Resumo: Comentários à nova Lei 13.104/15 – Feminicídio.
Oriunda da CPMI de Violência contra a Mulher no Brasil e do Projeto de Lei do Senado n. 292, de 2013, vem a lume a Lei 13.104, de 09 de março de 2015, que cria mais uma forma qualificada de homicídio no Código Penal Brasileiro, além de novas causas especiais de aumento de pena, bem como altera a redação da Lei 8072/80 (Lei dos Crimes Hediondos).
O atual trabalho consiste em uma atualização dos comentários feitos anteriormente ao Projeto de Lei do Senado supra mencionado, tendo em vista a edição da Lei 13.104/15 que, aliás, não corresponde exatamente ao projeto original.
O artigo 121, CP, que prevê o crime de homicídio, era até então dotado de seis parágrafos, sendo que o seu § 2º., I a V previa as qualificadoras que levavam a pena de reclusão do homicídio simples de 6 a 20 anos para 12 a 30 anos.
A legislação inovadora cria um inciso VI no § 2º., do artigo 121 e ainda um § 2º. – A para o fim de regular o que se convencionou chamar de “Feminicídio” e que configura uma nova forma qualificada de homicídio tendo por vítima mulher em situação da chamada “violência de gênero”. A pena cominada não difere das demais formas de homicídio qualificado, permanecendo nos limites da reclusão, de 12 a 30 anos. Não obstante, são criadas causas especiais de aumento de pena num novo § 7º, incisos I a III. Esses aumentos apresentam a possibilidade de variância de 1/3 até a metade e se referem aos seguintes casos:
I-vítima gestante ou nos 3 meses posteriores ao parto;
II-vítima menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência;
III-quando o Feminicídio ocorre na presença de descendente ou de ascendente da vítima.
Anote-se que esses aumentos são específicos para a figura do Feminicídio, não se estendendo para os demais casos de homicídio, ainda que qualificados.
Outra alteração é a inclusão do novo inciso VI do § 2º., do artigo 121, CP dentre as formas qualificadas de homicídio que são consideradas como crime hediondos, de acordo com a nova redação dada ao artigo 1º., I, da Lei 8.072/90 pelo artigo 2º. da Lei 13.104/15. Essa alteração é muito relevante porque, em caso de hipotético esquecimento do legislador ( o que, diga-se de passagem acontecia no projeto) certamente uma celeuma iria se criar. Alguns iriam defender a tese de que mesmo sem a alteração, tratando-se de nova modalidade de homicídio qualificado, por razoabilidade e isonomia, o crime deveria ser considerado hediondo. Outros, por seu turno, diriam que tal manobra seria impossível devido à flagrante violação do Princípio da Legalidade e utilização de analogia “in malam parten” no Direito Penal, já que não constaria do rol taxativo de crimes hediondos. Desse modo se pugnaria pela alteração urgente da Lei 8.072/90 e, enquanto isso, ter-se-ia de conviver com uma situação absurda, ou seja, um crime de homicídio qualificado que não seria hediondo. No entanto, o legislador não cometeu esse olvido na edição da Lei 13.104/15 e assim evitou qualquer discussão. O Feminicídio é, sem qualquer margem de dúvida, crime hediondo.
O PLS 292/13 apresentou na época uma “Justificação” que fazia referência à violência contra a mulher em todo o mundo e, especialmente no Brasil, apontando dados e estatísticas de órgãos internacionais como a ONU. O foco é principalmente a situação em que a morte é imposta à mulher em circunstância de violência doméstica e familiar, bem como a disseminada impunidade desses crimes.
Legislações semelhantes e com “nomen juris” também similares (v.g. “femicídio”, “assassinatos relacionados a gênero”, “violência feminicida”) são encontráveis em diplomas penais no México, Guatemala, Chile, El Salvador, Peru, Nicarágua e Argentina.
Segundo o texto de justificação do PLS 292/13, a primeira vez em que o termo “Feminicídio” foi utilizado foi nas Conclusões Acordadas da 57ª. Sessão da Comissão sobre o “Status” da Mulher da ONU, cujo texto foi aprovado em 15 de março de 2013. Logo em abril do mesmo ano vem a aprovação pela Comissão de Prevenção ao Crime e Justiça Criminal do Escritório da ONU para Drogas e Crime, um projeto de resolução contendo recomendação à Assembleia Geral da ONU e incentivando os países – membros a tomar providências quanto ao “Feminicídio”.
Nenhuma pessoa em sã consciência pode ser favorável ou sequer indiferente à prática de violência contra mulheres, pior ainda à prática de homicídio contra estas. Qualquer um que tenha uma mentalidade favorável ou indiferente a essas barbaridades somente pode ser classificado, sem peias, como alguma espécie de canalha ou psicopata. Essa conclusão não se altera se a vítima é um homem. A violência contra o ser humano (homem ou mulher), especialmente o homicídio, é inaceitável. Discute-se muito sobre a existência ou não de um conceito material de crime e o homicídio parece ser um exemplo inescapável de uma conduta criminosa não apenas convencionalmente, mas pela própria natureza, desde que se tome por base a necessidade humana de convívio social.
De acordo com a letra da lei e conforme o acima mencionado, o simples fato de ser uma mulher o sujeito passivo de um crime de homicídio não é suficiente para caracterizar o “Feminicídio”. Este somente estará configurado se essa forma “extrema de violência” contra a mulher, que a leva à morte, for perpetrada num contexto de “violência de gênero”. Portanto, tratar-se-ão de homicídios que ocorram em situações em que o agressor mate a mulher numa atitude de exercício de um suposto “direito de posse” ou de “domínio pleno” sobre a vítima. Perceba-se que a qualificadora do Feminicídio não é objetiva como pode parecer numa análise perfunctória. Não basta que a vítima seja mulher (fato objetivo), mas a isso deve aliar-se o dolo específico de que a morte tenha por motivação a violência de gênero, o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher. Dessa forma a qualificadora em estudo é de natureza subjetiva e, portanto, incompatível com o homicídio privilegiado (artigo 121, § 1º., CP) que prevê diminuições de pena todas elas de natureza também subjetiva. Ou seja, na figura do Feminicídio não é possível o reconhecimento do chamado “homicídio privilegiado – qualificado”, mas tão somente do homicídio qualificado.
Como aduz Cunha:
“A incidência da qualificadora reclama situação de violência praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de poder e submissão, praticada por homem ou mulher sobre mulher em situação de vulnerabilidade”. [1]
Obviamente a vítima do “Feminicídio” somente poderá ser uma mulher. Já o autor do crime em geral será um homem, mas nada impedirá que uma mulher atue como coautora ou partícipe. Além disso, tendo por base a Lei 11.340/06 não é totalmente afastável a hipótese de que uma mulher possa ser sujeito ativo do crime de “Feminicídio”, desde que esteja atuando em uma relação de “violência de gênero” contra a vitimada. Por exemplo, se uma mãe mata a própria filha porque não quer permitir que esta estude e pretende lhe impor um papel social estritamente feminino segundo uma visão que divide de forma estanque as funções sociais de homens e mulheres (inteligência do artigo 5º. e seu Parágrafo Único da Lei 11.340/06 que, aliás, não exclui da violência de gênero as relações homoafetivas).
Este é o espírito da legislação sob comento, embora a “Teoria de Gênero” e seu aviltamento à natureza humana em matéria sexual já tenha sido muito bem denunciada por autores como Jorge Scala que sequer admitem a existência de uma “Teoria”, mas de uma pura e simples “Ideologia de Gênero” no seio da qual o que seria sociologia, história, direito, filosofia se transforma imediatamente em puro jogo de poder, ou seja, Política em seu sentido mais mesquinho, que é o de simples luta pelo Poder ao custo inclusive da verdade. [2]
Falando em gênero e suas polêmicas, uma questão bem posta é a seguinte: poderá um transexual ser vítima de Feminicídio?
