A normatização da conduta
humana
A
conduta humana é estudada em várias áreas, mas a normatização
dessa conduta é objeto específico de três áreas de conhecimento, a saber:
a)
Direito;
b)
Ética;
c)
Teologia Moral.
A
última mencionada acima, no entanto, não se presta a maiores discussões acerca
de seus enunciados e conclusões, pois que encontra barreiras intransponíveis à
argumentação quando se chega ao âmbito dogmático do divino.
Por
outro lado, Ética e Direito apresentam grande similitude, seja em seu objeto de
estudo, seja em seus objetivos.
Ética e Direito
O
que diferencia uma discussão jurídica da conduta de uma discussão filosófica (ética)
desta não é o seu conteúdo ou essência, mas sim a forma pela qual
os assuntos são abordados. A discussão filosófica é mais abstrata e a
jurídica mais concreta.
Numa
abordagem ética se analisa o ente sem que este esteja associado a qualquer caso
concreto. Por exemplo, estuda-se “o aborto”. Ora, “o aborto”
não existe como coisa em si, separado de uma circunstância fática. A discussão
ocorre, portanto, somente no campo das idéias e abstrações.
Já
no Direito são estudados casos concretos, são analisados fatos. Usando o mesmo
exemplo do aborto, não se pensará este de forma ideal, mas somente vinculado a
um acontecimento real, no mundo concreto e palpável.
O
comportamento humano tem certamente algum conteúdo genético ou instintivo, tal
qual ocorre com os demais animais. Mas o seu ajustamento à ordem social é
preponderantemente de natureza moral. 1
Tanto
os preceitos morais como legais têm por escopo “assegurar a sobrevivência
e a prosperidade do grupo”.2 Não obstante, entre as discussões filosóficas
e as jurídicas sobre a conduta humana, constata-se um fracasso da primeira e um
razoável sucesso da segunda. 3 Diz-se sucesso da discussão jurídica não porque esta possa
ser tida como mais eficaz no controle e normatização
do agir humano, pois que há normas morais que superam qualquer força coativa
legal. Na realidade, constata-se um fracasso da parte da Ética no sentido de
conseguir estabelecer uma base sólida, um conjunto de preceitos válidos do que
venha a ser definitivamente estabelecido e aceito. Enquanto que no campo
jurídico existem normas postas a respeito dos mais diversos assuntos.
Este
relativo sucesso do Direito em estabelecer bases sólidas a seus preceitos,
sinalizado por Montoya, no entanto,
apresenta-se meramente aparente, sofrendo na verdade, desde a gênese das
normas até sua aplicação efetiva, dos mesmos limites, influências e alterações
a que está submetida a Ética.
O
fato de que no Direito se pode vislumbrar um corpo ou um organismo de normas,
não quer dizer que estas ofereçam qualquer segurança quanto à verdade de seu
conteúdo ou à justiça de sua aplicação.
Desde
antanho Aristóteles já alertava sobre a distinção entre a eqüidade e a justiça,
aproximando esta da legalidade e apresentando a anterior como um corretivo
necessário:
“O
que faz surgir o problema é que o eqüitativo é justo, porém não o legalmente
justo, e sim uma correção da justiça legal. A razão disto é que toda lei é
universal, mas a respeito de certas coisas não é possível fazer uma afirmação
universal que seja correta.” 4 Frise-se: essa afirmação universal sobre certas coisas não é
viável igualmente na Ética como no Direito.
O
Direito não se reduz à norma, embora seja esta um útil instrumental para sua
fixação e materialização. Esta materialização, principalmente na tradição do Direito
escrito, é que empresta ao mesmo uma falsa aparência de estabilidade que
claramente inexiste na Ética.
Contudo,
a norma é apenas uma face do Direito e até sua gênese é
influenciadas por fatores outros muitos dos quais têm um conteúdo ético. A
Ética, os valores, as relações sociais, informam o conteúdo do Direito em seu
nascimento e posteriormente seguem influenciando-o em sua interpretação e
aplicação. 5
Portanto,
se a filosofia tem problemas em universalizar conceitos éticos, o Direito
padece dos mesmo males, eventualmente apresentando
ilusórias soluções informadas pela mesma perplexidade do mundo ético. É que o
Direito, como atuante na vida prática, na solução de problemas concretos
e presentes, tem a necessidade de respostas imediatas,
ainda que eventualmente falhas, razão pela qual aparenta ( e só aparenta )
maior segurança. 6
Se
o Direito, enquanto norma (que é o aspecto que lhe dá o ilusório caráter de
segurança) é informado por conceitos basicamente éticos que o antecedem e
o perseguem continuamente, não se pode considerar
válido um raciocínio que atribua maior perfeição ao elemento dependente e menor
ao principal. Ora, se o principal é falho, aquilo que dele depende ou deriva
não pode ser perfeito ou melhor, antes deve
compartilhar de sua mesma imperfeição.
