A internet entendida como o grupo de
conexões de computadores representado pelo World Wide Web (www)
surgiu de maneira abrupta e tomou conta das práticas cotidianas, gerando uma
série de perplexidades, inclusive no âmbito jurídico,
principalmente vinculadas à segurança, privacidade, comércio,
criminalidade e direito de família (relacionamentos afetivos virtuais). No
campo dos relacionamentos afetivos a internet possibilitou a utilização do
véu-virtual, rompendo com a necessidade antes inafastável
do contato físico. A interatividade absoluta com a utilização de vídeo,
internet, tela interativa (inclusive pelo toque), dentre outros, construiu a
realidade virtual que nos cerca por toda parte. Postado defronte do terminal de
computador mergulha-se numa realidade diversa, na qual não há mais separação
entre o ator, a platéia e o palco: tudo se confunde,
nada/tudo existe. Os papéis não são mais individuais. Estamos todos juntos e
separados ao mesmo tempo: formamos o paradoxo virtual da convivência imediata e
do isolamento eterno. A frieza dos contatos mantidos somente por
aparelhos/próteses cibernéticas afasta, sonega, simula,
o calor humano. Perde-se a referência de quem é o outro! A vertigem do
simulacro é plena. Não se sabe o que é real ou virtual. Chega-se a ser o outro
de ninguém: da máquina, desse avanço tecnológico performático desconectado de
qualquer alteridade. De sorte que, se sentindo relativamente seguro, o
indivíduo está coberto pelo véu-virtual e livre para fazer voar sua imaginação,
seus sentimentos irrealizáveis no mundo fático, servindo como fuga da
realidade, dando condições/ânimo (em muitos casos) para carregar o mundo real.
Apimenta o dia-a-dia; dá o molho à realidade. Suborna o prazer com carícias queridas-e-não-queridas advindas de alguém que não sei (nem
quero) saber quem é e que preenche algo que não-sei-o-que-é
(nem quero saber). Essa é a situação dos navegantes do espaço virtual, tal qual
o homem da vida, rompendo os interditos movido pelo desejo.
Realizar suas vontades/desejos, (re)descobrir
a sedução: sentir-se mulher; sentir-se homem. O desejo se
mantêm na falta/necessidade do sujeito: no devir da sedução. Aquela
sedução aniquilada no relacionamento rotinizado/estabilizado
(re)surge com todo o vigor
no mundo virtual, com seu complexo jogo de signos. No que se refere ao
relacionamento virtual em si, pode-se apontar 4 (quatro) estágios/fases, sem
que sejam absolutas. 1a Fase: Chats ou
sites de relacionamentos pessoas. Nesta primeira etapa existe apenas um
sujeito: o eu. Esse eu começa a navegar na web sem
maiores preocupações nem objetivos específicos. A motivação interna vai desde a
curiosidade até ausência afetivo-sentimental, como as verificáveis no filme
Mensagem para Você. Nestas ocasiões, quer em chats ou
mesmo em sites de relacionamentos pessoais, acontece (via de regra) o primeiro
contato motivado por qualquer razão ou pretexto; um nickname
que agrada, um nome, um filme, uma música, o
acaso/destino: as motivações são inexplicáveis/aleatórias. Nos chats após o primeiro contato normalmente se passa para o
“reservado” e a conversa flui naturalmente. Havendo uma certa
interação e interesse recíproco pode-se passar para a segunda fase: e-mail, ICQ
etc. No caso de troca de e-mails com a resposta do contactado
já se adentra na segunda fase. 2a Fase: E-mail, ICQ, dentre
outros: Após estabelecido o primeiro contato,
passa-se a etapa um pouco mais pessoal, estabelecida ainda sobre a regra de não
ser muito específico nas informações, no qual as pessoas trocam impressões
pessoais sobre assuntos, se conhecem melhor, buscam saber mais de si e do
outro. Como num namoro, o jogo de sedução, de impressionamento e surpresas está acontecendo com um
detalhe muito importante: o eu pode desaparecer a qualquer momento. Em suma,
nesta fase/etapa, busca-se conhecer – com as limitações próprias – o outro,
demonstrando-se aquilo que se é ou se quer ser. É verdade, de outra face, que
nem todos querem contatos físicos. Muitos querem apenas uma fuga da realidade,
sem necessariamente pretender consumar algo físico-sexual. Permanecem nesse
estágio pelos mais variados motivos. Passa-se a ter o amor platônico perfeito
eterno: o simulacro: a ilusão gostosa. 3a Fase: Contato pessoal: A
terceira etapa se constitui na apresentação real, por meio de encontros.