Um primeiro aspecto é induvidoso: não se tratando de transexual, mas de homossexual masculino que não tenha alterado seu sexo anatômica e juridicamente, é claro e evidente que não poderá ser vítima de Feminicídio. Isso seria realmente dar à “Ideologia de Gênero” uma amplitude paroxística e absurda.
Como bem destaca Cunha, sobre o tema do transexual, porém, podem surgir duas correntes de pensamento:
“Em eventual resposta à indagação inicial pode ser observadas duas posições: uma primeira, conservadora, entendendo que o transexual, geneticamente, não é mulher (apenas passa a ter órgão genital de conformidade feminina), e que, portanto, descarta, para a hipótese, a proteção especial; já para uma corrente mais moderna, desde que a pessoa portadora de transexualismo transmude suas características sexuais (por cirurgia e modo irreversível), deve ser encarada de acordo com sua realidade morfológica, eis que a jurisprudência admite, inclusive, retificação de registro civil”. [3]
Analisando a questão sob o prisma estritamente jurídico, parece que realmente assiste razão ao entendimento de que o transexual devidamente reconhecido como mulher no registro civil e com alterações em sua genitália pode perfeitamente ser vítima de Feminicídio e, não somente isso, passa a fazer jus a toda proteção jurídica diferenciada concedida às mulheres nas mais várias searas (v.g. Lei 11.340/06, Legislação Trabalhista, civil etc.).
Este também é o entendimento de Rogério Greco:
“Se existe alguma dúvida sobre a possibilidade de o legislador transformar um homem em mulher, isso não acontece quando estamos diante de uma decisão transitada em julgado. Se o Poder Judiciário, depois de cumprido o devido processo legal, determinar a modificação da condição sexual de alguém, tal fato deverá repercutir em todos os âmbitos de sua vida, inclusive o penal”. [4]
Não obstante, como já dito neste texto, há sim algo de bastante real e palpável no que diz respeito à violência contra a mulher, inclusive em situações que se adequariam ao que se convencionou chamar, por caminhos tortos ou não, de “violência de gênero”. Qualquer pessoa tem em sua experiência de vida o conhecimento de casos de crimes passionais que, realmente, em sua grande maioria têm por vítima mulheres. Dessa maneira, não se pode objetar que um criminoso que mata uma mulher porque a considera uma espécie de objeto, de propriedade, de animal sobre o qual tem poder de vida e morte, deva ser tratado com exemplar rigor pela legislação penal.
O grande problema, que torna a lei enfocada mais um triste exemplo de um Direito Penal meramente simbólico, totalmente inútil e demagógico, é o fato de que o homicídio de uma mulher nessas circunstâncias sempre foi, desde 1940 com a edição do Código Penal Brasileiro, uma espécie de homicídio qualificado. Nessa situação a qualificadora do “motivo torpe” estaria obviamente configurada e a pena é exatamente a mesma, ou seja, reclusão, de 12 a 30 anos (vide artigo 121, § 2º., I, “in fine”, CP).
A grande questão que se impõe é: para que serve então o alardeado “Feminicídio”? E a resposta clara e evidente é: para nada! Após o advento do “Feminicídio” o que melhorará na vida das mulheres em risco de sofrerem violência ou mesmo serem assassinadas por seus algozes? Rigorosamente nada! O que era um crime qualificado continua sendo, a pena continua a mesma. Afora o fato já mais do que repetido pelos estudiosos do Direito de que a seara criminal não é a panaceia para todos os males, a criação de um novo tipo penal ou pior, a mudança do nome de uma conduta já prevista como crime, da mesma forma e com a mesma pena, não é e nunca será a solução para qualquer problema social ou conflitivo. Essa é base do Direito Penal Simbólico: fingir que não se sabe dessas constatações há tempos disseminadas pela melhor doutrina, pela ciência criminal. Fingir que não sabe o que na verdade sabe e seguir produzindo leis inúteis, mas que rendem para certas pessoas e perante determinados grupos dividendos políticos. Enquanto isso, mulheres e homens continuarão sendo mortos entre 50 mil e 70 mil homicídios/ ano no Brasil.
Em suma, de forma alguma age o legislativo brasileiro seguindo o conselho corretíssimo de Karl Binding no sentido de que “o legislador sábio deve fazer como o bom cirurgião: só recorre à faca onde há enfermidade”. [5]
Na “Justificação” do PLS 292/13 a ignorância jurídico – penal mesclada com a demagogia típica de cultores do Direito Penal Simbólico resta mais do que evidente:
“A importância de tipificar o feminicídio é reconhecer, na forma da lei, que mulheres estão sendo mortas pela razão de serem mulheres, expondo a fratura da desigualdade de gênero que persiste em nossa sociedade, e é social, por combater a impunidade, evitando que feminicidas sejam beneficiados por interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis, como o de terem cometido ‘crime passional’. Envia, outrossim, mensagem positiva à sociedade de que o direito à vida é universal e de que não haverá impunidade. Protege ainda a dignidade da vítima, ao obstar de antemão as estratégias de se desqualificarem, midiaticamente, a condição de mulheres brutalmente assassinadas, atribuindo a elas a responsabilidade pelo crime de que foram vítimas”. [6]
Note-se que pelo que consta da passagem acima a lei penal é então uma espécie de panfleto feminista. Utiliza-se a via da lei penal para denunciar uma situação fática. Essa não é a função da lei penal e, aliás, de nenhuma lei. As leis servem para regular a conduta humana, tornando o convívio social pacífico possível, sabendo-se sempre que haverá um grau suportável de conflito. Lei alguma tem por objetivo ou deveria ter o uso panfletário, a denúncia. Ora, isso é função de discursos políticos, de mobilização social, não de leis. O que fundamenta essa objeção é não somente a natureza das leis ao longo da história humana, mas simplesmente o fato de que a lei não exerce a contento essa função ali exposta.
No seguimento vem a “Justificação” alegar que a criação do “Feminicídio” iria por cobro à impunidade, que iria impedir interpretações anacrônicas e moralmente inviáveis em casos de homicídios de mulheres. Mais ainda, iria impedir a ilação de que em um caso de morte de mulher se chegasse à conclusão de que houve um “crime passional”!
As asneiras expostas nessa parte do enunciado são tão abrangentes que devem ser analisadas separadamente.
Primeiro a questão do combate à impunidade mediante a criação de uma nova qualificadora no homicídio ou em qualquer crime. Não há nada mais evidenciado pela ciência criminal e pela própria experiência mundial e, principalmente brasileira, do que o fato de que a criação de novas modalidades penais em nada, absolutamente nada alteram a questão da impunidade. Uma afirmação como essa somente pode ser feita por alguém que desconhece completamente os mais básicos conceitos criminológicos como os de criminalização primária (previsão legal do crime) e criminalização secundária (efetiva aplicação adequada da lei). [7]
Como bem lembram os autores lusitanos Figueiredo Dias e Costa Andrade:
“Efetivamente, como agora se ganhou clara consciência, ao projetar-se sobre a realidade, a lei criminal sofre a refração devida aos second – codes das instâncias de criminalização secundária. O que vale também por dizer que a política criminal – formalmente legitimada através da (e plasmada na) lei criminal – sofre a concorrência das políticas informais daquelas instâncias, as quais podem inclusivamente frustrar as reformas legislativas mais audaciosas”. [8]
A conclusão cristalina a que se chega é que somente se pode falar em colmatar uma situação de impunidade por meio de uma lei penal quando eventualmente se criminalize uma nova conduta, sem previsão anterior, a qual era praticada impunemente exatamente por falta de uma norma penal adequada. Fora isso, principalmente mediante a criação de novos “nomen juris”, uso de termos da moda internacional como é o caso do “Feminicídio” e outras estratégias meramente simbólicas, politiqueiras e midiáticas, nada de bom pode resultar. Perceba-se que tudo isso não passa de mudar nomes, como se os nomes dados às coisas tivessem um poder mágico. Digo “abracadabra” e um coelho sai da cartola; digo “Feminicídio” e as mulheres ganham um halo protetor e não são mais vítimas de homicídio ou se o são todos os infratores são imediatamente presos e condenados a penas rigorosas. Antes, com o “nomen juris” de “motivo torpe” isso era impossível! O leitor poderá encontrar coisas similares na literatura fantástica brasileira (v.g. “Aventuras de Narizinho” de Monteiro Lobato) ou universal (“As mil e uma noites” de autor anônimo ou “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll).