Ética e Moral
As
moralidades ou preceitos morais têm existido desde o surgimento das sociedades
humanas, enquanto que a Ética surgiu bem mais tarde no período grego. Segundo Montoya ,
por moral deve ser entendido o termo genérico que designa o conjunto das
moralidades históricas, os preceitos morais. Por Ética, deve-se entender de
outra banda, a reflexão filosófica sobre as moralidades, pretendendo
depurá-las, racionalizá-las, transformá-las em um código válido para qualquer
homem, em suma, universalizá-las. 7
Nesse
contexto, a Ética tem se desenvolvido sob diferenças perspectivas:
a)
Eudemonismo:
Buscando
o sumo bem como aquele que não depende de outro, mas o constitui em si mesmo,
encontra-se como resposta a felicidade. Na dicção de Aristóteles:
“absolutamente perfeito é aquele fim querido sempre por si mesmo e nunca
por outro. Tal parece ser mais do que qualquer coisa a felicidade: a esta, de fato,
queremo-la sempre por si mesma e nunca por outra coisa.” 8
O
homem deve buscar a felicidade e esta só é possível pela prática da virtude.
b)
Contratualismo:
Concentra
a moral nos atos tendentes ao estabelecimento da igualdade entre os homens,
consubstanciada na eqüidade. Para isso, pressupõe-se a associação humana em um
acordo ou contrato entre iguais, colimando estabelecer uma convivência
harmônica e equilibrada. 9
c)
Utilitarismo:
Valoriza
por seu turno a “solidariedade”, devendo então os atos humanos serem pautados pelos seus resultados em termos de felicidade
produzida, não como uma mera realização pessoal, mas a felicidade que se pode
produzir aos outros.
d)
Pluralismo:
Considerando
um ecletismo das teorias anteriormente citadas, conclui-se que as moralidades
cumprem funções diversas como: proporcionar ao indivíduo um modelo de
comportamento; assegurar por meio da reciprocidade um equilíbrio dos membros do
grupo e ainda, garantir o cuidado de todos, inclusive os mais débeis, para
assegurar a coesão social. 10
Efetivamente
a resposta pluralista apresenta-se bastante coerente, pois a uma questão
multifária e complexa não se pode dar uma solução unitária e simples.
E
na realidade, as incursões éticas não são por natureza
isoladas. Ao contrário, podem ser tomadas de maneira
complementar e interpenetrante. Apenas para
ilustrar podemos anotar que o eudemonismo que se
volta à busca da felicidade baseia-se na prática da virtude, e a felicidade
virtuosa não pode ser egoísta ao ponto de olvidar a solidariedade com os mais
débeis ( utilitarismo ) e nem conformar-se com a
desigualdade injusta ( contratualismo ). De outro
lado, tanto o contratualismo como o
utilitarismo visam em última instância a harmonia social que só pode
pretender produzir a felicidade dos indivíduos.
Um
exemplo bastante palpável dessa complementariedade
entre as perspectivas éticas é a atual situação conflitiva
entre as elites e as massas brasileiras. Certamente a busca da felicidade
apartada, desconsiderando a necessária igualdade e, especialmente, a solidariedade,
só pode conduzir a um contínuo conflito que resulta na violência incontrolada
característica de nossa sociedade, e em reações que não visam a real solução
desses conflitos, mas têm por trás uma tendência belicosa e genocida.
A
tendência das massas é a revolta, ao passo que a das elites é a de fecharem-se,
isolarem-se num mundo próprio.
Ao
reverso de preocuparem-se em solidarizarem-se com as massas, as elites
abandonaram-nas cada vez mais, inclusive reduzindo a assistência do Estado que
praticamente monopolizam.
