Falta de serviço

“Deve existir lei que limite a capacidade de amar?
Quem pode afirmar ou firmar este dogma?” (Paulo Duarte Lopes Angélico)

Nos últimos dias a mídia anunciou a intenção de um determinado
Deputado Federal pelo PRONA de elaborar uma lei que impeça o beijo entre
pessoas de mesmo sexo em público.

Tal atitude, além de demonstrar – como apregoam alguns – falta de
serviço do referido Deputado, demonstra, ainda, um retrógrado preconceito e
absoluta ignorância legal.

O preconceito fica caracterizado ao impedir a demonstração de amor
entre duas pessoas, apenas pelo fato de que estas pessoas possuem o mesmo sexo.

Duas pessoas de sexos distintos podem, perfeitamente, e sem qualquer
problema, se beijar em público, enquanto que, pela proposta do Deputado
desocupado, duas pessoas, simplesmente por possuírem um comportamento diferente
da maioria da população não podem fazer o mesmo, sob pena de contravenção
penal.

Este único fato já é suficiente para demonstrar o preconceito do
referido “representante da nação”, além de se configurar argumento suficiente
para configurar a inconstitucionalidade de tal dispositivo legal.

Apenas para reforçar a inconstitucionalidade de referida
intenção, cumpre assinalar que a Liberdade é um dos pilares da Constituição
Federal que, além de trazer a liberdade como objetivo fundamental da República
Federativa do Brasil, na tentativa de “construir uma sociedade livre” (artigo
3º, inciso I), traz ainda, em vários momentos a idéia de liberdade, como é por exemplo o caso do caput do artigo 5º que apresenta “aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito
[…] à liberdade”, ou, também é o caso da “livre manifestação do pensamento”
(artigo 5º, inciso IV), da “liberdade de consciência e de crença” e do “livre
exercício dos cultos religiosos” (artigo 5º, inciso VI), da “livre expressão da
atividade intelectual” (artigo 5º, inciso IX), do “livre exercício de qualquer
trabalho, ofício ou profissão” (artigo 5º, inciso XIII), da “livre locomoção no
território nacional” (artigo 5º, inciso XV), da “plena liberdade de associação
para fins lícitos” (artigo 5º, inciso XVII). Isto apenas para apresentar-se alguns exemplos, ficando, apenas, com alguns
direitos do artigo 5º. De modo que o impedimento de um beijo entre pessoas de
mesmo sexo é absolutamente incompatível com a Liberdade almejada para Carta
Magna brasileira.

Pode-se demonstrar ainda que, seria impossível a
aprovação de tal lei, mesmo através de Emenda Constitucional, uma vez que o
artigo 64, § 4º, inciso IV da CF/88 é claro ao afirmar que “não será objeto de
deliberação a proposta de emenda tendente a abolir […] os direitos e
garantias individuais”, dos quais, como já demonstrado, um deles é justamente a
liberdade individual que, frise-se, é absolutamente incompatível com a pretendida
proibição.

Tal preconceito revela-se retrógrado numa época onde, em todo o mundo,
surgem leis que, não só deixam de incriminar condutas homossexuais, como, muito
mais que isso, chegam a permitir o casamento entre
pessoas de mesmo sexo.

Este descompasso entre a medida e a realidade
social é sentido também aqui no Brasil, onde já existe um projeto de lei de
autoria da então Deputada Federal pelo estado de São Paulo, a atual prefeita
Marta Suplicy, PL 1.151/95 que visa, ao contrário do que pretende o infeliz
Deputado, regulamentar o que o projeto chama de “união civil de pessoas do
mesmo sexo”, e que já é combatido por parte da doutrina por ser atrasado (como,
por exemplo, faço em meu trabalho de conclusão de curso intitulado “A união homoafetiva no Direito brasileiro contemporâneo”).

Apenas para se reforçar tal argumento, cumpre assinalar que é bastante
comum a união fática de dois homossexuais, sendo inclusive de aceitação
popular, uma vez que no dia 10 de agosto de 2000, no programa
de televisão Você Decide, o público, de todo o país, votou a favor e um “casal”
de mulheres que desejavam dar à luz a uma criança, para constituírem uma
família – fato muito mais “atentatório ao pudor” que o simples beijo entre duas
pessoas de mesmo sexo – (o placar foi 63.649 votos contra, e 100.547 – 61,2% –
a favor), sendo, ainda que, no dia 17 de janeiro de 2002, no site do portal
Terra, até as 16 horas e 45 minutos, obteve-se uma aprovação de 82,78% (10.376
votos) a favor de que o filho da cantora Cássia Eller permanecesse com a
sua ex-companheira, Maria Eugênia. Fatos estes que evidenciam a abertura da
sociedade brasileira à união entre homossexuais.

Por outro lado, a ignorância legal fica demonstrada, além
da inconstitucionalidade da absurda lei por discriminação infundada, pelo
desconhecimento de que já existe lei capaz de punir a importunação ofensiva ao
pudor (artigo 61 do Decreto-Lei nº 3.688/41 – “Lei
das Contravenções Penais”), que, segundo definição legal consiste no ato de
“importunar alguém, em lugar público, ou acessível ao público, de modo ofensivo
ao pudor”, de tal sorte que, caso fosse o desejo dos Tribunais punir o beijo entre pessoas do mesmo sexo, isso seria
possível sem qualquer alteração legal, apenas dando uma definição
jurisprudencial de “pudor” de forma que este abrangesse o beijo entre pessoas
de mesmo sexo.

Porém, tal atitude nunca se concretizou, nem jamais se concretizará,
pois quem conhece a lei – como é o caso dos desembargadores e ministros – sabe
que não existe espaço para discriminação em um ordenamento jurídico.

Somente seria possível a punição de um beijo entre pessoas de mesmo
sexo se – e somente se – este beijo fosse um beijo tal que, se fosse praticado
por pessoas de sexo diferente também importasse em ofensa ao pudor.

Por outro lado, imagine-se o caso de um pai que dê um beijo em seu
filho (ou uma mãe que dê um beijo em sua filha), iriam ambos serem processados
por “beijo entre pessoas de mesmo sexo”? E aqui cumpre
assinalar, mais uma vez, que não existe espaço para discriminações em um
ordenamento jurídico, de forma que, admitindo-se o absurdo caso de tal lei
inoportuna vier a ser aprovada e, por igual preconceito dos membros do STF, ser
declarada constitucional, seria impossível processar os homossexuais e não se
processar igualmente o pai e filho (ou mãe e filha) que se beijassem em
público.

Vê-se assim, claramente, quão impensada e infeliz foi a declaração do Deputado em questão que, ao invés de se
preocupar com tantos outros assuntos de muito maior importância, pretende punir
uma demonstração de amor em um mundo que padece, justamente, por falta de amor.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Enéas Castilho Chiarini Júnior

 

Advogado em Pouso Alegre/MG, especialista em Direito Constitucional pelo IBDC (Inst. Bras. de Dir. Constitucional) em parceria com a FDSM (Fac. de Dir. Do Sul de Minas), capacitado para exercer as funções de Árbitro/Mediador pela SBDA (Soc. Bras. para Difusão da Mediação e Arbitragem), e membro, desde a fundação, do Quadro de Árbitros da CAMASUL (Câmara de Mediação e Arbitragem do Sul de Minas), é, ainda, autor de diversas matérias jurídicas publicadas em revistas do Brasil e do exterior, e em diversos sites jurídicos.

 


 

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