Note-se que para a superação desse nominalismo mágico não seria preciso o esforço de leitura de obras filosóficas complexas ou grandes tratados de lógica ou ciência, nem mesmo da área jurídica. Bastaria aos nossos legisladores um simples passar de olhos pela Bíblia, mais especificamente na Carta de São Paulo aos Coríntios, onde afirma: “Deus nos capacitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do espírito. Pois a letra mata, e o espírito dá vida” (grifo nosso).[9] Ainda que não se olhe para o texto com um viés místico ou teológico, a mensagem é clara no sentido de que palavras ou nomes nada significam, mas sim o espírito que os anima. Ora, seja a qualificadora do “motivo torpe”, seja o “inovador” (sic) “Feminicídio”, dependem e sempre dependerão da disposição dos intérpretes e das circunstâncias concretas. Não há mágica, muito menos “nominalismo mágico” que seja capaz de transformar a realidade.
Em seguida vem a afirmação de que a criação do “Feminicídio” no Código Penal Brasileiro iria ter o condão de evitar “interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis”. Certamente um dos alvos não expressamente mencionados nessa passagem é a questão da chamada “legítima defesa da honra” (sic) em casos de adultério, quando o homem traído tira a vida da mulher.
Em primeiro plano é preciso dizer que a honra é um bem jurídico passível de ser objeto de legítima defesa, desde que dentro dos estreitos limites impostos por essa excludente de ilicitude (artigo 25, CP), vez que não se faz distinção para tal fim entre bens jurídicos materiais e imateriais. [10] Com isso obviamente não se pretende dizer que a chamada “legítima defesa da honra” (sic) do matador de mulher possa sequer ser passível de consideração quanto à caracterização dessa excludente. A situação claramente não satisfaz os requisitos da Legítima Defesa de acordo com o artigo 25, CP, com especial destaque para os “meios necessários” e a “injusta agressão atual ou iminente”. Ademais, como muito bem destaca Mirabete, “a honra, (…), é atributo pessoal ou personalíssimo, não se deslocando para o corpo de terceiro, mesmo que este seja a esposa ou o marido adúltero”. [11] Acrescente-se a tudo isso o fato da absoluta ilogicidade dessa suposta “legítima defesa da honra” (sic), eis que se alguém viola os deveres de fidelidade conjugal assumidos civilmente (e até religiosamente em muitos casos), o desonrado, quem comete uma desonra a si mesmo é o cônjuge infrator e não aquele que foi traído. Portanto, sequer há qualquer bem jurídico a ser defendido nesses casos. O que há é violência injustificável motivada por amor próprio ferido e sentimentos mesquinhos de posse e orgulho. Muito longe de configurar alguma modalidade de legítima defesa, essas situações em que cônjuges, namorados, noivos etc. matam uns aos outros por ciúmes são típicos exemplos de “motivo torpe” que qualifica o homicídio. Mas, hoje, com o advento do “Feminicídio” perceba-se que há uma diferença: se o homem traído mata a mulher, a qualificadora é a do “Feminicídio”; se a mulher traída mata o homem traidor, a qualificadora é a do “motivo torpe”. As penas são as mesmas. Indaga-se: qual a utilidade disso?
Certamente se alegará com razão que a maior parte desses homicídios devido à traição amorosa ou ao mero desenlace de uma relação tem como vítimas mulheres, embora haja casos de homens vitimados. Pergunta-se: e daí? O que muda com a troca do “nomen juris” e a criação do novo inciso da qualificadora? Resposta: Nada!
Mas, se alegará ainda que as decisões judiciais são muito mais benéficas para os homens nessas situações do que para as mulheres, ou seja, os clássicos reconhecimentos da malfadada “legítima defesa da honra” (sic) normalmente envolvem homens matadores e mulheres vitimizadas. Isso também é verdade, mas também não altera o quadro no sentido de que a mera mudança nominal e topográfica da qualificadora é totalmente improdutiva. Além disso, é também preciso reconhecer que o anacronismo está presente na pretensão de que esse reconhecimento de “legítima defesa da honra” (sic) em casos que tais seja, hoje, algo natural e corriqueiro. Em termos doutrinários e jurisprudenciais essa espécie de tese é praticamente indefensável na atualidade. É claro que sendo o homicídio um crime submetido ao julgamento no Tribunal do Júri (crime doloso contra a vida, nos termos do artigo 5º., XXXVIII, “d”, CF), onde funcionam “Juízes Leigos” ou “Jurados”, um advogado ardiloso pode muito bem lograr, em certos rincões, obter uma vitória com essa tese superada. E isso muda com o surgimento do “Feminicídio”? Resposta: não! Pelo simples fato de que o Júri continuará sendo formado por leigos e mais, é dotado de soberania de veredictos pela Constituição Federal, de modo que até mesmo a apelação de suas decisões é limitada (artigo 5º., XXXVIII, “c”, CF). Um caso como esse, em que a autoria e a materialidade do crime estão plenamente comprovadas e não há de forma alguma os requisitos de uma verdadeira legítima defesa, a decisão dos Jurados é absolutamente contrária à prova dos autos, o que enseja a possibilidade de Apelação. No entanto, devido à soberania dos veredictos já mencionada, o Tribunal “ad quem” irá dar provimento ao recurso para submeter o réu a novo julgamento pelo Júri. O Tribunal não alterará diretamente o “decisum”. Nesse novo Júri, se a decisão for a mesma, não caberá nova Apelação, pois o recurso com base nesse fundamento só é permitido uma única vez (vide artigo 593, III, “d” e § 3º., CPP). Enfim, com o nome de “motivo torpe” ou de “Feminicídio” na qualificadora, se o Júri acatar a tese esdrúxula da suposta “legítima defesa da honra” (sic) e insistir nela, nada haverá a fazer. Então, novamente indaga-se: o que mudou? Resposta insistente: nada, absolutamente nada!
Ocorre que a enxurrada de besteiras não para por aí. Segue o texto da “Justificação” da legislação em comento afirmando que a criação do milagroso “Feminicídio” será capaz de impedir o reconhecimento de que um homem que mata uma mulher por questões de relações amorosas cometeu “crime passional”. A coisa já degringola de início porque se é o “Feminicídio” que tem o poder oculto de ocasionar esse prodígio, então estaríamos diante de uma situação muito estranha. Vejamos: um homem mata sua namorada, por exemplo, porque a surpreende na cama com outro homem. Esse não é um “crime passional” porque existe o maravilhoso e miraculoso “Feminicídio” que tem o condão de anular as paixões humanas, digo (perdão pelo equívoco), as paixões humanas não, apenas as paixões dos homens (homens aqui no sentido estrito e não genérico de ser humano). Por outro lado, se uma mulher surpreende o namorado nas mesmas condições e comete o mesmo ato tresloucado, então será possível afirmar que foi um “crime passional”, já que nesse caso não se trata da aplicação da “palavra mágica” do “Feminicídio”! Perceba-se a que grau de insanidade se pode chegar pelas vias do politicamente correto mesclado com o Direito Penal Simbólico.
