de racionalidade os conceitos de desenvolvimento de hoje estão sendo produzidos. A natureza não é matemática, não é ciência absoluta, se é que alguma ciência pode ser assim considerada.
A dissociação entre o homem e a natureza, a fez ser reduzia a um objeto, num processo de despotencialização de seu significado e de seus fenômenos na vida cotidiana. Isso a faz perder a força para ser um sujeito de direitos e um suporte de valores (Gomez-Heras, 1997, p.17-90).
3. A ética e a moral
Fundamentar as normas que regulem, a partir de valores imperativos morais, a conduta do homem com a natureza é tarefa a ser assumida pela ética ambiental. A reflexão moral representa uma forma de promover a sensibilidade ecológica, expandida em uma ética filosófica da natureza, mediante fundamentação racional de normas de conduta (Regan, 1981, p.19-34). A racionalidade dos resultados, conforme denominou Weber, constitui-se como uma das origens do problema ecológico. Isso por que, nessa lógica, a razão humana se desvincula de toda uma racionalidade de valores. Em outras palavras, a natureza passa a ser considerada pelo valor de mercado e não mais por qualquer valor moral (Hösle, 1998).
Segundo Kant, as condutas do homem para com a natureza têm sua essência na moral, vez que a escolha entre o que se pode fazer (que é técnica) e o que se deve fazer é uma questão de ética (Kant, 2001). A racionalidade baseada na produção de riqueza apenas condiciona a uma perda do referencial de valor moral que vê a natureza não como fonte de produção. Nesse sentido, percebe-se a total conexão entre a racionalidade científica e a destruição de certos valores morais. É como se a objetivação da vida proporcionada pelos avanços da ciência, ocasionassem um processo de substituição do mundo natural por uma estrutura artificial de conhecimentos formais (Husserl, 2002).
A tendência seria, portanto, uma arbitrariedade de condutas nas quais a exploração da natureza mostra a perversa racionalidade que respeita apenas os valores econômicos e tecnológicos. Esta situação foi anunciada por Habermas como um momento em que a técnica e a economia, elevadas a ideologias, não apenas teriam se diferenciado da razão moral, mas também ignorado esta como princípio legitimador de condutas (Habermas, 1994).
O valor moral, que conduz à ética, refere-se a decisões racionais que em outros tempos, como na idade média, por exemplo, vinculavam-se a instâncias metafísicas, religiosas e que, na modernidade se basearam em categorias científicas. Atualmente, as novas formas dessa razão, como a ecologia, ainda estão à espera de uma revalidação – somente atribuível pelo homem – que promova a ponderação das possibilidades e limites da sua razão sobre o uso e manejo da natureza. Isso por que é o homem quem revalida, ou não, as razões ecológicas e científicas (Gomez-Heras, 1997, p.17-90).
O problema, portanto, ainda recai sobre a questão da ética; sobre o que é o ético. A ética ambiental seria um novo paradigma construído sob suporte das ciências naturais, biologia, ecologia, geologia, etc. Contudo, consagrar essa ética propõe a identificação da relação de dependência entre homem e natureza, deslocando-se aquele da função de explorador. Uma ética ambiental pressupõe rechaçar a noção da ética antropocentrista, conduzindo à assunção de que além de agente criador, o homem é também paciente e que há instancias que transcendem seu poder e controle. A ética ambiental, portanto, admite a relação de dependência para com a natureza, relação que até pouco tempo atrás se baseava no paradigma da dominação.
Essa mudança de paradigma requer do ser humano uma reconsideração quanto ao seu posto em relação à natureza. É essa a exigência que a ética ambiental requer. Essa pergunta pode (e deve) ser feita à miscelânea de novas práticas que estão sendo realizadas em prol da proteção do meio ambiente, como por exemplo, compra e venda de créditos de carbono. Em que posição estaria o homem em relação à natureza nesse caso? Há interesses além dos comerciais especulativos? A partir de respostas a questões como estas, seria possível concluir sobre que tipo de ética ambiental está sendo aplicada ao caso (se é que há um tipo de ética aplicada).
A ética ambiental, portanto, se fundamenta na existência de valores ecológicos, sem os quais dificilmente poderia ser legitimada como conduta racional. Refere-se à natureza como um todo, englobando toda a comunidade biótica, em cujo equilíbrio se fundamenta o fundamento da ética. A ética do meio ambiente reconhece nos seres vivos um valor de dignidade, de respeito aos valores da natureza enquanto bens em si mesmos. Esses valores existiriam independentemente da necessidade e do interesse da espécie humana (Callicott, 1979, p.71-81; , 1984, p.299-309).
Contudo, os valores que os bens naturais possuem – ou seja, seus valores intrínsecos -, são valores independentes da qualificação feita por algum ser humano? Seriam independentes do uso da razão, da liberdade, da responsabilidade daquele que os qualifica? Onde se situa o fundamento dessa validade moral? Têm algum valor moral os não humanos? Colocando de outra forma, seria correto falar de interesses e até mesmo de deveres em relação aos não humanos?
A ética ambiental surge de questões como estas, provenientes de casos de resolução complexa, nos quais o marco teórico antropocêntrico – o qual havia sido definido desde a época moderna – não mais é capaz de proporcionar respostas satisfatórias (Vieja, 1997, p.188-127). O que pretende a moral do meio ambiente é formar uma nova consciência ambiental que limite a conduta humana em situações de risco para qualquer espécie. É a partir dessa perspectiva que se pode afirmar que a tradicional ética não é mais eficaz, tendo em vista os novos e mais complexos problemas ambientais.