Normalmente isso acontece depois de muita conversa e interação entre os
parceiros virtuais. Avançando-se para o contato pessoal desnudando-se do
véu-virtual, abrem-se as possibilidades de interação pessoal. 4a Fase:
Passagem para o contato físico: Nesta etapa a distância do virtual e do real é
superada e os amantes se entregam, finalmente, ao seu prazer físico. Buscado,
mas não querido, no paradoxo eterno dos relacionamentos afetivos. Com esta
etapa, as peculiaridades do nascedouro do relacionamento são superadas
pelo contato pessoal e dito normal, com as peculiaridades a ele inerentes.
As características passam a ser de um adultério ou namoro
verificados no contexto diário, com o seu nascedouro vinculado à internet.
A situação somente revela interesse jurídico (para efeito de separação) se pelo
menos um dos amantes for casado. Em face das regras e da ética do casamento,
exige-se dos cônjuges a conjugalização absoluta das
relações sexuais. Todavia o que era ótimo no namoro/noivado, com o tempo foi
ficando legal e, se não se cuidar, torna-se num casamento
banalizado/burocratizado. Neste contexto, a novidade, o devir, o jogo da
sedução: o(a) amante. A atração pelo novo, pela
sedução, pelo desejo: o rompimento com a repetição/rotina. A fuga do desgaste
natural dos relacionamentos.
No direito brasileiro a separação pode
se dar por três fundamentos. Das possibilidades jurídicas da separação, a única
que pode ser manejada é a hipótese de a separação com culpa, informadora do
Paradigma da Culpa. Nesta modalidade deve-se imputar ao cônjuge (réu) conduta
desonrosa ou grave violação dos deveres do casamento que torne insuportável a
vida em comum (Lei nº 6.515/77, art.5º). Tenho para
mim que ficar procurado culpados pela derrocada do
relacionamento no processo civil atual é no mínimo surreal. Reconhecidamente é
impossível reconstruir toda a história das partes, saber os momentos de
decepção, angústia, os sentimentos escamoteados, envergonhados, silenciosos,
que jamais aflorarão no processo civil: nunca se saberá o que aconteceu durante
todo o relacionamento, mas mesmo assim, o monopólio do Estado da jurisdição se
arvora em apontar, com a autoridade da coisa julgada, o culpado! No Paradigma
do Desamor as culpas são partilhadas a gosto dos cônjuges, sem que se preocupe
em apontar o culpado pelo fim do relacionamento. Será que alguém se acredita
totalmente inocente ao final de um relacionamento? Nunca fez qualquer ato ou
omissão capaz de gerar no companheiro/companheira uma desilusão, um dissabor,
uma frustação, uma mágoa sequer? Com essa compreensão,
nos processos judiciais de separação, longe de se buscar estabelecer as pechas
de culpado ou inocente, deve-se tão somente obter a resolução das questões
patrimoniais e monetárias, preocupadas com o devir dos cônjuges agora separados
e da prole eventualmente existente. Essa deve(ria) ser
a única preocupação do Estado-Juiz, abandonando-se aquela vinculação moral do
culpado pela bancarrota da união. No Paradigma do Desamor basta um não querer
viver junto e pronto. Reconhecida a densidade normativa dos Tratados
Internacionais de Direitos Humanos, acolhidos pelo ordenamento pátrio com
status constitucional (CF, art.5º, §2º), cumpre rejeitar, com vigor, o
Paradigma da Culpa, violador da dignidade da pessoa
humana em nome de uma difusa moral pessoal/social. Ante a conformação do Estado
Democrático de Direito (de viés Garantista), somente
se mostra compatível o Paradigma do Desamor que enseja a (busca da) felicidade
dos cônjuges, abjurando-se a culpa. Assim, a descoberta feita pelo cônjuge da
existência de um (ou vários) relacionamento(s) virtual(is)
compete somente a si: mais ninguém. Cotejando seus sentimentos, seu afeto e
após uma boa conversa a decisão da continuidade/ruptura do relacionamento não
precisa ser publicizada no processo judicial, com a
necessidade da comprovação: 1) da existência da infidelidade virtual; 2) a
conduta ser desonrosa; e c) tornar insuportável a vida
em comum. Nada
disso. Assumido o Paradigma do Desamor, basta a vontade deliberada de um não
querer mais viver junto para efeito da separação judicial, sendo absolutamente
inconstitucional (em face do princípio da dignidade da pessoa humana) a
necessidade da comprovação da existência da infidelidade virtual e a insuportabilidade da vida em comum. Esta nova
concepção de família pressupõe o respeito à liberdade e felicidade sentidas
exclusivamente por quem está vinvenciando a realidade
da união. Somente quem está convivendo pode saber se existe afeição e respeito
mútuo. São os titulares absolutos do direito de escolher sua felicidade: o mais
lídimo ato de liberdade!
Informações Sobre o Autor
Alexandre Rosa
Juiz de Direito, Professor da UNOESC/SMO e da Escola da Magistratura de SC
Autor do livro: Amante virtual: (In)conseqüências no Direito de Família e Penal