Há que compreender, porém, que também há um componente de profunda ignorância criminológica nessa afirmação esquisita de que o “Feminicídio” acabaria com o fenômeno dos “crimes passionais”. Há uma indevida confusão entre o que seja um “crime passional” com aquilo que seja um crime que possa encontrar uma causa de justificação (v.g. legítima defesa, estado de necessidade etc.) ou ao menos uma razão para abrandamento da pena (v.g. privilégios como domínio de violenta emoção, relevante valor moral – artigo 121, § 1º., CP). Ora, o fato de um crime ser catalogado criminologicamente como “passional” nada tem a ver com sua justificabilidade ou possibilidade de abrandamento penal.
Bem explica Rabinowcz que o “crime passional” tem como fator de impulsão o instinto sexual e o sentimento de posse sobre o outro de modo a arrastar “atrás de si os inumeráveis males e os furores sem nome, é ele que alimenta o exército do crime”. E prossegue:
“O amor sexual é egoísta, profundamente egoísta. Trata-se o objeto do desejo como uma propriedade que se pode utendi et abutendi, de que se tem o direito de dispor livremente, que se pode sequestrar unicamente para nós, roubando-a ao mundo inteiro, para a gozarmos à nossa vontade”. [12]
Será que uma mera mudança de nome e de posição topográfica de uma qualificadora do homicídio seria capaz de dar cabo de uma paixão destrutiva humana (comum a homens e mulheres) que configura uma categoria criminológica? É claro que não! Isso somente pode passar pela cabeça de pessoas que não têm a mais mínima noção sequer das diferenças entre Criminologia e Direito Penal.
É interessante ainda salientar sobre este tema a relevante contribuição de Magalhães Noronha, expondo os equívocos interpretativos ocorridos perante os estudos dos homicidas passionais pela Escola Positiva, demonstrando o autor que o criminoso passional geralmente não merece qualquer consideração em termos de benefícios legais:[13]
“O assunto traz à baila a paixão amorosa. A Escola Positiva exaltou o delinquente por amor e foi o bastante para que por passional fosse tido todo matador de mulher, esquecendo-se dos característicos que aquela apontava. A verdade é que, via de regra, esses assassinos são péssimos indivíduos: maus esposos e piores pais. Vivem sua vida sem a menor preocupação para com aqueles por quem deviam zelar, descuram de tudo, e um dia, quando descobrem que a companheira cedeu a outrem, arvoram-se em juízes e executores.
A verdade é que não os impele qualquer sentimento elevado ou nobre. Não. É o despeito de se ver preterido por outro. É o medo do ridículo – eis a verdadeira mola do crime.
Esse pseudo – amor não é nada mais do que sensualidade baixa e grossa…”. [14]
O final do texto da “Justificação” anteriormente transcrito nos demonstra com clareza solar o simbolismo puro contido na novel legislação ao asseverar que se trata de uma “mensagem positiva à sociedade” quanto à universalidade do direito à vida, de um não à impunidade, do respeito pela dignidade da vítima. Ora, uma lei não é uma poesia, uma música ou uma exortação. É preceito prático para aplicação e resultado, o resto é simbolismo e demagogia baratos. Observe-se que ao afirmar que uma legislação deve ser pensada como aplicação prática e com vistas a resultados não significa que ela deva estar vazia de conteúdos, inclusive éticos e morais, de valores e imbuída de intenções benéficas para a paz social. Significa que tudo isso deve ser autêntico e não malversado, contrafeito ou cosmético com alterações nominalistas inócuas e enganadoras.
O fechamento se dá com a afirmação de que o advento do “Feminicídio” irá obstar eventuais estratégias midiáticas ou defensivas de “desqualificação das vítimas mulheres “brutalmente assassinadas” com a injusta atribuição da responsabilidade do crime a elas próprias. Eis aí outra impossibilidade prática. Será que com a criação do miraculoso “Feminicídio” doravante não será mais possível alegar, por exemplo, que uma mulher atacou um homem e que este a matou em legítima defesa, não da honra, mas em legítima defesa própria devido a um ataque físico? Aliás, isso não pode acontecer realmente? Ou será que antes podia e agora, com o advento do “Feminicídio” não pode mais? Um advogado de um suposto criminoso (não se pode olvidar a presunção de inocência – artigo 5º., LVII, CF) não poderá mais sustentar no plenário do Júri, em face da “plenitude da defesa” constitucionalmente estabelecida (vide artigo 5º., XXXVIII, “a”, CF) a tese, por mais insustentável que seja, de “legítima defesa da honra” (sic)? É claro e evidente que o simples surgimento de um “nomen juris” jamais irá alterar essas coisas. A sociedade não evolui em saltos, muito menos por obra de pessoas que se julgam milagreiras, demiurgas de um mundo melhor erigido por palavras mágicas ou por um novo vocabulário politicamente correto.
Neste ponto vale anotar que durante os debates do PLS 292/13 constam das atas várias manifestações dos políticos envolvidos (que eles me perdoem por não dizer “políticos e políticas”) onde esse vocabulário politicamente correto, essa espécie de “novilíngua” militante se faz ostensivamente presente em redundâncias medonhas. A língua portuguesa é uma expressão feminina (por isso se diz “a língua portuguesa” e não “o língua portuguesa”). Bem, tendo isso em conta, metaforicamente pode-se afirmar que há uma violência, senão um assassinato da língua portuguesa, um verdadeiro “Feminicídio” quando nessas discussões se constatam manifestações como: “Bom dia a todas e a todos”! “Senadores e Senadoras, Deputados e Deputadas”! Tudo isso repetido “ad nauseam”. [15] Observe-se ainda que na descrição legal do “Feminicídio” no bojo do projeto- depois não constou da redação final dada à Lei 13.104/15 -, uma das circunstâncias então previstas se refere à “mutilação ou desfiguração da vítima, antes ou após a morte”, o que efetivamente ocorre com a língua portuguesa nesses casos. Mas, isso não é novidade, já não choca mais ninguém e se sabe que a lei vem encabeçada pela designação da Presidente da República como “Presidenta” (sic), olvidando-se inclusive que não se trata de usar uma palavra que é masculina por força de alguma “tradição patriarcal machista e opressora” (sic), mas que toda palavra terminada em “ente” tem o significado de alguém que exerce uma dada função, pois que “ente” é o “ser”, aquele que age, que atua. Por isso há um Presidente, seja ele homem ou mulher. Presidente é aquele (a) que preside. Parturiente é aquela e sempre aquela que dá a luz, não vamos designá-la como “parturienta” (sic). A chama é ardente e não “ardenta”. O médico atende à paciente e não à “pacienta”. E assim por diante. [16]
Essa construção verbal ou por categorias mentais da realidade efetivamente tem o poder de criar pessoas com o raciocínio embotado ao ponto de realmente acreditarem que uma mudança linguística pode operar milagres. No campo legal, isso gera uma crença equivocadíssima de que uma alteração vernacular, um neologismo importado da ONU pode evitar toda a dinâmica da interpretação e aplicação da lei e da própria tipicidade frente ao mundo da vida.
Se um dia pudessem alguns compreender o texto de Paulo Queiroz, talvez toda essa confusão se desfizesse como névoas que se dispersam com o sol: [17]
O autor chama a atenção para a insuficiência do próprio conceito de tipicidade com o desenvolvimento da ciência penal. Sua definição corrente é a de mera subsunção de uma conduta a uma descrição contida na lei penal. Essa descrição da tipicidade, embora não incorreta torna-se “extremamente restritiva” e, por isso, “imprecisa”. Lembra-nos a definição correta de homem construída na Academia de Platão como “um bípede implume”. Ela é uma definição correta, realmente todo homem é um bípede e não tem penas, mas não é precisa, não é suficiente para definir a essência de um homem ou do homem em geral. Tanto é assim que os grandes inimigos da Academia, os Cínicos, ao saberem do fato, apresentaram uma galinha depenada e disseram sarcasticamente: “Eis aí o homem”! [18]
Sobre a noção corrente de tipicidade afirma Queiroz:
“Com efeito, sugere que a tipicidade seja uma simples descrição ou constatação quando, em verdade, é uma valoração complexa que envolve aspectos dogmáticos e político – criminais.