A
indiferença pelo destino dos menos afortunados é o característico das elites
brasileiras, que ao criarem seus próprios meios de assistência ( v.g. segurança privada, educação particular, saúde
privada, etc. ), não mais se interessam pelos serviços básicos a serem
ofertados pelo Estado à população. Este é o enfoque de Maria Rita Khel ao asseverar que “não existe respeito pela coisa
pública no Brasil. A elite se apropria do espaço público como se fosse seu
quintal. Como se aqui não existisse demarcação entre o público e o privado, mas
sim entre o ‘vantajoso’ e o ‘custoso’. Do vantajoso a elite se apropria ( … ). O custoso, o pouco vantajoso fica por conta do
Estado, suposto mantenedor dos interesses públicos. Mas como as elites vão se
apropriando também do Estado como coisa sua, vemos nesse momento dito neo – liberal, que o próprio Estado vai se desobrigando de
garantir à população alguns direitos básicos – saúde, educação, transportes,
moradia – cujo custo não corresponde à geração imediata de benefícios. O Estado
brasileiro vem negligenciando responsabilidades em áreas em que o investimento
deve forçosamente ser maior do que o retorno…”. 11
Chega-se,
na falta de um pluralismo, à absurda negação do “outro” como um igual. E de situações absurdas só se pode chegar ao caos.
Com efeito, “não se vêem mais pessoas. Vêem-se carentes, favelados,
ladrões, menores, delinqüentes, criminosos, bandidos, viciados.” 12
A
indiferença, um “eudemonismo
egoísta”, não são admissíveis como posturas eticamente corretas, não
sendo sem razão que Dante ao penetrar no inferno depara-se logo de início com
os indiferentes. 13
A utopia de uma Ética universal e o Direito
A
Ética perfeita certamente existe, mas por lógica não pode ser alcançada pela
humanidade, pois que esta é imperfeita. O máximo que se consegue é, aos poucos,
ir-se descobrindo essa Ética. Aqui, o papel do pluralismo também é de destaque,
porque permite uma abordagem ilimitada e multifacetária.
Com
essa constatação Montoya 14 critica a Ética em relação ao Direito, considerando que
este já se organizou e tem um conjunto cognoscível, enquanto a primeira nunca
pode chegar a termo.
Linhas passadas já foi
demonstrada a ilusão que consiste essa conclusão e agora considera-se de
importância a análise de uma polêmica jurídica atual no Brasil, a qual deixa
patente que Ética e Direito são “faces da mesma moeda”, portadoras
das mesmas potencialidades e limites.
O
tema aventado é o da chamada “delação premiada”, ora prevista em
nosso ordenamento por força de disposições legais em diplomas variados ( Lei 8072/90, Lei 9034/95, Lei 9269/96 e Lei 9807/99 ).
Trata-se
da possibilidade do co – autor de crimes ser agraciado com a redução de sua pena ou mesmo perdão
judicial, desde que preste efetiva colaboração à Justiça no deslinde do crime e
apuração da autoria dos demais infratores.
Este
novo instituto é legalmente estabelecido nos diplomas antes mencionados,
importado do Direito Norte – Americano ( “Plea Bargain” ) e Italiano (
Pentitismo ). 15
Nem por isso podemos dizer que haja consenso sobre o assunto ou mesmo que se
tenha um conjunto cognoscível e definitivo juridicamente falando sobre o tema.
O
fato de se poder conhecer ante mera leitura o teor da
lei não atribui ao Direito qualquer vantagem sobre a Ética.
Preceitos
morais ou éticos também existem que podem ser tidos como definitivamente
estabelecidos no sentido de seu conhecimento por todos, embora não reduzidos a
normas escritas.
Somente
uma visão fortemente formalista do Direito levaria à conclusão de que este é
mais cognoscível só porque é posto por normas que têm a pretensão de
serem estáveis e consensuais. Alice Bianchini destaca exatamente que “os
formalistas ( … ) relevam a segurança jurídica,
enquanto que, para os realistas, a tônica se insere na eqüidade”.16
Especialmente
no tema ora enfocado ( “delação premiada”
) pode-se constatar essa quase “promiscuidade” entre a Ética e
o Direito.
Será
possível aos juristas comentar este instituto sem recorrer a argumentos éticos?
Será possível ao operador do Direito interpretar e aplicar tal lei sem
questionamentos basilarmente éticos? E mais claro ainda: Terá o legislador ao
abrigar na sua obra o instituto, feito isso sem deparar-se com um conflito
ético?
A
discussão doutrinária e jurisprudencial do assunto certamente gravitará em
torno do conflito entre uma visão pragmática e outra visão ética do Direito.
Para uns o que importa são os resultados alcançáveis
com a colaboração premiada. Para outros, ela seria algo abominável como uma
contradição interna no sistema, que incentivaria condutas reprováveis como a
delação e a traição, mal quistas até mesmo entre os mais celerados dos homens.
Falamos
de Direito e concomitantemente de moral ( delação,
traição, etc. ), não sendo aceitável sua separação nítida, mas sim constatável
uma constante zona de interseção.
