Execução penal cárcere-temerária

Resumo: Estava eu, na condição de Delegado de Polícia, dirigindo-me a um estabelecimento de execução penal tido como modelo no Estado do Rio Grande do Sul. Iria tomar a oitiva de um detento. Do lado de dentro, refeições maravilhosas, suco natural, tudo consoante responsável fiscalização da Nutricionista competente. Almocei por lá. No meio da tarde, apetitoso cheirinho de pão quente, feito na padaria interna do estabelecimento prisional, anunciava o vindouro café. Psicólogas, dentistas e nutricionistas conversavam em suas salas à espera de eventuais detentos para submissão a consultas. Uma alegre quadra de futebol aguardava a hora de se iniciar o entretenimento com a bola. Era tudo aquilo, sim, um paraíso para muitos que passavam fome e carências múltiplas do lado de fora do estabelecimento prisional. Ao sair de lá, chamou-me a atenção algo que vi na vila que ficava ao lado daquele presídio. Tratava-se de crianças de tenra idade com suas barriguinhas vultosas de verminose. Ajudavam seus honestos pais empilhando os papelões que eles haviam recolhido das lixeiras daquela Cidade. Refleti: se a sociedade não quer um sistema prisional que imponha martírio e sofrimento desumanos aos detentos, também não quer, certamente, um sistema paradisíaco como aquele. A ressocialização almejada pelo nosso Sistema Carcerário não se faz por meio de calabouços, mas tampouco por meio de spas. Assim, no status social presente, e em consonância com o atual entendimento do STF, como se verá adiante neste singelo escrito, vê-se a substituição das penas privativas de liberdade, sempre que possível, como a única estratégia sensata a ser seguida.    


Palavras-chave: Sistema Carcerário; Efeitos Negativos; Execução Penal; Simbologia.


Sumário: Introdução; 1. 2. Sistema Carcerário de Efeitos Negativos; A Simbologia da Lei de Execução Penal; Considerações finais


Introdução


Impossível não se iniciar um breve diálogo atinente ao hodierno estágio do “Sistema Carcerário” brasileiro sem se chamar a atenção do leitor para uma premissa óbvia e elementar: ele não funciona!


Não se quer dizer com isso que o “Sistema de Execução Penal” não funcione. É claro que, na medida do possível, ele ultima com êxito aceitável o seu essencial papel no meio social, ocasião em que sem ele a pena, como de resto todo o sistema penal, não faria o menor sentido em existir. O que se quer dizer, isto sim, é que o Sistema Carcerário não atinge, nem de longe, seus objetivos incrustados na Lei, salvo raras exceções onde o trancafiamento do delinquente acaba sendo a única alternativa possível, afastando-se o contumaz e incorrigível indivíduo de alta periculosidade do convívio social.   


 Ciente e convencido disso, aliás, o Supremo Tribunal Federal, recentemente, manifestou-se, no HC 97256, como se verá adiante, pela possibilidade de se rechaçar a pena privativa de liberdade a certos traficantes, diríamos assim, de “menor potencial ofensivo”.[1] Sabedores que somos disso, devemos compreender aqueles sábios juízes os quais costumam evitar, tanto quanto possível, o envio ao cárcere de sujeitos condenados, substituindo suas penas por medidas alternativas, mais proveitosas à sociedade e, somente assim, de caráter verdadeiramente ressocializante. 


Sistema Carcerário de Efeitos Negativos


O sistema carcerário brasileiro é mundialmente conhecido pelos seus efeitos negativos.


Se fora criado, com o intuito de reverter a ascendência das infrações penais, culminou não a impedindo, senão a instigando ainda mais. Referido fenômeno multiplicador decorre do contato entre os apenados e suas consequentes absorções osmóticas de novas tendências criminalizantes, premidos que se encontram eles em celas as quais nos evocam os antigos calabouços medievais de outrora.