Consequentemente, não é um ato descritivo, mas valorativo, atributivo. Não se trata de constatar algo preexistente, mas defini-lo socialmente, por meio do processo interpretativo. Afinal, não existem fenômenos jurídicos, nem jurídico – penais, mas uma interpretação jurídica e jurídico – penal dos fenômenos. Por conseguinte, não existem fenômenos criminosos, e sim uma interpretação criminalizante dos fenômenos; e, pois, tipificante, antijuridicizante e culpabilizante. A tipicidade não é um dado, mas um constructo”. [19]
Trazendo à baila o ensinamento de Kaufmann, Queiroz lembra que a decisão sobre a tipicidade de um fato não se resume ao mero exercício de subsunção da conduta à norma, mas da realização de uma “analogia”, já que “o direito não é um saber lógico, mas analógico”. [20] Os crimes não são iguais uns aos outros, bem como não são também absolutamente diversos, apresentando pontos de semelhança e divergência, o que converge para o raciocínio analógico e não lógico ou direto. [21]
Quem pensa que um nome ou mesmo uma alteração legal pode alterar todo um contexto da realidade do mundo da vida ou é por demais limitado sob o ponto de vista jurídico, social e filosófico ou é mesmo mal intencionado e demagogo. A única dúvida que resta é qual é a pior hipótese: a incapacidade ou a má fé?
Afinal que empecilho havia, que mal havia no “nomen juris” homicídio, sem a distinção do “Feminicídio” e com a qualificadora e mesma reação penal proporcionada pelo “motivo torpe”? “Homicídio” etimologicamente advém do latim tardio “hominis excidium” que tem o significado de “destruição do homem por outro homem”. [22] É mais que sabido que neste contexto a palavra “homem” é usada em sentido abrangente como sinônimo de “ser humano” (homem ou mulher). Entretanto, o Politicamente Correto, com sua mania de atomizações e separações, vem emporcalhar algo adiafórico e que, por outro lado ensejava uma visão do ser humano unificado, sem distinções, para criar uma divisão, uma atomização e um conflito artificial. Por isso, faz parecer que é premente a criação de um “nomen juris’ especial para o assassinato de mulheres, devendo surgir o “Feminicídio”. Agora já não lidamos com o ser humano que é humano e faz jus a esta consideração, a esta dignidade que lhe é inerente pelo simples fato de sua condição humana (masculina ou feminina). Não, agora há uma polarização entre homens e mulheres, vem a ideologia de gênero para dividir, para criar embate. E isso é uma verdadeira praga que tende a se alastrar com a criação aleatória de grupos conflitivos onde nada disso havia ou, se havia, dever-se-ia pugnar pela eliminação do conflito e da polarização que somente geram violência e falta de solidariedade e não por seu reforço. A continuar nessa senda logo teremos o geronticídio para a morte de idosos; o infanticídio para a morte de crianças (e aí teremos que alterar o “nomen juris” do tipo penal do artigo 123, CP); o adolescenticídio para a morte de adolescentes; o homossexualicídio para a morte de homossexuais, o negricídio para a morte de negros, o branquicídio para a morte de brancos, o pobrecídio para a morte de pobres, o plutocídio para a morte de ricos, a mediocídio para a morte de pessoas da classe média [23], o silvicolocídio para a morte de índios e assim por diante numa insanidade infinita.
Resta agora analisar como o legislador descreveu a conduta do Feminicídio enquanto violência de “gênero”, perfazendo seus contornos para uma diferenciação de qualquer outra morte que tenha por vítima pessoa do sexo feminino e, mesmo assim, configure um homicídio simples ou qualificado por outro motivo.
Por exemplo, se há a morte de uma mulher, ainda que por um homem, numa briga originada de um desentendimento no trânsito, temos um crime de homicídio qualificado por motivo fútil (artigo 121, § 2º., II,CP) e não o Feminicídio, previsto no artigo 121, § 2º., VI, CP. Ou seja, não é todo homicídio de mulher que configura um Feminicídio, mas apenas aqueles em que se revele a chamada “violência de gênero”.
Para tanto, o inciso VI agora criado determina a qualificadora do Feminicídio quando o homicídio é perpetrado “contra mulher”, mas não somente isso, adiciona um dolo específico: “por razões da condição de sexo feminino”. Ou seja, a morte deve ter por sujeito passivo uma mulher e (conjunção aditiva) deve dar-se especificamente devido à sua condição de mulher.
A legislação ainda erige norma explicativa no § 2º. – A, a fim de deixar bem claro o que seriam aquelas “razões de condição de sexo feminino” mencionadas no inciso VI. Segundo a lei, essas razões estariam presentes em dois casos:
I –Violência Doméstica e Familiar;
II-Menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Em linhas gerais segue-se o critério da Lei Maria da Penha (artigo 5º., I a III da Lei 11.340/06). No projeto, as hipóteses a serem incluídas no Código Penal eram mais restritas quanto às situações de violência doméstica e familiar contra a mulher. Enquanto na Lei 11.340/06 a violência doméstica se caracteriza, por exemplo, pelo mero convívio doméstico permanente “com ou sem vínculo familiar”, abrangendo até mesmo pessoas “esporadicamente agregadas”, no projeto era exigido o parentesco ou a relação íntima de afeto. Também o liame familiar da Lei Maria da Penha é bem mais aberto, admitindo os “laços naturais”, de afinidade ou mesmo aqueles criados por “vontade expressa” entre as pessoas. No Código Penal se o projeto houvesse sido aprovado em seu formato original – o que não foi – exigir-se-ia efetivo parentesco por afinidade ou consanguinidade. Quanto à relação íntima de afeto, entende-se que desde a redação projetada até a lei hoje aprovada se pode seguir os passos da Lei 11.340/06, eis que o Código Penal não é específico.
Assim sendo pode-se dizer que a relação íntima de afeto entre a vítima e o agressor no presente ou no passado pode ter como exemplos: o namoro, o casamento, o noivado, a união estável. Como se fala que essa relação pode ser passada ficam abrangidos os ex-namorados, ex-cônjuges etc. No que diz respeito ao mesmo tema na Lei Maria da Penha, o STJ, por sua Sexta Turma, no HC 92875 já estabeleceu que a violência cometida por ex – namorado é abrangida por normas de especial proteção à mulher.
No que tange ao parentesco este pode ser consanguíneo (irmãos, pais, avós, netos etc.) ou por afinidade (sogros, cunhados etc.). É claro que neste caso quando se fala em “presente ou passado”, somente se pode estar referindo ao parentesco por afinidade, já que o consanguíneo não se desfaz. Por outro lado, olvidou o legislador a menção do parentesco legal (v.g. filho adotivo). Na Lei Maria da Penha (artigo 5º., II) também não há essa menção, mas isso não gera qualquer impedimento já que, como já visto, a redação da Lei 11.340/06 é bem ampla, admitindo pessoas que “são ou mesmo se consideram aparentados”, de modo que é mais que evidente que o parentesco legal está ali contido. Já na legislação sob estudo, quando ainda em projeto, não era assim. Somente se falava em consanguinidade e afinidade. Dessa forma, em se tratando de uma norma restritiva, que geraria uma qualificadora para o homicida, não seria possível aplicar a qualificadora do “Feminicídio” em casos de parentesco legal por força do “Princípio da Legalidade”. Enfim, com a redação final dada à Lei 13.104/15 ora vigente e a adoção da expressão aberta de violência doméstica e familiar, a situação fica equiparada à abertura possibilitada pela Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). Assim sendo, a redação da Lei 13.104/15 superou o projeto nesse aspecto. Mas, será que aquele olvido do projeto era uma tragédia? Não, porque, como já visto, a norma que ora vem a lume é inútil. Se um filho adotivo matasse a própria mãe em situação de violência de gênero o caso seria normalmente qualificado como “motivo torpe” (artigo 121, § 2º., I, “in fine”, CP) com a mesma pena, como sempre foi desde 1940.