Nesse contexto, a ânsia de proteção da natureza fez surgir pretensões fortes de ação, como a ecologia profunda (deep ecology), baseada em um sistema de princípios no qual as obrigações para com vidas não humanas derivam de uma mudança radical de perspectiva (em relação à antropocêntrica), reconhecendo necessidades, desejos, propósitos e interesses nos seres humanos. A humanidade se sente responsável pelos seres ao seu redor, estendendo os princípios, as obrigações e os valores mais além do homocentrismo (Vieja, 1997, p.188-127).
Assim, outra forma de ética proposta é a biocêntrica. Essa noção considera que a vida é valor maior e deve ser sempre priorizada em quaisquer situações. Tudo que é vida na natureza, portanto deve ser priorizado. Contudo, deve haver uma hierarquia de valoração para casos complexos que apresentem conflitos de valores. Nesse sentido, entende-se que a capacidade de dar valor as coisas é exclusiva do ser humano, ou seja, está nas decisões humanas a valoração intrínseca do que será priorizado. Há, sem dúvida, nessa perspectiva, um elemento antropocêntrico inevitável, que é parte substantiva da ética.
Em realidade, as críticas à ética antropocentrista prevalecente na modernidade, se empenham em enfatizar que o reducionismo da natureza à mera provedora de recursos ignorou qualquer noção protecionista do meio ambiente. A crise ambiental, portanto, introduziu uma nova responsabilidade ao ser humano, induzindo-o a repensar a ética. O princípio da preservação, portanto, constitui-se substancialmente na ética ambiental. Trata-se de um instrumento que torna possível optar eticamente pela conduta correta dentre um rol de opções fornecidas pela ciência (Rolston.III, 1988).
Ao considerar que os valores da natureza se distribuem homogeneamente no ecossistema, o princípio da preservação fornece uma lógica de preservação (Callicott, 1979, p.71-81). A tese básica consiste em admitir que a conduta humana afeta de fato o meio ambiente em que atua. A ética ambiental, portanto, se concentra na atenção a tais relações de interação entre homem e meio ambiente, avaliando-as como boas ou más. O princípio da preservação, nesse contexto, é o referencial básico da avaliação ética, fundamentando, tanto o biocentrismo quanto a ecologia profunda.
4. Considerações finais
Atualmente, o crescente interesse por energias renováveis, reciclagem, reelaboração da biomassa, indicam que há uma preocupação clara em relação ao problema ecológico. A discussão, contudo, se centra hoje em saber se realmente essas novas tendências denotam uma nova fase da sociedade ou não. Seria essa mais uma etapa do “inevitável” progresso, no qual a racionalidade moderna estaria ainda preso? Ou se tratade fase de inovação, de nova racionalidade que pretende vincular o desenvolvimento à natureza pela simples constatação de que o homem está dependente dela?
A crise ambiental, portanto, gera críticas ao desenvolvimentismo e seus limites. Fato é que o sistema vigente de produção de bens de consumo necessita ser analisado de forma crítica, a partir de valores superiores ao mero consumismo. Espera-se a superação da noção de que o ser humano deve produzir eficientemente e consumir vorazmente, vez que nesse binômio, segundo Kant, a dignidade pessoal e autônoma de ser humano é perdida (Kant, 2001).
Percebe-se uma urgência em se vincular a racionalidade técnico-científica a uma racionalidade ética, não apenas por ser uma dimensão essencial da ação humana, mas também por ser a natureza em si um valor e um sujeito de valores. Não se trata de retrocesso, e sim de progresso necessário na racionalização da sociedade. As práticas cientificam não podem ser constituídas sem que estejam incluídas numa lógica ética.
Por fim, tanto na ecologia profunda, quanto no biocentrismo e no antropocentrismo, ética ambiental se propõe a formar uma consciência ambiental mais atenta às formas de ação humana em relação à natureza e, possibilitar com que essa conscientização seja capaz de limitar condutas agressoras. Ainda mais além, se propõe a libertar o ser humano de regras de condutas estabelecidas por concepções que o prendem a uma lógica de produção e consumo. Pretende, dessa forma, uma liberdade de escolha ética, que baseada numa consciência preservacionista, permita avaliar condutas a partir das informações fornecidas pela ciência. Essa lógica vale para cada indivíduo, em qualquer parte, assim como para as grandes corporações, produtores de tecnologia e impactos ambientais.
Portanto, não se trata de cessar o progresso ou de estacar os avanços tecnológicos. O que a ética ambiental se propõe é alertar que uma visão acrítica desses fenômenos pode ser fatal ao futuro da humanidade. Não existe, portanto, no caminho para o progresso, condutas ou decisões inevitáveis. A ética permite que se avalie criticamente o meio em que se vive e a forma como as decisões são tomadas.
Informações Sobre o Autor
Anatercia Rovani
Doutoranda em Direito na Universidade de Milão – Itália – Renato Treves International Ph. D. Programme in Law and Society. Mestre em Direito pelo Instituto Internacional de Sociologia Jurídica, Oñati, Universidade do País Basco, Espanha. Graduação em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Advogada especialista em Direito Público (ESMAFE-RS).