A gama de reincidência dos egressos e mesmo daqueles que usufruem dos regimes aberto e semiaberto é imensa, ainda que tão-somente falando-se da que se vê dos dados estatísticos oriundos de novas condenações. Cogitar-se acerca da imensurável gama de reincidência que integra a chamada cifra negra[2], culminar-se-ia em vultosa elevação dos dados estatísticos, frente a inexistentes prisões em flagrante, indiciamentos e consequentes condenações de novas práticas delitivas ultimadas por egressos e mesmo por apenados que usufruem de regimes distintos da reclusão.


Dita realidade suso sedimenta e consolida a convicção acerca dos efeitos nefastos do sistema prisional brasileiro hodierno, configurando-se ele como um verdadeiro mecanismo de proliferação da criminalidade.


A prisão, efetivamente, estigmatiza eternamente o detento, pouco ou nenhum efeito surtindo campanhas publicitárias que procuram incentivar a empregabilidade de egressos.


A par dessa situação caótica, ainda, e como se não bastasse, significativa parcela de autoridades com labor direto no Sistema Penal, sobrepondo a vaidade ao interesse público, mostrando-se sedentos pelo glamour, fascínio e charme proporcionado pelos holofotes midiáticos, promovem prisões temporárias e/ou preventivas de investigados as quais, de forma patente e hialina, veem-se como insustentáveis de se manter no decurso da persecutio criminis; sem se falar na pouca probabilidade de uma condenação serena ao término do processo e da cristalina desnecessidade de medidas naturalmente tão drásticas, o que, somando-se tudo isso, vê-se desmistificado e consequentemente prejudicado o requisito da absoluta imprescindibilidade do encarceramento cautelar no processo penal brasileiro, banalizando-se sobremaneira o Sistema Penal como um todo.


A Simbologia da Lei de Execução Penal


Repleta de dispositivos inatingíveis no mundo real, vê-se a Lei 7.210/84[3], como verdadeira “legislação simbólica”. Este novel conceito atinente à simbologia de parte do nosso ordenamento jurídico comporta aspectos positivos e outros negativos, vendo-se isso claramente in casu.


Dentre os positivos, está a pacificação social que resulta da consciência coletiva de que os representantes do povo estão caminhando em direção ao rumo certo, tecendo regras e princípios que vão ao encontro da vontade popular. Efetivamente, não se poderia esperar, no seu aspecto formal, uma legislação de execução penal que não visasse à elegante ressocialização do condenado, embora isso pouco ocorra no mundo real.


Dentre os aspectos negativos, de outra banda, estampa-se aquele em que, frente a ordens legais inexequíveis, ao menos no atual estágio de evolução social, o legislador acaba mostrando-se um tanto cínico ao eleitor, o que, na insistência em se elaborar, reiteradamente, legislações de cunho simbólico, culmina-se na descrença demasiada e perigosa do eleitorado relativamente às suas forças públicas constituídas.


Posição do Supremo Tribunal Federal


Ciente, como não poderia deixar de ser, acerca da falência do sistema prisional brasileiro, o STF, em sintonia com a mais recente e acertada tendência dos juízes de pensamento modernista, vê, onde não se via antes, modos e maneiras criativas de se evitar a imposição de pena carcerária ao réu.


Em toda hipótese possível, assim, vale muito mais a substituição da pena privativa de liberdade ao despejo do condenado em calabouços impróprios à efetivação de uma mínima ressocialização, sem se falar no dispêndio e ferimento de morte que se leva a efeito ao erário em se optar pela valorização de um Sistema Carcerário obsoleto e falido.


Bem assim, no recentíssimo e louvável decisum referente ao HC 97.256,[4] o STF reconheceu a novel possibilidade de substituição da pena privativa da liberdade em hipótese específica e inaugural, a despeito do que rezasse a interpretação gramatical pura do art. 44[5] da Lei 11.343/2006.[6]


Considerações finais


A pena, como todos sabem, comporta finalidade retributiva e preventiva. A primeira visa a devolver, de certa forma, ao infrator, o mal que ele fez à sociedade. A segunda comporta dois aspectos, um geral e outro especial. O primeiro visa ao desestímulo de potenciais infratores; o segundo dirige-se à recuperação do condenado, ressocializando-o, a fim de que não mais volte a delinquir.