Observe-se ainda que diversamente da Lei Maria da Penha, o projeto somente tutelava as relações familiares com a restrição acima mencionada e as relações íntimas de afeto. Nada dizia a respeito da violência estritamente doméstica, conforme consta no inciso I do artigo 5º., da Lei 11.340/06. Novamente, a superfluidade do “Feminicídio” mostra sua face porque se a morte da mulher se desse em circunstância de violência de gênero no âmbito doméstico, o crime continuaria, como sempre foi, qualificado por “motivo torpe”, embora não se pudesse aplicar o famigerado “Feminicídio”. No entanto, atualmente, com a edição final da Lei 13.104/15 esse suposto problema ou limite está totalmente superado, eis que, como já demonstrado, passa a legislação a fazer menção tanto à violência familiar como à doméstica (artigo 121, § 2º. – A, I, CP). Em resumo, adota o Código Penal, para a caracterização do Feminicídio, os mesmos critérios da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), coisa que, aliás, não poderia ser diversa.
No projeto era prevista como caracterizadora da violência de gênero a circunstância de que no seio da conduta que ocasionasse o homicídio ocorresse a “prática de qualquer tipo de violência sexual contra a vítima, antes ou após a morte”. Aí então surgiria o “Feminicídio”. Emergia aqui um problema gravíssimo de redação sob os pontos de vista jurídico, gramatical, filosófico e até médico. Nenhum óbice quando o legislador previa a circunstância do abuso sexual da vítima na prática da sua morte como ensejador do “Feminicídio”. Porém, quando escrevia que essa violência sexual podia ser praticada “contra a vítima” (frise-se “a vítima”) “antes ou após a morte” (frise-se “após a morte”), penetrávamos no reino da absurdidade. Acontece que a violência sexual somente pode ser perpetrada contra “alguém”, ou seja, uma “pessoa”, uma “mulher” que para ser chamada de “alguém” ou “pessoa” tem necessariamente de estar viva. O cadáver, o morto, não é vítima de crime algum no ordenamento jurídico. Ele é coisa, objeto material, nunca sujeito passivo. Por isso é impossível praticar violência sexual contra “a vítima após a morte”! Nestes casos a prática sexual sobre o cadáver constitui crime de Vilipêndio a Cadáver (artigo 212, CP), tem o cadáver como “objeto material” e a morta já não é vítima, já não é pessoa no mundo jurídico, gramatical, filosófico e mesmo médico. O cadáver é “coisa”, “res” sobre a qual se pode atuar de forma realmente abjeta, mas não é vítima de coisa alguma.
Apenas para ilustrar no campo jurídico o Código Civil estabelece em seu artigo 2º. que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida” e em seu artigo 6º. que “a existência da pessoa natural termina com a morte”. Esse é um aprendizado de primeiro semestre de qualquer curso de Direito, mas o legislador brasileiro demonstrou uma atecnia avassaladora e vergonhosa na legislação projetada, mostrando-se incapaz de uma interdisciplinaridade muito simples e revelando, mesmo no campo penal, absoluto desconhecimento quanto ao que se possa entender por vítima ou sujeito passivo de crimes ou mero objeto material destes.
Portanto, acaso aprovado em seu formato original o projeto – o que felizmente não ocorreu – teria sido preciso, com muita boa vontade, fazer uma releitura dessa sua disposição para compreender que o que ensejaria a caracterização do “Feminicídio” seria a prática de atentado sexual contra a vítima (obviamente ainda viva). Por outro lado, também seria caracterizado o “Feminicídio” quando houvesse práticas tais como a necrofilia ou vampirismo (atos sexuais perpetrados em um cadáver), mas nesse caso esses atos não seriam perpetrados “contra a vítima”, mas no “cadáver”.
Felizmente o legislador extirpou essa monstruosidade da redação final da Lei 13.104/15, deixando apenas a caracterização do Feminicídio pelas motivações específicas da condição de mulher da vítima em situação de violência doméstica e familiar ou em menosprezo ou discriminação à condição da mulher, o que, certamente, abrange os atos antes previstos (mal previstos) no projeto.
Outra condição prevista no projeto para configuração do Feminicídio que foi eliminada e substituída pela redação mais genérica acima citada, foi a “mutilação ou desfiguração da vítima, antes ou após a morte”.
Para evitar exasperação de nossa parte e tédio do leitor não iremos tecer novos comentários sobre a absurdidade da referência à “vítima” mutilada ou desfigurada “após a morte”. Remetemos o leitor às críticas anteriormente expostas ao referido projeto que, por felicidade, não se concretizou “in totum”. Apenas se faz mister esclarecer que eventual mutilação ou desfiguração do “cadáver” (objeto material e não vítima) configurará crime de Destruição de Cadáver (artigo 211, CP) ou mesmo Vilipêndio a Cadáver (artigo 212, CP) de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto e com o elemento subjetivo do autor. Sendo fato que essas circunstâncias já não compõem explicitamente as condições para o perfazer da qualificadora em estudo como se projetava, não se verifica óbice para que o autor de Feminicídio venha a responder em concurso material por esses crimes contra o respeito aos mortos. Se o projeto houvesse sido aprovado em seu formato original, ainda se poderia cogitar de eventual “bis in idem”, uma vez que a mutilação ou desfiguração do cadáver seria elemento necessário para a configuração da qualificadora. No entanto, como hoje já não tem previsão expressa, não há qualquer razão para se reconhecer dupla apenação pelo mesmo fato.
Por fim é preciso observar que não é somente na condição de violência doméstica e familiar contra a mulher que se caracteriza o Feminicídio, mas em qualquer situação onde a motivação do agente seja o “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Seria um exemplo, matar uma mulher por motivo de misoginia (ódio, desprezo ou repulsa ao gênero feminino).
Cunha critica a norma explicativa do § 2º. – A, I e II, do artigo 121, CP, alegando que mais confunde do que esclarece. Isso porque acaba não fazendo uma distinção entre o chamado “femicídio” que designaria a morte de mulheres, seja em relações domésticas, familiares ou quaisquer circunstâncias e o “Feminicídio”, que teria uma conotação política, sendo “a conduta do agente” motivada “pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. [24]
Quanto a isso, entende-se que o próprio “nomen juris” seria então equivocado ou ao menos insuficiente. Se o intento legislativo é abranger qualquer morte de mulher em circunstâncias de gênero, incluindo aquelas politicamente motivadas (misóginas), então o “nomen juris” deveria ser “Feminicídio ou Femicídio”. Se somente tem por mira as mortes em geral de mulheres em situações de violência de gênero, então o “nomen juris” não deveria ser nem “Femicídio” (porque este abrangeria mortes que não envolvem questão de gênero, mas que simplesmente têm uma mulher como vítima) e nem “Feminicídio” (porque este estaria restrito à misoginia e a posturas políticas). Na verdade, tudo isso retorna a uma questão de nomes, uma discussão epidérmica e fútil. E, ademais, parece um tanto quanto evidente que o legislador tinha em mira tanto mortes em situações feminicidas como femicidas, ligadas às duas condições previstas no artigo 121, § 2º., I e II, CP. Embora considerando, como já exposto, tudo isso uma inutilidade nominalista, demagógica e simbólica, parece coerente que ao criar essa nova tipificação, o faça o legislador de forma mais ampla possível e estabeleça, como o fez, os critérios que adota para a discriminação entre o “Feminicídio” (“nomen juris” que adotou) e um homicídio comum de mulher. Mesmo porque se fosse seguir a senda do preciosismo vocabular entre “Feminicídio” e “Femicídio”, pretendendo ser abrangente, poderia cair num exagero de discriminar toda e qualquer morte de mulher, violando o Princípio da Igualdade em detrimento dos homens. Como fez o legislador, trouxe critérios objetivos e práticos para uma discriminação positiva. Caso contrário, tendo, por exemplo, o “Femicídio” como marco, a morte de uma mulher, em qualquer circunstância, seria mais importante do que a de um homem, o que se convolaria numa flagrante infração aos mais comezinhos princípios de humanidade e igualdade entre os sexos.