A
lei posta não oferece a segurança e muito menos o conhecimento do Direito. Sua
aplicação, por exemplo, é pouco previsível, pois agregar-se-ão
em sua interpretação elementos extra – jurídicos que exercerão indubitável
influência. 17 E não se oponha a
isto a máxima “in claris cessat
interpretatio”, pois que seus defensores
“confundem a essência da interpretação com a ‘dificuldade’ ou amplitude da
mesma: nas disposições claras o trabalho é menor, mas existe sempre. É
ele que dá vida ao texto morto, ilumina a fórmula rígida.” 18
Mas
não é só a interpretação ou aplicação da lei posta que é duvidosa. Sua
correção, sua justiça, não são garantidas pela
positivação e, portanto, a existência de normas postas não garante a existência
de um Direito definitivo e muito menos universal. O exemplo do instituto sobre
a delação premiada é apenas um dentre muitos, mas igualmente poder-se- ia falar da tortura que já foi legalmente reconhecida e
que hoje é igualmente proibida nas legislações a exemplo da nossa Lei 9455/97 e
mundialmente mediante diversos tratados internacionais sobre Direitos Humanos.
O
caso da delação premiada foi escolhido aqui exatamente por ser um dos que
melhor retrata a relação entre a Ética e o Direito desde a formulação da norma
até sua atuação concreta, revelando claramente sua absoluta proximidade, seja
em capacidades, seja em limitações.
Conclusões
A
verdadeira e robusta diferenciação entre Ética e Direito está
então nos seus respectivos direcionamentos. A primeira operando no campo
abstrato e o segundo no campo concreto, solucionando conflitos e situações de
fato. Na obtenção de normatização da conduta humana,
porém, ambos encontram as mesmas dificuldades para uma formulação definitiva e
universal.
Bibliografia
1
– ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia em forma de narrativa. Rio de
Janeiro: Ediouro, 1999.
2
– ARISTÓTELES. Ética a Nicômano. São Paulo:
Abril Cultural, 1973.
3
– ARISTÓTELES. A Ética. Rio de Janeiro: Ediouro,
1985.
4
– BIANCHINI, Alice. Aspectos subjetivos da sentença penal. Revista
Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: n. 22, ano 6, 37-49, Abr./Jun.
1998.
5
– BRASIL. Decreto – Lei 4657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao
Código Civil Brasileiro.
6
– KHEL, Maria Rita. Do narcisismo das elites ao narcisismo das massas. Revista
Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: n. 16, ano 4, 320-325,
Out./Dez. 1996.
7
– MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de
Janeiro: Forense, 1999.
8
– MELLO, Silvia Leser. A cidade, a violência e a
mídia. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: n. 21, ano
6, 189-195, Jan./Mar. 1998.
9
– REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª ed. São
Paulo: Saraiva, 1994.
10 – ROUSSEAU, Jean Jacques. O
Contrato Social. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
11 – SAÉNZ, José Montoya. Introducción a
algunos problemas de la historia de la etica. Universidade
de Valencia, Espanha: manuscrito, 1998.
Notas
1 José Montoya SÁENZ, Introducción a algunos problemas de la
historia de la etica, p.3.
2 Ibid., p. 5.
3 Ibid., passim.
4 ARISTÓTELES, Ética
a Nicômano, p. 336.
5
Miguel
REALE, Teoria Tridimensional do Direito, passim.
6 Não é
sem razão que o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil
Brasileiro estabelece que em caso de lacuna legal o juiz não se exime de
decidir, mas deve fazê-lo com base na “analogia, costumes e princípios
gerais de direito”.
7 Ibid., p. 6.
8 ARISTÓTELES, A Ética, p. 39.
9 Jean Jacques ROUSSEAU, O Contrato Social, passim.
10 José Montoya SAÉNZ, Introducción a algunos problemas de la
historia de la etica, p. 30.
11 Do narcisismo das
elites ao narcisismo das massas. Revista Brasileira de Ciências Criminais,
16/ 322-323.
12
Silvia Leser de MELLO, A cidade, a violência e a mídia,
Revista Brasileira de Ciências Criminais, 21/194.
13
Dante ALIGHIERI, A Divina Comédia, p. 12.
14 Ibid.
15 Décio Luiz Alonso
GOMES, Proteção aos réus colaboradores ( Ou da
barganha com a criminalidade ), Boletim IBCCrim,
82/12.
16 Aspectos subjetivos
da sentença penal, Revista Brasileira de Ciências Criminais, , 22/38.
17 Ibid., passim.
18 Carlos
MAXIMILIANO, Hermenêutica e Aplicação do Direito, p. 37-38.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.