No que tange ao aspecto “preventivo especial”, mostrou-se a pena privativa de liberdade, até o momento, absolutamente inoperante e, em verdade, criminógena[7].


Dessa arte toda, para infrações que não demonstrem, pela sua natureza e/ou pelas condições do caso concreto, periculosidade tamanha do seu agente que venha a o incompatibilizar sobremaneira com o convívio social, indiscutível mostra-se que a pena alternativa é instrumentação viável e possível para o alcance da tão almejada ressocialização do delinquente.  


 


Notas:

[1]É princípio universal dispensar-se tratamento distinto àqueles que se encontram em situações distintas. Dessa arte, não faz o menor sentido limitar-se o juiz a aplicar pena privativa de liberdade ao traficante que atua pessoalmente nas esquinas das nossas cidades e que aufere com isso alguns trocados, sem poder substituí-la, e, ao mesmo tempo, aplicar idêntica espécie de pena, qual seja, a privativa de liberdade, limitada ela, tão somente, a um máximo em abstrato a que normalmente nunca se chega, àquele traficante que já logrou êxito em fixar seu nome nos anais da imprensa nacional como gestor de grande sucesso no gerenciamento de imensas redes de tráfico as quais se alastraram e consolidaram-se pelo País.

[2]JOÃO MARCELLO DE ARAÚJO JÚNIOR (1996: 245) diz que “Denomina-se ‘cifra negra’, chiffre noir ou dark namber da criminalidade, a diferença entre o número total de crimes cometidos em um determinado período e a criminalidade oficialmente detectada por meio das estatísticas policiais e judiciais”.

[3] LEI Nº 7.210, DE 11 DE JULHO DE 1984. 

[4] O Tribunal, por maioria, concedeu parcialmente habeas corpus e declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade da expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, constante do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, e da expressão “vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos”, contida no aludido art. 44 do mesmo diploma legal. Tratava-se, na espécie, de writ, afetado ao Pleno pela 1ª Turma, em que condenado à pena de 1 ano e 8 meses de reclusão pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes (Lei 11.343/2006, art. 33, § 4º) questionava a constitucionalidade da vedação abstrata da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos disposta no art. 44 da citada Lei de Drogas (“Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.”). Sustentava a impetração que a proibição, nas hipóteses de tráfico de entorpecentes, da substituição pretendida ofenderia as garantias da individualização da pena (CF, art. 5º, XLVI), bem como aquelas constantes dos incisos XXXV e LIV do mesmo preceito constitucional — v. Informativos 560, 579 e 597. Esclareceu-se, na presente assentada, que a ordem seria concedida não para assegurar ao paciente a imediata e requerida convolação, mas para remover o obstáculo da Lei 11.343/2006, devolvendo ao juiz da execução a tarefa de auferir o preenchimento de condições objetivas e subjetivas. Vencidos os Ministros Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Ellen Gracie e Marco Aurélio que indeferiam o habeas corpus. HC 97256/RS, rel. Min. Ayres Britto, 1º.9.2010. (HC-97256) – Informativo 598. 

[5] Art. 44.  Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.

Parágrafo único.  Nos crimes previstos no caput deste artigo, dar-se-á o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, vedada sua concessão ao reincidente específico.  

[6] LEI Nº 11.343, DE 23 DE AGOSTO DE 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. 

[7] Interessante observar que esse vocábulo já era utilizado em matéria de regulamentação de assuntos penitenciários na década de 60, mais especificamente, a título de exemplo, no Decreto nº 42.446, de 9 de setembro de 1963, de São Paulo, que aprovou o Regulamento do Departamento dos Institutos Penais daquele Estado e deu outras providências, quando, no seu art. 39, I, “a”, ao falar sobre a psico-sociologia criminal, rezou que ao encarregado do setor de psicologia competia “pesquisar os fatores psicológicos criminógenos adquiridos através do desenvolvimento da personalidade do delinquente” 


Informações Sobre o Autor

Roger Spode Brutti

Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito (UMSA). Mestre em Integração Latino-Americana (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos (FADISMA)


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