Vistas as circunstâncias que se devem agregar à violência de gênero letal para a configuração do “Feminicídio” chega o momento de esclarecer que, assim agindo o legislador, a qualificadora em estudo somente vai se perfazer nos casos em que a morte seja de uma mulher em situação de violência de gênero e ainda com a presença de uma ou mais das circunstâncias acima descritas que compõem os incisos I e II do § 2º. – A, do artigo 121, CP. Quer dizer que mesmo quando uma mulher for morta em situação de violência de gênero, se não for comprovada ao menos uma das circunstâncias dos incisos em estudo, não se configurará o “Feminicídio”. As alterações e a redação mais generalizante da Lei 13.104/15 em relação ao seu projeto foi produtiva, ao menos para quem considere relevante a criação da figura do “Feminicídio” (já se deixou claro neste texto que não passa de demagogia). Mas, de qualquer forma, é melhor uma lei mais técnica. Um exemplo bem marcante dessa melhora entre o projeto e a Lei 13.104/15: digamos que um homem por razões de pura misoginia saia pela cidade matando mulheres aleatoriamente. Ele mata as mulheres, mas não pratica qualquer abuso sexual, nem mutilação ou desfiguração. Neste caso a misoginia que o motiva configura certamente a violência de gênero, conforme o vocabulário corrente, mas não estariam presentes as circunstâncias que deveriam, segundo o projeto, se agregar para a devida configuração do “Feminicídio”. Assim sendo a inutilidade da nova qualificadora não se resumiria ao fato de já haver o “motivo torpe” no Código Penal desde 1940, mas também porque não abrangeria um caso típico de violência de gênero, de morte de mulheres pelo simples fato de seu sexo e então seria necessário lançar mão do velho “motivo torpe”! Por sorte ou porque receberam eco as críticas deste meu texto ora ajustado e de outros autores, a redação foi adequada com uma descrição generalizante e ampla, conforme o artigo 121, § 2º. – A, I e II, CP.
Havia no projeto ainda um novo § 8º., em que o legislador se lembrou de deixar esclarecido que a pena do “Feminicídio” não prejudica a aplicação das “sanções relativas aos demais crimes a ele conexos” como, por exemplo, o estupro, o vilipêndio a cadáver, a destruição de cadáver etc. Efetivamente, como bem aponta a “Justificação” do PLS 292/13 “não fosse assim, estar-se-ia criando um benefício ao agressor e incentivando a impunidade, propósito contrário ao deste projeto de lei”. [25] Isso porque sem essa observação legal especialmente no caso das circunstâncias dos incisos II (abusos sexuais) e III (mutilação ou desfiguração) – na conformação do então projeto – o propósito de aplicar penas por estupro, estupro de vulnerável, vilipêndio ou destruição de cadáver, lesões graves [26] etc. sofreria o óbice do “non bis in idem”, já que tais circunstâncias já qualificariam o crime e não poderiam ser novamente utilizadas. Com a observação constante do § 8º., a legislação estabelecia claramente a regra do concurso material de crimes. Entretanto, com o advento da Lei 13.104/15, a qual, conforme já destacado anteriormente, não faz mais menção àquelas circunstâncias de abusos sexuais e mutilações ou desfigurações de cadáver, a questão do “bis in idem” restou superada, de modo que não há mais necessidade do § 8º. Portanto, bem fez o legislador ao não mantê-lo na Lei 13.104/15, pois que configuraria uma espécie de redundância ou obviedade.
Outro dispositivo que não era previsto no projeto e foi implantado pela Lei 13.104/15 foram as causas especiais de aumento de pena alocadas no artigo 121, § 7º., I a III, CP. O § 7º. é explícito em estabelecer que essas causas especiais de aumento de pena são aplicáveis somente aos casos de Feminicídio, não abrangendo outros casos de homicídio, sejam simples ou qualificados. O aumento em estudo é variável entre 1/3 até a metade, o que é interessante, pois enseja um elastério de individualização ao julgador.
Para dizer a verdade, está neste dispositivo do § 7º. e seus incisos a única verdadeira inovação e tratamento mais gravoso que o Feminicídio enseja para o matador de mulheres por questões de gênero. Até aqui, tudo era mais do mesmo, pois que, como já visto e repetido exaustivamente, a qualificadora do “motivo torpe” sempre existiu. Agora, realmente esses aumentos de pena não eram previstos e podem ter uma efetiva atuação intensificadora da reação punitiva. Observe-se que o aumento mínimo eleva a pena que seria de reclusão, de 12 a 30 anos, para reclusão, de 16 a 40 anos. Já o aumento máximo, eleva a pena de reclusão, de 12 a 30 anos, para reclusão, de 18 a 45 anos. O que é um incremento penal considerável. Malgrado isso, não se afasta a característica meramente simbólica da legislação, o uso espúrio do Direito Penal como panaceia para todos os males, como tem sido comum ocorrer não somente no Brasil, mas especialmente por aqui.
As circunstâncias que ensejam o aumento de pena são as seguintes:
a) Quando a vítima é morta “durante a gestação”. Aqui é importante ressaltar que já havia a previsão de uma agravante genérica para todo e qualquer crime cometido contra “mulher grávida” (vide artigo 61, II, “h”, CP). Porém, isso não torna a alteração legal inútil ou redundante. Com seu advento a agravante é afastada pelo Princípio da Especialidade (inteligência do artigo 61, “caput”, CP) e a nova norma vigorante traz maior rigor punitivo, eis que o aumento gravita entre 1/3 e metade, enquanto que é sabido que as agravantes genéricas não têm “quantum” de incremento legalmente previsto, mas normalmente não costumam ultrapassar, na prática forense, o patamar de 1/6.
Um problema novo pode surgir com este aumento de pena. Consistiria em decidir se a aplicação do aumento impediria o concurso (formal ou material) com o crime de aborto provocado sem o consentimento da gestante (artigo 125, CP). Podem surgir duas correntes de pensamento: uma vislumbrando o impedimento do concurso de crimes por configurar “bis in idem”; outra permitindo o concurso, ainda que com o aumento sendo aplicado, porque bens jurídicos diversos são afetados e inclusive sujeitos passivos diversos (vida da mulher e vida intrauterina). Tende-se a defender a segunda opção. Mas, mesmo que a primeira corrente prospere no futuro doutrinário – jurisprudencial, fato é que o aumento será mais gravoso do que até mesmo o concurso material. Mesmo o aumento mínimo acrescentaria à pena mínima 4 anos, enquanto que a pena mínima do artigo 125, CP é de apenas 3 anos. Na pena máxima, o aumento, ainda que de apenas 1/3 (mínimo) acrescentaria 10 anos, o que é o mesmo “quantum” da pena máxima do artigo 125, CP. Por outro lado o aumento máximo acrescentaria 6 anos à pena mínima e 15 anos à pena máxima, superando a variação de 3 a 10 anos da pena prevista para o crime do artigo 125, CP. Quanto ao concurso formal, nem é preciso dizer que os aumentos sobreditos o superam imensamente em termos de rigor penal.
b) Quando a vítima é morta “nos 3 meses posteriores ao parto”. Trata-se de um período em que a parturiente ou puérpera se encontra em uma fase de readaptação física, hormonal, biológica, fisiológica, psicológica etc., de modo que se apresenta mais fragilizada sob variados aspectos. Isso justificaria o maior rigor, unido ao fato de que a criança recém – nascida ficaria sem os cuidados mais intensos da genitora justamente em sua fase mais tenra.
Há discussão acerca de quando se iniciaria o parto e isso é relevante para a contagem do prazo inicial desses 3 meses que aumentam a pena. O tema, no caso de parto normal, é polêmico na área médico – legal. Basicamente encontram-se 4 posicionamentos principais: o início do parto ocorreria com as dores da dilatação; com a efetiva dilatação; com o desprendimento do feto ou com o rompimento do saco amniótico. Tem prevalecido a última tese. Obviamente que se o parto não é natural, mas por intervenção cirúrgica cesariana, então o início se dará no momento em que este procedimento começar, mais especificamente com a incisão feita pelo médico. Estes seriam então os termos iniciais a partir dos quais se contariam os 3 meses de especial proteção da parturiente.
Anote-se que diferentemente da questão da morte da gestante, o homicídio da mulher até 3 meses após o parto não encontra previsão de agravante genérica, constituindo-se em real novidade da Lei 13.104/15.
c) Contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência. As duas primeiras causas de exasperação já tinham previsão geral no § 4º., “in fine”, do artigo 121, CP em caso de homicídio doloso. Mas, naquele dispositivo, aplicável tanto a homens como a mulheres mortos em situações que não envolvam violência de gênero, o aumento é fixo de apenas 1/3. A mudança é que para o Feminicídio esse aumento passa a ser variável entre 1/3 e metade. Neste ponto é questionável se o simples fato da presença da violência de gênero é suficiente para emprestar tratamento divergente para hipossuficientes etários assim considerados por lei, sem violar a isonomia. Não parece que a violência contra jovens de tenra idade e idosos comporte uma estratificação com base no sexo da pessoa ou mesmo na situação de violência de gênero. Se havia um intento em incrementar o aumento de pena já previsto, o mais correto seria então incrementá-lo de forma geral.
No mesmo inciso há ainda o aumento para o caso da mulher vitimizada ser pessoa com “deficiência”. Essa deficiência pode ser tanto física como mental. Este caso não era anteriormente previsto de forma genérica como aumento de pena no § 4º., do artigo 121, CP, nem como agravante genérica no artigo 61, CP. Trata-se de outra inovação da Lei 13.104/15 e que merece também as mesmas críticas quanto à violação da isonomia acima arroladas para os casos etários, eis que somente o sexo da pessoa vitimada e/ou a situação de violência de gênero não parecem ser suficientes para um tratamento desigual que não configure uma discriminação negativa. Afinal também os deficientes são hipossuficientes que merecem proteção especial, sejam do sexo masculino ou feminino.
d) Quando a vítima for morta “na presença de descendente ou de ascendente” desta. Essa é uma crueldade que merece realmente uma reação penal mais gravosa a tal ponto que até mesmo em meio aos mais celerados dos homens, dentre criminosos pertencentes a organizações, há frequentemente uma regra moral de não atacar um desafeto ou um indivíduo jurado de morte na presença de seus familiares próximos, especialmente ascendentes e descendentes. Ora, se até mesmo criminosos reconhecem a abjeção ínsita a esse tipo de conduta, nada mais natural que a legislação também o faça. Novamente, apenas uma objeção quanto à restrição desse novo aumento somente ao Feminicídio. Ele obviamente, pela crueldade que abriga, deveria se espraiar indistintamente para qualquer caso de homicídio. Não há diferença alguma considerável entre matar um pai na frente dos filhos ou uma mãe na frente dos filhos, inclusive não há diferença se a morte dessa mãe é referente a um caso de violência de gênero ou se faz parte de uma execução sumária do crime organizado, por exemplo. A distinção é novamente odiosa, injusta e inconstitucional por violação da isonomia e até mesmo do Princípio de Humanidade.
Cunha entende que quando a lei indica que a morte deve dar-se “na presença” de descendente ou ascendente, não exige que essa “presença” seja física, ou seja, que o ascendente ou descendente esteja realmente fisicamente no local da ação criminosa. Bastaria que a execução da vítima fosse disponibilizada ao ascendente ou descendente ao vivo mediante filmagem, Skype, por telefone ou outros meios virtuais hoje disponíveis. [27]
O autor sob comento não vislumbra, ao que parece, a possibilidade de outro entendimento. No entanto, com todo o respeito, ousa-se discordar. Quando o legislador escreve “na presença”, a ampliação para uma virtualidade configura analogia “in malam partem” ou, no mínimo, uma “interpretação ampliativa ou extensiva” prejudicial ao réu. Isso é inviável na seara penal. Em querendo abranger tais hipóteses de “presença virtual”, deveria então o legislador ser expresso a respeito. No seu silêncio, a causa especial de aumento se torna inaplicável. Entende-se que não somente a causa de aumento deveria ser generalizada, conforme acima exposto, como deveria ter o legislador atentado para o mundo virtual hoje acessível e que permite que a crueldade também seja perpetrada sem a presença física. No entanto, conforme já explicado, houve um lapso na elaboração legislativa, lapso este que não pode ser consertado por via da violação do Princípio da Legalidade Estrita. O ajuste deve ser feito por lei e portanto, o vislumbre de Cunha se apresenta como mais viável em termos de uma sugestão “de lege ferenda”.
Para a incidência desses aumentos de pena no Feminicídio é necessário que o autor do crime tenha conhecimento das respectivas circunstâncias, pois do contrário haveria aplicação de responsabilidade objetiva no Direito Penal, o que é vedado de forma absoluta. Então, o autor do crime teria de saber, por exemplo, que a mulher estava grávida, que ela estava no período de 3 meses pós – gestacional, que a vítima era menor de 14 anos, maior de 60 ou deficiente; finalmente que as pessoas presentes no momento da execução da vítima eram ascendentes e/ou descendentes desta.
Finalmente é de salientar que, em virtude de seu artigo 3º., a Lei 13.104/15, entrou em vigor na data de sua publicação, ou seja, em 09.03.2015. Assim sendo, com relação à aplicação da lei penal no tempo, suas normas somente poderão incidir sobre casos ocorrentes dali para diante, pois que se trata de lei penal mais gravosa (“lex gravior”) para a qual é vedada a retroatividade. Contudo, quanto a tratar-se de crime qualificado e hediondo, na prática, não há diferença alguma. Isso porque os crimes de homicídio que configuram doravante Feminicídio já eram qualificados por “motivo torpe”, conforme já esclarecido, o que os tornava também hediondos. A única real diferença prática incidirá sobre as novas causas especiais de aumento de pena previstas no novo § 7º., incisos I a III do artigo 121, CP. Estas realmente somente serão aplicadas aos casos de Feminicídio ocorridos após a publicação da Lei 13.104/15.
Estas parecem ser, ao menos inicialmente, as observações necessárias à presente alteração do Código Penal Brasileiro, a qual entra para o inglório rol das legislações penais simbólicas e praticamente inúteis (neste caso ainda com generosas pitadas do nauseante “politicamente correto” que marcou inclusive seus debates, mediante violência terrível contra até mesmo a língua portuguesa).
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.
Como reverter um indeferimento do INSS? Para reverter um indeferimento do INSS, o segurado pode…
O auxílio-doença é um benefício pago pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a trabalhadores…
A cirurgia bariátrica é um procedimento indicado para pessoas com obesidade grave que não obtiveram…
A recusa da seguradora em pagar a indenização prevista em contrato pode trazer uma série…
Entrar com uma ação judicial contra uma seguradora pode ser um processo necessário quando há…
Quando uma seguradora se nega a pagar a indenização que o segurado acredita ter direito,…